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Fernando Coelho

Opening
13 de December de 2005

Schedule
19 às 22h

Exhibition
14 de December a 13 de January

Fernando Coelho apresentou este trabalho, após onze anos sem uma mostra individual, com apresentação do também artista Vauluizo Bezerra e do então diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia, Heitor Reis, sob o título “Poética Popular”. Exposição com 35 pinturas em acrílica sobre tela.

Fernando Coelho nasceu em Salvador, Bahia, em 1939. Realiza a sua primeira exposição individual em 1964, na galeria Querino. Nestes quarenta e três anos de atividade como desenhista, pintor, escultor, realiza individuais e coletivas em quase todo o Brasil e em países como Itália, Estados Unidos, Dinamarca, Portugal, sendo a sua última exposição individual na Paulo Darzé Galeria de Arte em 2005.

Possui obras em acervos como Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte Moderna da Bahia, Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, Museu de Arte Moderna do Rio Grande do Sul, e seus trabalhos constam do “Dicionário de Pintores Brasileiros”, de Walmir Ayala e do “Dicionário Crítico da Pintura no Brasil”, de José Roberto Teixeira Leite. Ressalta-se ainda na sua trajetória a realização de painéis para algumas empresas em Salvador-Bahia, como Banco Comercial, Casaforte, Golden Cross, Centro Empresarial Iguatemi, Centro Administrativo da Bahia, Empreendimentos Odebrecht, Hospital Aliança, Aurenkar Transportes e, em São Paulo, para a Zanini – Cia de Equipamentos Pesados S/A. Em 1978, com texto de Clarival do Prado Valadares, foi publicado o livro “Fernando Coelho – Desenhos”. Vive em Salvador.

Heitor Reis
O conservadorismo imposto pelo sistema, pelo público, pelo mercado e por grande parte da crítica, muitas vezes é bastante cruel em relação à obra de um artista, levando-o à estagnação, à mesmice, transformando-o num copista de si mesmo. Poucos são os que arriscam uma mudança, buscando uma transição no seu fazer artístico. Fernando Coelho é um deles. Da construção de suas paisagens e flores bem elaboradas, da elegância do gestual e do harmônico, nessa temática ele nos remetia a uma sensualidade silenciosa com profundas relações cromáticas na sua estrutura organizacional, estabelecendo uma relação significativa entre a produção artística e a história da arte.

Essas correlações nos transmitiram a certeza do domínio e da informação pictórica de Fernando que, em 1994 nos surpreende com a mostra itinerante “Jogos do Olhar”, iniciada no Museu de Arte Moderna da Bahia, rompendo com a forma pictórica e cromática realizada até então, embarcando radicalmente na direção das vibrações e formas geométricas e, na síntese, com profundo significado lógico desta linguagem.
Tratando-se de um pintor baiano de raízes populares, entende que a poética existente nesses signos é fundamental, e que além de seus elementos decorativos eles têm um valor plástico essencial. Passa a integrar então a pintura à arquitetura e vice-versa, explorando a construção geométrica rigorosa sem concessões ou subjetivismo, utilizando, além do vocabulário, as possibilidades da simplificação pictórica das experiências concretistas.

A mesma sensação de silêncio que nos transmitia na sua fase anterior, permanece no novo momento, só que acrescido, de vibrantes cores, e de uma quase incorporação da sonoridade rítmica da percussão baiana.
No momento da ruptura que surge no “Jogos do Olhar”, sua obra vem povoada de signos populares baianos, evocando as festas de largo e seus elementos, as fitas do Bonfim, conseguindo traduzir visualmente este universo, trilhando por um segmento importante da arte brasileira, coerentemente e de modo articulado, demonstrando que os valores concretos sobrevivem, quando interpretados e elaborados corretamente.
Nesta exposição ele promove, definitivamente em sua obra, o encontro do universo simbólico das manifestações populares com a arte construtiva caminhando no limite entre a figura e o abstrato, mantendo o mesmo lirismo de todas as suas fases.

Com esta exposição Fernando continua no seu rito de passagem do campo existencial que, com a energia e a angústia necessária nos dá a certeza de uma continuada e importante contribuição para a arte na Bahia.

