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Mario Cravo Jr.

Opening
26 de October de 2017

Schedule
19h

Exhibition
27 de October a 02 de December

Com uma vitalidade sem paralelo na arte brasileira, aos 94 anos de idade, Mario Cravo Júnior é um dos pioneiros da arte moderna na Bahia e um dos grandes artistas brasileiros do século XX.  Neste ano de 2017, está comemorando setenta anos de exposições individuais. As primeiras mostras, foram duas, aconteceram em 1947 (“Mario Cravo Júnior Expõe”. Edifício Oceania. Salvador/BA e “Mario Cravo Esculturas e Desenhos”. Associação de Cultura Brasil-Estados Unidos (ACBEU). Salvador/BA). Para festejar esta data a Paulo Darzé Galeria apresenta dia 26 de outubro, das 19 às 22 horas, uma exposição reunindo 70 esculturas em dimensões variadas, tendo como título Cabeça de tempo, reunindo trabalhos em madeira e ferro, centrados na temática do título, que nos mostram durante este percurso as inovadoras soluções plásticas e as múltiplas formas de expressão que o artista engendra.

O livro da mostra traz textos dos artistas Vauluizo Bezerra:“Talvez este sentimento que me refiro seja algo pessoal meu, mas insisto em afirmar, que por tudo que tentei descrever sobre o uso da arte por Mario Cravo Jr., como um instrumento socializador, com uma função de estender uma compreensão sobre as questões identitárias que lidamos, sobre seu interesse em elucidar formalmente as especificidades baianas com a universalidade apregoada pela modernidade, estas cabeças cumprem um rito de passagem de uma emancipação de uma arte moderna genuinamente baiana”; E Caetano Dias: “O que afeta continua a nos tocar na obra de Mario Cravo. Desse modo nos dando sentido ao que nos faz povo em nossa cultura mestiçada em cada fragmento de madeira do antigo mercado de não mercadorias com “tanto negócio e tanto negociante”. Os fluxos de forças que sentimos e continuamos a sentir, como se essas figuras de proa lançassem mares de fogo para nos lembrar de que não podemos esquecer-nos da carne nem do escarnio. Acho que possivelmente a obra de arte tem o poder de confrontar a todos enquanto espelho para estranhamentos no seu reflexo”.

Nestes setenta anos, e incluindo as coletivas iniciada em 1943, temos sua obra criando objetos, murais, painéis, relevos, desenhos, pinturas, e principalmente esculturas, utilizando tanto a madeira, como o ferro, latão, outros metais, ou a resina de poliéster, fibra de vidro, sucata, metal polido, pedra sabão, pedra grafite, com apropriações, montagens e remontagens, de onde surgem esculturas giratórias, exus, cristos, figuras, móbiles, estando esta é uma arte que vem sendo renovadamente criada, reelaborada em seu senso táctil, sem dependência temática, referência estilística, mas de intenso relacionamento com o mundo e as pessoas por sua experiência da forma e de intensa vitalidade e criação.

Mario Cravo Júnior nasceu em Salvador, Bahia, no dia 13 de abril de 1923, estudou nos Estados Unidos, Universidade de Syracuse, trabalhou em Nova Iorque, viveu e realizou exposições na Alemanha, como “Artists in Residence” pela Ford Foundation. Representante do Brasil na XXX Bienal de Veneza, como escultor convidado, e na IV Exposição Internacional da Escultura Contemporânea no Museu Rodin, Paris-França, ganhou prêmio na I Bienal de São Paulo, participou da XXVI Bienal de Veneza, da IV Exposição Internacional de Escultura Contemporânea no Museu Rodin, Paris, 1ª Exposição Bienal Internacional de Gravura de Tóquio, da I Bienal Nacional de Artes Plásticas, em Salvador, com sete esculturas criadas na proporção do claustro do Convento do Carmo, formulação até aquele momento inovador em conceito e forma, nas suas peças medindo de três a sete metros de altura. Entre as suas premiações ainda: 2º Prêmio do 3º Salão Baiano de Belas Artes (1951); 3º Prêmio da 1ª Bienal de São Paulo/1951; 1º Prêmio do 2º Salão de Arte Paulista de Arte Moderna/1952; 2º Prêmio da 3ª Bienal de São Paulo/1955; 2º Prêmio da 1ª Exposição de Arte Sacra da Pontifícia Universidade Católica do Brasil, Rio de Janeiro/1956.

