Cidade
Macaúbas, Bahia
Nascimento
1968
Perfil
Pintor, Fotógrafo, Artista Visual (instalações e performances)

Com trabalhos em pintura, fotografia, audiovisual, instalações e performances, ultimamente desenvolvidos através de materiais orgânicos – dendê, charque, açúcar –, sua obra propõe uma leitura da cultura baiana a partir da arte, da história e da sociologia, utilizando principalmente em suas performances e instalações a incorporação de sons, cheiros, numa atividade artística onde as ações utilizam o material orgânico para criar objetos artísticos descontextualizados de seu cotidiano e deles uma reflexão do efêmero da vida. Esse conceito o leva a uma leitura da história cultural baiana, propondo uma reflexão sobre questões culturais afro-baianas, a escravidão, o trânsito no Atlântico, o espaço e o tempo, ao apresentar diversas formas de violação ao corpo, do corpo negro no período da escravidão ao corpo dos perseguidos em tempos de ditadura militar no Brasil e escravidões atuais. Uma obra desafiadora em sua leitura do homem e do mundo hoje.

Nascido na cidade de Macaúbas, Bahia, em 1968, artista visual, pesquisador, curador, professor, é mestre em Artes Plásticas pela Universidade Federal da Bahia, e suas obras vêm sendo apresentadas em mostras individuais e coletivas, nacionais e internacionais – III Bienal do Mercosul/2001; II Trienal de Luanda/2010; Design 21/2001, em Nova York; MIP2 Manifestação Internacional da Performance, Belo Horizonte, Minas Gerais/2009 –, e está representado em acervos como o Museum der Welkulturen, Frankfurt/Alemanha; Museu de Arte Moderna da Bahia; VídeoBrasil, coleções particulares, ganhando prêmios desde 1986 no I Salão Metanor/Copenor de Artes Visuais da Bahia.

Você nasceu em Macaúbas, município do estado da Bahia. O que há desta sua cidade na sua obra? Quais referências o marcaram? O que está presente da sua história pessoal na sua criação como artista visual?

Nasci em 1968, na longínqua Macaúbas, cidade do sertão baiano, a 682 km da capital, na Chapada Diamantina meridional. Sou o quarto filho de uma união inter-racial: meu pai, negro de Coração de Maria, BA, sargento da Polícia Militar, e minha mãe, branca de Caturama, BA, professora de História. O meu avô materno não aprovou a união dos meus pais, sem dúvida por preconceito racial. Em 1970, minha família se transferiu para Vitória da Conquista, uma grande cidade do sudoeste da Bahia, terra de Glauber Rocha. Voltei várias vezes para Macaúbas durante a minha juventude, em férias de escola e especialmente para os festejos juninos, junto ao convívio dos meus parentes de origem materna. Não tive muito contato com a família do meu pai. A cidade era muito especial para mim, de cultura marcadamente sertaneja e de hábitos distintos do sudoeste. O gosto e o cheiro do pequi no arroz, o sabor do doce de buriti, o cortado de palma com carne-seca e os eventuais passeios, pela caatinga, para colher umbu. Vivi desde cedo os contrastes culturais entre essas duas cidades. Macaúbas me marcou profundamente com sua paisagem de sertão e seus valores morais rígidos e quase medievais.

O primeiro contato que pude ter com sua obra foi em 1986 no salão Metanor/Copenor. E estava exposta uma pintura. Olhando sua trajetória de mostras de lá para cá, a pintura foi esquecida, ou pelo menos colocada ao lado, diante das performances e vídeos no seu trabalho para exposições? Não há mais lugar para a pintura nas artes visuais contemporâneas?

Sempre me considerei um pintor, mesmo utilizando outras estratégias criativas. O meu pensamento é pictórico, penso o tempo todo em cores, texturas, superfícies, matérias e seus sentidos comunicacionais. Artistas como Giorgone, com a sua iluminação sobrenatural, Ticiano, particularmente na sua fase da velhice, com as suas composições dramáticas e os radicais contrastes de claro-escuro foram as minhas grandes referências na década de 80. Contudo, no início, tive a necessidade de afirmar que a pintura estava morta. Porque os contextos eram outros na Bahia, havia uma quase total hegemonia das belas artes. Eu me sentia angustiado com os suportes tradicionais e os conceitos de arte vigentes. Neste período, estudava e era fascinado pelo processo que levou à obra do Helio Oiticica, do plano para o espaço, sendo inevitável, posteriormente, a imersão nas práticas audiovisuais instalativas e performáticas. Hoje, é fato, e não precisa mais de ativismo para afirmar, há um transbordamento, um esgarçamento dos limites entre as linguagens artísticas. O cinema e a artes visuais se reencontram de forma efetiva, a gravura com a performance, a dança com a interatividade tecnológica, a música com a instalação. A pintura sempre terá espaço na atualidade, contudo tem que ser pensada conceitualmente de forma dinâmica, híbrida, assim como a escultura, a gravura e a arquitetura.