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Vauluizo Bezerra
Nestes novos trabalhos percebo o interesse pela tradição recente da arte brasileira, especialmente no que concerne aos espaços dos movimentos concreto e neo-concreto. Mas a condição desta relação é de um flerte quase platônico que parece lhe servir como mito evocatório, no entanto suficiente para justificar sua contenção de aparência clássica, quase apolínea, embora aja ali, no meio de toda a sua produção recente uma cabeça emblemática que pode já anunciar surpresas futuras.

Como pintor, confesso certa aflição toda vez que me deparo com a difícil e estranha tarefa de falar sobre outro pintor. De algum modo, essa é uma situação análoga a estar diante de uma tela branca com suas impregnações intrínsecas. Ora, uma tela é um objeto em si contido num tensionamento histórico, considerando-se que entre o real e o artista é na obra onde se cristalizam as confluências da noção de individuo, com suas subjetividades, objetividades, seu campo ético, enfim, sua plena expressão social.

O ato criador na arte é uma aventura complexa cujo resultado é incerto e depende de inúmeros aspectos para suas fatorações. Pretender mediar este ato através do discurso verbal é compreender uma espacialidade individual, traduzi-la para um campo coletivo, e estendê-la a uma pertinência histórica.
Num artista como Fernando Coelho – cuja trajetória, consolidada nacionalmente ao longo de mais de três décadas, através de uma obra que, em muitos aspectos, contribuiu para o meu próprio aprimoramento -, essa tensa tarefa dirimi-se na medida em que minhas aproximações de seu trabalho não se dão mais através de vôos rasantes, mas sim numa aterrissagem para reconhecimento in loco dos seus ricos territórios.
De início, penso ser apropriado assinalar, no percurso da obra de Fernando Coelho até os dias de hoje, três distintos movimentos que delineiam genericamente aqueles esforços solitários das escolhas e desistências que um artista processa ao longo de seu trajeto: há, em sua produção, um movimento de contração, nos anos sessenta e setenta, seguido da expansão dos anos oitenta, e da acomodação reflexiva dos anos noventa aos dias atuais. Na gênese do seu amadurecimento, consolidado sobretudo pela exposição da Galeria Ágora, no Rio de Janeiro, em 1976, Fernando Coelho opera uma pintura tensa pelas articulações geométricas, elaborando uma ambiência mediante planos superpostos, caixas e estruturas perspectivas complexas, que aludem claramente ao espaço urbano como cenário para o convívio de alegorias sobre a condição humana, e tendem para o discurso social, tão obrigatório naquela época. Em meu modo de ver, o mais importante daquele período foi a comunhão com o ideário modernista a respeito dos problemas de espaço que aquelas obras continham, delineando certo desejo construtivista; abrindo, assim, alguma perspectiva para a autonomia de sua pintura.
Sintomaticamente, no ano seguinte, 1977, Fernando Coelho, como a suspeitar daquilo que havia de retórico em sua pintura, faz a corajosa opção pelo desenho puro, num esplêndido conjunto que ficou conhecido como a Série Zanini, no qual as problematizações do ideário modernista são passadas a limpo, num exercício de purificação sintática.

Nesses desenhos da Série Zanini¹ encontra-se a semente de um método que permanecerá em toda sua obra posterior, e que, transposto para a pintura, fornecerá uma característica intransferível de seu trabalho, preenchendo os espaços pictóricos com superposições de tom sobre tom, seguindo o principio de preenchimento gráfico do desenho, adotando direções deliberadamente aparentes em busca de campos vibratórios, ora com o uso de algum relevo, ora com a textura por efeito ótico.