Desde o início de sua trajetória Mario Cravo Júnior realiza desde trabalhos em locais públicos, experimentando um contato direto de sua arte com o público, através de inúmeras obras urbanas, esculturas de grande porte e murais, nas muitas obras em ruas, praças e avenidas, edifícios públicos e empresariais, mas também realizando mostras em museus, com trabalhos nos acervos dos Museus de Arte Moderna de Nova Iorque, Jerusalém, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Pampulha em Minas Gerais; Museu de Arte de Jerusalém, Rio Grande do Sul, Bahia, Feira de Santana, São Paulo; Pinacoteca do Estado de São Paulo; Museu Afro Brasil; Fundação Armando Alvarez Penteado; Museu Chácara do Céu – Fundação Raymundo de Castro Maya; Museu de Arte Sacra da Bahia; Museu da Cidade do Salvador; Museu de Antropologia da Bahia; Núcleo de Artes da Desenbahia; e no Museu Hermitage (Rússia) e Walker Art Center (Minneapolis/Estados Unidos).

Iniciando a expor individualmente em 1947 (“Mario Cravo Júnior Expõe”. Edifício Oceania. Salvador/BA e “Mario Cravo Esculturas e Desenhos”. Associação de Cultura Brasil-Estados Unidos (ACBEU). Salvador/BA), e coletivamente em 1943 (“VII Salão ALA”. Biblioteca Pública. Salvador/BA), realizou na sua trajetória mostras em galerias de várias cidades brasileiras e do exterior (New York, WashingtonDC, Minneapolis,  San Francisco, Colorado, St. Louis, nos Estados Unidos; Berlim, Munchen, Bonn, na Alemanha; Zurique, Berna, Neuchâtel, na Suiça; Santiago, Chile; Paris, França; Tokio, Japão; Madri, Espanha; Oshogbo, Lagos, Nigéria; Castellanza, Itália; Lisboa, Guimarães, Portugal; Macau, China; Buenos Aires, Argentina; Panamá, Costa Rica, Guatemala, México e Cuba.

Exu e seus fluxos
Caetano Dias

As esculturas de Mario Cravo Jr. se manifestam e são manifestos a ferro e fogo da Bahia.

A partir deste ponto de vista, podemos imaginar as muitas madeiras fumadas, em línguas de fogo, que fazem destas esculturas testemunhos das gargantas fumegantes, enquanto cabeça de Tempo dos apagamentos de nossa história.

Para irmos um pouco mais além, vale lembrar do fumo e das cinzas do antigo Mercado Modelo. E depois da antiga Alfândega, incendiado na década de oitenta do século passado, prédio que fora o cais, situado no bairro do Comércio, na Cidade Baixa de Salvador. Disto restou a configuração de uma imensa lacuna e escombros com madeiras calcinadas. Material do qual Cravo tão bem se apropriou para dar voz a uma série de obras.

Nestas esculturas da década de 80, onde se veem partes de madeira rejuntadas ao conformarem faces dos destroços do incêndio – resultam, a meu ver, em cabeças feitas de Exus. O corte na madeira é forte e a cisão como corte recôncavo, ferida exposta, quase em carne viva; onde se vê a fisionomia violenta da história atravessada no objeto. Gestos do fogo e do artista, tudo na descarnada face sobre-humana inexpugnável. Pode-se imaginar a cena de violação da memória. Enquanto o artista cinze a mão o osso exposto da matéria madeira, nos encara querendo outras memórias. Da substância à forma que encontra sua essência e reagrupa as partes para dar fundamento ao retrato do tempo.

Em Cravo, as toras destroçadas pelo fogo corporificam nossas multiplicidades culturais; o artista dá face ao contínuo estado de abandono de nossos sítios históricos. Estas esculturas induzem a sentir o pó que entranha a alma e transpira no corpo, e que talvez, se assemelhe com o impregnar da fumaça das madeiras ainda desprendendo memórias ao tisnarem.

Aproximar o processo do artista com o contexto temporal que deu origem às esculturas pode dar feição à iniquidade do novo que devora o antigo sem perceber que aniquila a si mesmo. Isto é, geralmente, o que o Tempo faz em terras que não cultuam o passado. Estas esculturas têm um potente diálogo com o tempo e seus consequentes estranhamentos para o bem e para o mal.

Ainda sobre os incêndios que escaldaram a Bahia, diz o refrão do samba de roda “Queimou, deixa queimar”1, que fala do incêndio que também destruiu outro sítio histórico da antiga Cidade da Bahia, assim como feito no Mercado Modelo, na antiga Alfândega e outros mais, que “nesse dia quem tava lá não podia nem respirar” de tanto torpor que se elevava da Cidade Baixa à Cidade Alta. Este ainda continua a ser o estado das coisas na Bahia, uma Bahia que fere e asfixia a memória.