 Com este leque aberto para os audiovisuais, as fotografias etc. É a contemporaneidade que exige esta polivalência, “tudo ao mesmo tempo agora”, ou uma necessidade artística interna, o que faz o artista abarcar todos estes campos das artes visuais?

Prefiro usar o termo “arte atual” a “arte contemporânea”. Sendo assim, a atualidade criativa nos ensina e nos encaminha cada vez mais para um fim dos unívocos limites. Sobre isso, reporto-me à utilização de um conceito mais abrangente, uma compreensão expandida, a fim de dar conta à complexidade do fenômeno da polivalência. Venho afirmando que não existe suporte na arte; o que existe são estratégias que cristalizam energias criativas da cultura. Entendendo neste contexto o conceito de estratégias criativas, como a arte de aplicar e de explorar condições favoráveis, com os meios e fins de alcançar objetivos específicos. Temos hoje diversos métodos e procedimentos de linguagem para comunicarmos “poéticas visuais”, cabendo ao artista a escolha de qual é mais pertinente – no meu caso, o mais eficiente. Cada processo é particular e, como somos todos “poetas”, inventores ou criadores de novas possibilidades de existir, construímos nossos caminhos e itinerários enquanto nos subjetivamos.

As artes visuais, hoje, ainda mantêm divisão de campos de atuação – pintura, escultura, fotografia etc. – ou toda ela tem de interagir para que se efetive plenamente a criação que se exige de um artista atual?

Não me motivo por manifestos artísticos, pois quase todos, historicamente, são bastante essencialistas e autoritários. Sugiro observarmos os resultados do documento elaborado pela Funarte e pela sociedade civil nas reuniões das Câmaras Setoriais de Artes Visuais em 2006 e verificarmos uma grande atualização do campo conceitual da área: “As ‘artes plásticas’ – como foram até há pouco tempo conhecidas – ganharam nova dimensão. Passam a ser conhecidas como ‘artes visuais’. Integra o círculo das ‘artes visuais’ aquelas formas de expressão artística que, tendo como centro a visualidade, gerem, por quaisquer instrumentos e/ou técnicas, imagens, objetos e ações (materiais ou virtuais) apreensíveis, necessariamente, através do sentido da visão, podendo ser ampliado a outros sentidos. Partindo desse centro, o círculo se expande, agregando suas diversas manifestações, até que a circunferência das artes visuais alcance (e interpenetre) outros círculos das artes centrados por outros valores, gerando zonas de intersecção que abrigam manifestações mistas, que não deixam de ser ‘visuais’, mas obedecem, com igual ou maior ênfase, a outras lógicas. Este círculo e suas intersecções compõem o campo das artes visuais”. Este documento nos informa sobre a atualização conceitual, e que não existe a divisão e sim a ampliação do campo para dar conta da atualidade.

Vamos às suas obras. A sua criação tem se pautado pela utilização de materiais orgânicos. Matérias efêmeras. Qual o significado da transitoriedade como elemento propulsor para seus trabalhos?

Sou um sertanejo amante da hinterlândia da Baía de Todos os Santos, homônimo do filósofo grego Heráclito, que nos ensinou: não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Acho que herdei o carma. Mas a vida e sua transitoriedade, a sua fluidez, e a transformação das coisas do mundo, para mim, continuam a ser tão desafiadoras quanto férteis para o fomento da reflexão e da criação intelectual. O material orgânico é vivo e dinâmico, assim como o uso que eu faço quando eu o ressignifico para pensar os nossos costumes culturais.

Ainda sobre o que o impulsiona para a criação, temos a leitura de uma história social, econômica, política, cultural, através do uso dos materiais como o dendê, o charque etc. Seu objetivo ao criar suas obras e utilizar estes materiais é colocar que uma obra de arte necessariamente tem de ter uma reflexão intelectual, fazer pensar?

Acredito nas concepções pedagógicas e expressivas da arte e a sua relação como forma de conhecimento. Daí, o motivo maior da minha busca em construir uma poética visual. E de investigar sobre as possibilidades artísticas de matérias-primas regionais. Por isso, elejo os materiais orgânicos – açúcar, carne e dendê – trazendo à tona o seu sentido plástico e visual como insígnia de uma possível síntese de costumes culturais. Para mim, a obra artística deve afetar, isto é, chegar ao afeto – que é misto de percepção e conceito.

A pergunta anterior pode ser desdobrada ainda para outra. A obra de arte deve refletir o contexto social em que é feita, a realidade da sociedade onde se insere? Isto pode ainda seguir: qual a função de um artista atual diante de sua realidade?

Fui militante do Partido Comunista aos 13 anos de idade. Vendi Tribuna Operária, me envolvi com o movimento estudantil secundarista – quando li O capital, de Marx. Depois, fui profundamente tocado pelos ensinamentos de arte e vida do artista Joseph Beuys. Sendo assim, enquanto artista e acadêmico, a minha formação é constituída da crença que historicamente a arte é socialmente determinada.