Assim, a antiga Alfândega queimou, o antigo Mercado Modelo queimou, a Feira de Águas de Meninos queimou. Deixa queimar! Por descaso, vergonha, azar, seja lá o nome qual for, perdemos parte da vida baiana e na antiga Alfândega sua construção colonial, hoje restaurada. Alfândega transformada em Mercado Modelo, mas que por sorte resta hoje não só “uma vaga lembrança”, mas sim as obras de Cravo.

O Mercado em chamas concedeu a Cravo corpos para o seu corte bruto. Com incisões precisas de quem sabe dar voz à matéria. Esse corte cru na madeira calcinada é como imenso berro de Gregório de Mattos na garganta de Exu. Mesmo com esse corte brutal “na manhã seguinte tudo voltou ao normal” no jogo capital da Bahia que ainda queima e deixa queimar.

As esculturas de Cravo, tal como as máscaras tribais africanas, guardam marcas ancestrais do fogo que dilata não somente o ferro, mas também nossas “dessemelhanças”. O “queimou, deixa queimar”, acelerou o processo e deu força de coesão às esculturas atemporais de Cravo. Estas obras têm sentido, forma e recursos expressivos que continuam dando Exus ao mestre baiano.

Pode-se dizer que há paralelos entre a obra de Mario Cravo Jr. com a arte tribal das culturas da África subsaariana, traço comum no modernismo em artistas como Pablo Picasso. É especial saber ou imaginar quais motivações mais diretas teriam levado o artista a essas obras, que não sejam apenas aproximações relacionadas à história da arte ocidental ou a tais e quais possíveis influências. É mais urgente saber do afeto que conduziu o artista para esse conjunto de obras em madeira, a qual, carbonizada, ainda arde enquanto expressão vigorosa.

Como escreveu Gregório de Mattos, “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante”2 que guarda a potência das chamas que consumiu a antiga Alfândega e consome ainda a Bahia na atualidade. “A ti tocou-te a máquina mercante” no mercado de tráfico negreiro. Que “a mim foi-me trocando, e tem trocado” toda feição atribuída ao vigamento lavrado ante o sangue da mão escrava, pelo fogo e por Cravo. Certamente “pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado” nas esculturas do mestre.

Para tanger a força dessa obra como um moinho violento, vinham-me cifras do antigo samba de roda, bem como trechos de ‘Triste Bahia ‘de Gregório de Mattos. Não há paralelos entre um e outro, mas ambos conduzem a estas esculturas de Cravo. Se há um possível paralelo, está no defluxo destemperado entre água e fogo, indômito como o fluxo criativo do artista, especialmente neste conjunto de obras em que paus de fileira esbraseados não são mais apenas madeira, nem carvão, nem cinzas, mas dormentes que acendem a matéria e atribuem afeto.

Imagino a conexão do artista com esse rescaldo do incêndio e da história em que “estás e estou do nosso antigo estado” de memórias onde quase dá para sentir o fogo arder, sentir o cheiro de fuligem da madeira a entranhar com suor e sangue de homens pretos que não estancam o corpo “em dar tanto açúcar” que rasga a garganta dos olhos quando tocadas por estas esculturas que sempre abrasa.

O que afeta continua a nos tocar na obra de Mario Cravo Jr. E desse modo dá sentido ao que nos faz povo, em nossa cultura mestiçada, em cada fragmento de madeira do antigo Mercado de não mercadorias com “tanto negócio e tanto negociante”. Aos fluxos de forças que sentimos e continuamos a sentir, como se essas figuras de proa lançassem mares de fogo para nos lembrar de que não podemos nos esquecer da carne nem do escárnio. A obra de arte tem o poder de confrontar a todos enquanto espelho para estranhamentos no seu reflexo.

São séculos de opressão imantados no arcabouço desatado pelo fogo, aos berros, para esfolar o cerne da madeira na “triste Bahia”. São cabeças de negros que gritam alto para atiçar nossos corpos e almas de pretos. Como as figuras de proa que conduzem o timão do artista para navegar e aportar na antiga Alfândega enquanto a história cresta, e ressurge na obra. É assim que sinto estas esculturas de Cravo, vívidas de memória para incorporar agora que “rica te vi eu já, tu a mi abundante” o “ó quão dessemelhante”.

Tomo licença para idear figuras de proa de possíveis naus negreiras atracando no antigo cais a desembarcar corpos e almas à força na província da Bahia, ou como nas figuras de proa do Rio São Francisco para afastar maus presságios e perigos dos remansos. Ao sair da capital e penetrar no interior, faço minhas as palavras do próprio artista quando da sua viagem a Canudos e ao Rio São Francisco: “Cobrimo-nos com o pó das estradas e com a lama entranhada nos poros a arrecadar ex-votos, esculturas vivas dos sertões”3.

Este pó e esta lama se tornam paralelos aos incêndios, tanto as máscaras africanas como as carrancas do São Francisco possuem caráter ritualístico que pode nos levar a imaginar tantas relações possíveis que permitiria supor outras tantas no processo artístico, entendendo o fogo como ritual preparatório para a obra. Mas essa conjectura serve apenas para saber a grandeza da obra e do artista.

Porém sem forçar aproximações com os mestres da carranca, ribeirinhos do São Francisco, já que uma parte dessa região fez parte da cartografia do tráfico negreiro. É claro que as esculturas de Cravo não são carrancas nem máscaras africanas, são antes de tudo a obra do grande mestre do modernismo brasileiro, sensível à nossa história e atento ao poder de Exu e seus “fluxos e refluxos”4: aquilo que queima, purifica e abre caminhos, ao mostrar o traçado de nossa história e ao evocar os sentidos de quem somos.

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1 Autor desconhecido. O moinho da Bahia queimou deixa queimar, Samba de Roda.

2 MATTOS, Gregório de. Triste Bahia.

3 CRAVO Jr, Mario. In Jornal a Tarde.

4 VERGER, Pierre. 2002. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos (dos séculos XVII-XIX). 4. ed. Salvador: Corrupio.

Esta incessante busca de novas possibilidades, de criar e recriar, de fazer e desfazer é uma não aceitação do seu próprio trabalho pelo desejo incansável de novos horizontes, uma rebeldia inerente à personalidade, ou uma briga permanente contra a acomodação que qualquer um pode ter ao não se fincar num caminho já trilhado e de sucesso?

É muito difícil este questionamento de se autorreferir. Todo questionamento sobre o processo de autodefinição acaba tratando do que gostaríamos de ser e não do que somos. É uma somatória e talvez eu deva isso a uma característica da minha personalidade. Sou essencialmente curioso. Isso faz parte da minha vida, e está na minha terra, na minha primeira infância, uma curiosidade que eu tenho pela mecânica, pelas instalações, pelas máquinas, os mecanismos. Isso sempre foi para mim um momento de diversão e, ao mesmo tempo, então como se eu tivesse um laboratório existencial, uma pedra filosofal.

É uma espécie de procura de uma combinação que não existe, quem sabe, uma procura de mim mesmo, eventualmente achado, mas pelo menos procurado, mas é a procura de mim mesmo, o que no fundo é a procura de minha gente, do meu povo, da minha tradição, da minha civilização.

Todas as vezes que fiz este questionamento de caráter social, sociológico ou antropológico, me vem à mente que queiramos ou não, modernamente encarados ou não, nós somos ainda aqueles indiozinhos de Anchieta e de Vieira, nós estamos ainda, não sob a proteção, mas sob a sombra ou o reflexo de nossa tradição cultural, que implica no ser fundamental, ou como diria Rousseau, no paraíso perdido.

Esse meu laboratório tem também a ver com este suposto mundo novo que é também o mundo velho. Nós falamos sempre neste paradoxo do que é o futuro. Quando se chega à minha idade, nós temos a possibilidade de encarar o que é o passado, o presente e um pouquinho do futuro.

Mas as coisas parecem que só acontecem quando acontecem, ou seja, a vivência e a experiência são uma somatória de um eventual fluxo da mudança para o enriquecimento do ser humano. Talvez através do interregno, do contraponto, possam acontecer algumas das coisas que tentamos algumas dezenas de anos acontecerem. Eu vivo nessa expectativa. Este é o meu temperamento. Eu sou um insatisfeito.

Neste eu não aceito, a primeira vítima, vítima entre aspas, da minha rebeldia, sempre sou eu mesmo, porque se ela me compensasse, se ela fosse em si mesma um objetivo, uma finalidade, mais do que objetivo, entendeu, eu estaria me elevando à categoria de super-humano. Pelo contrário, eu me sinto cada vez mais ligado a este processo de transição, de modificação, essa dinâmica. Talvez por isso sejamos tão ansiosos pela segurança.

Eu me habituei ao risco de tentar. Não é superar a mim mesmo não, mas de “enriquecer” a minha própria experiência, ou seja, cada vez. Talvez seja como uma criança, ou aquela coisa simbólica da cobra comendo o rabo, cada vez que mais envelheço, mais jovem me sinto, e vêm naturalmente uns pensamentos deste momento, que são umas reflexões de um artista quando velho.