Acredito hoje que as concepções clássicas de arte engajada e de arte pela arte devem ser compreendidas em seus contextos históricos. O ativismo mudou. Hoje, lutamos por softwares livres e energia limpa para produzir um mundo mais sustentável. A arte e o artista se relacionam de forma efetiva enquanto linguagem, isto é, enquanto estratégia de comunicação. De tal modo, devemos buscar o equilíbrio entre o ativismo ou a intervenção criativa no mundo e métodos de produção artística eficazes. O artista hoje é também uma espécie de arquiteto da informação – que orquestra poeticamente o seu verbo e sua ação, assumindo, assim, uma função de dialogar, provocar o seu contexto social, de forma a reconhecer práticas de alteridades que possibilitem trocas colaborativas.

Suas últimas mostras exigem uma interação, ao terem sido realizadas num desfile de modas, na praça, ou mesmo em galerias. Exige o espectador atuante, isto é, reflexivo? Este espectador é também parte inerente à obra? Ou só a obra que pede a reflexão? Melhor dizendo: qual o papel do público diante de uma obra de arte hoje?

A arte sempre existiu para dizer algo. Eu sempre preferi dizer e estive atento a ouvir. Por isso, uma relação horizontal com o público é fundamental para minha prática criativa. A recepção da arte deve ser fenomenologicamente a intermediação; na atualidade, a troca dinâmica entre propostas artísticas, pessoas criativas e contextos sociais.

Outro dado que temos na sua criação, no encontro entre a história e a atualidade, é trazer à tona todo um imaginário do brasileiro, especificamente do baiano, proposto nos materiais simbólicos, como na utilização da história refletida nestes materiais. O que você identifica como elemento fundamental para deflagrar sua criação? Qual o ponto de partida para sua criação artística?

Sempre acreditei que a arte também se move em outros tempos além do cronológico. Tais como no tempo das estruturas mentais, que é mais lento, independente do tempo histórico, e no tempo das estruturas míticas, que tange o sagrado e o metafísico.

A leitura que eu faço entre a história e a atualidade tem como pretensão compreender a complexidade dos fenômenos culturais relacionados à dimensão simbólica e imagética do que nos constitui brasileiros, levando em conta o seu caráter inventivo e ficcional – que me move a investigar através de interterritórios de conhecimento. Sem dúvida, tenho me demorado sobre os temas afro-brasileiros e suas diversas cenologias, pois acho que não foram esgotados e que precisam ser lidos com outros olhos.

Certamente a pesquisa de temas afro-baianos não é recente na história da arte baiana. Contudo o que propomos com a nossa poética é uma espécie de metodologia e abordagem sempre com um horizonte crítico que aponta para leituras mais contemporâneas que envolvem a questão de território local e global. As culturas baianas me fascinam e, como me considero ainda um pintor, o ponto de partida para minha criação é como me relaciono com a minha paisagem.

Após sua exposição com o charque, você doou a carne para instituições. Recebeu delas, por escrito, agradecimentos. Estas cartas viraram obras. Esta ‘reciclagem’, este contínuo refazer em si mesmo é também um objetivo de seu trabalho?

Através dos ensinamentos estéticos de Joseph Beuys, aprendi a compreender a arte numa visão antropológica, pensando o fazer artístico enquanto “escultura social”, a possibilidade de moldar plasticamente as relações sociais. Daí que a minha obra não se encerra inteiramente no sistema da arte. Os documentos e a produção residual que registram as ações e ressignificam a sua memória são fundamentais para a construção da minha poética.

Você teve oportunidade de expor em Angola. O que esta viagem fez no artista Ayrson Heráclito como reflexão de Brasil e o que pode ter modificado na sua interação com a realidade brasileira?

Infelizmente, não estive em Angola – ainda que minhas obras tenham sido expostas na Trienal de Luanda. O meu axé foi. Estive presente, mas de uma outra forma.

Tenho muita curiosidade de conhecer as Áfricas, pois sou um apaixonado por parte da sua história. Contudo, aguardo com paciência a possibilidade de enfrentar o que nós reinventamos da África na Bahia, no Brasil, na América, com uma vivência in loco. Estou preparado para ensinar e aprender, desmistificar e reconhecer analogias nessa experiência.

Quais os caminhos agora do artista Ayrson Heráclito? O que está a fazer? Algum projeto?

Muitos caminhos estão abertos. Ogum iê! Como sou filho de Odé, estou sempre à caça, provendo de fartura e alimento a minha casa. Estou me transferindo para uma qualificação acadêmica – em que pretendo receber o meu deká acadêmico de doutor. Por quatro anos, estarei entre São Paulo, Nordeste brasileiro, Europa e a minha tão mítica África. Ainda este ano, apresentarei uma nova videoinstalação no Festival de Arte Eletrônica VideoBrasil, em São Paulo, e, posteriormente, participarei de três importantes exposições na Europa, entre Holanda e Bélgica. Produzo muito, na verdade. E há um tempo venho trabalhando na criação de diversos produtos de videoinstalações e performances que envolvam a tecnologia da DSLR. Estou finalizando três novos projetos que versam sobre o Festival da Liberdade do Bembé no Recôncavo da Bahia.

(entrevista / setembro de 2011)

 

 

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