E prossegue:

Viver é transformar. Viver longos anos de vida é um exercício permanente de transformação e isto para mim significa a dinâmica da própria vida, isto através de qualquer profissão. Mas, como nosso ciclo é muito curto, para uns curtíssimos, mas outros, como no meu caso, que não é tão longo. Ao contrário. Depende de como você encara. Mas o que é realmente estimulante é encontrar receptividade na vida, a curiosidade da vida.

Esta vitalidade que você vê é uma demonstração da continuidade, da intensidade que liga alguém ao nosso temperamento, à nossa sensibilidade, à nossa maneira de ver o mundo. Daí, eu posso falar, aos 85 anos, que eu sinto energia, sou energizado por esse laboratório, esse número de materiais e de formas diferenciados, essa tentativa de combinações.

Talvez a minha curiosidade seja um acompanhamento deste viver anexando sempre a cada dia uma nova combinação à procura do eterno. A coisa começa a se envolver e passa a não existir mais esta separação de gerações. São etapas que se fundem. É uma espécie de pragmatismo separarmos tudo em compartimentos. Acho que isso é um fluxo que recebemos, vindo mais ou menos por afinidades de cada qual, mas no fundo é um grande mar para navegarmos, ou que navegamos. Este mar é uma herança que recebe um do outro, que na realidade não tem começo nem meio nem fim, é um fluxo. Assim sigo o jovem velho ou o velho jovem, tanto faz como tanto fez. É minha maneira de ser. O passado para um homem que vive a extensão de vida que eu tenho é um mundo extremamente misterioso, indefinido de certa forma. Viver é uma permanente surpresa.

Mário Cravo Júnior nasceu em 13 de abril de 1923, em Salvador, Bahia. Graduou-se em Belas Artes pela Universidade Federal da Bahia e, em 1947, seguiu para os Estados Unidos como aluno especial do escultor iugoslavo Ivan Mestrovic, na Universidade de Syracuse. Com a volta, como livre docente, exerceu interinamente, na Universidade Federal da Bahia, a cátedra de gravura, talho doce, água-forte e xilografia, sendo logo depois professor de nível superior na disciplina escultura em madeira, pedra e metais.

Tornou-se doutor em Belas Artes e professor adjunto na Escola de Belas Artes em 1966. A partir de 1976, executou o projeto inicial de pós-graduação na área de Artes Plásticas. Em 1981, coordenou a implantação do curso de especialização em gravura e escultura, tudo isso na Universidade Federal da Bahia.

Dentro do Espaço Cravo, Mário anda nos caminhos laterais da lagoa, e, após mostrar o que está fazendo, de apresentar um a um os operários que o acompanham, diz:

Eu aprendo com estes homens que estão a trabalhar comigo. Tem peças que eles contribuíram. Ou seja, é a inserção, o diálogo. Eu sinto o cuidado, a satisfação, o carinho com que eles participam do que faço, o que eles apreendem ao contribuir com um pedacinho, e isto vale mais, muito mais.

Ao ouvir um comentário sobre o local, diz:

É uma realização de um sonho em vida, este ateliê. Estou aqui há quatorze anos como se fossem quatorze dias, e, se este espaço passasse a não existir amanhã, eu lhe diria que estou plenamente satisfeito com a experiência e ainda vou mais um pouquinho: se tivesse que repetir, eu não mudaria absolutamente nada. Não sei se isso é excesso de autoconfiança ou que coisa misteriosa é essa, mas é o que sinto. Mas eu estou com ideia de querer transformar isso aqui, o Espaço Cravo, num memorial, é a nova terminologia. E se for possível esta proposta, trazer com isso uma experiência que tivemos cinquenta e poucos anos atrás com a Lina Bardi, que tentamos, mas infelizmente não houve possibilidade, que é o processo artesanal de um centro de estudos em trabalhos artesanais, a possibilidade de fazermos um levantamento dos mestres artesãos e fazê-los produzir junto com jovens designers universitários.

Quando será a próxima exposição? E os trabalhos serão em cobre, aço e latão, ou os em pedra-grafite?

No próximo ano. Não sei como será, pois em cinco ou seis meses pode acontecer um outro elemento e mudar tudo. Minha disposição é sempre o momento. O momento em que se vive. Expor é nos expor. É nos desnudarmos para aqueles outros que se interessam, por você como homem, como artista, como criador.

(entrevista / setembro de 2007)

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