A Série Zanini confere a Fernando Coelho o domínio do espaço, sem recorrer à geometria. Seus recursos lineares são predominantemente curvos; a presença das retas acusa o movimento da mão precisa. Esse domínio do espaço e as interpenetrações das figuras conferem leveza e invenção; suas gestões discursivas tangenciam o barroco, dialogam com recursos cubistas e abrem evocações surrealistas: trata-se de uma figuração livre que possibilitará o salto ousado do seu retorno à pintura, nos anos subseqüentes.
Na década de oitenta, Fernando Coelho consolida uma maturação plena, em que a pintura é absoluta, repleta de recursos surpreendentes. Seu repertório obedece a alguns planos temáticos: jardins, flores, paisagens, motivos cujo tratamento lhes conferem, por vezes, uma vocação simbolista; por outras, o prazer de fazer uma pintura em que viceja o erótico. Jacob Klintowitz traduz precisamente esses encaminhamentos: “O dado subjacente que torna este emergir tão forte é a sensualidade que se libera repentinamente. Esta sensualidade, ligação sensorial com o real, permeia todo o seu trabalho e confere às suas figuras a ambigüidade de registro e interpretação, conferindo novo mistério ao já misterioso”.

Internamente, esse período na produção de Fernando Coelho parece romper o conceito ocidental de espaço-tempo. Em muitas de suas pinturas, percebe-se uma estruturação pelo espaçamento, administração do vazio, acaso controlado, fatores que, em alguma medida, o aproximam da estética japonesa: uma pintura de aventura, cuja fatura só é possível pelo absoluto domínio de suas matérias. Mas estas matérias não devem servir apenas as resoluções internas da obra de arte. O senso de autonomia da arte gerada pelo modernismo muitas vezes forçou o artista a agir como matriz de seus ideários, o que provavelmente provocou os ritos reativos da atual geração do Eu.

Fernando Coelho mantém-se hoje em sua escolha pela pintura como agenciadora de sua comunicação com o mundo; pintura como interface possível em seu meio; pintura como adequação da simplicidade matricial brasileira e baiana à sofisticação da um desejo nacional construtivo. Aqui há um novo deslocamento dos seus interesses temáticos, que permeiam sua obra desde 1995, com suas mostras do Museu de Arte Moderna da Bahia e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, nas quais nos propõe novos jogos, Jogos do olhar, em que o arquétipo construtivo de brasilidade é eleito como cerne. “Ao transformar radicalmente a sua temática Fernando Coelho, não abandonou, entretanto, os seus compromissos básicos com a arte. Para ele o gráfico continua sendo o instrumento de estruturação da obra; antes, as linhas buscavam movimentos mais sinuosos, mais orgânicos, hoje elas se evidenciam em forma, fitas de luz, ripas, serpentinas, algumas vezes carnavalescas, outras vezes tangenciando aspectos da optical art.

Na atual mostra na Paulo Darzé Galeria de Arte, Fernando Coelho corrobora o senso de um construtivismo afetivo escolhido desde Jogos do Olhar. Nesses novos trabalhos, percebo o interesse pela tradição recente da arte brasileira, especialmente no que concerne aos espaços dos movimentos concreto e neoconcreto. Mas a condição desta relação é a de um flerte quase platônico que parece lhe servir como mito evocatório, suficiente, no entanto, para justificar sua contenção de aparência clássica, quase apolínea, embora aja ali, em meio a toda sua produção recente, uma cabeça emblemática que pode já anunciar surpresas futuras, a exemplo dos dois desenhos referendados por Clarival do Prado Valladares, em 1976.
É importante assinalar, nas atuais pinturas de Fernando Coelho, o caráter lúdico que nos remete à sua memória pessoal de infância, comum à maioria de nós, brasileiros. A dificuldade de acesso a brinquedos industrializados, em nossa sociedade, abre um formidável espaço de invenção, que resulta na existência de um importante design popular, carente de urgente inventário. Fernando Coelho revolve sua memória e nos conduz através de sua obra, do prazer dos encaixes, dessas articulações geométricas que o olhar acompanha e se satisfaz com suas acomodações; o prazer de conferir, no seu colorismo, a alegria vocacional brasileira; a plena satisfação em reconhecer, aqui e ali, formas e objetos que compõem uma iconografia do ideário festeiro das manifestações populares.

No preciso momento em que concluo este texto, Fernando me telefona e descreve, com alegria de menino, o surgimento de um elemento novo em uma pintura em andamento: um ratinho que povoou nossa infância, construído em papelão, com carretel de linha agregado a seu corpo, com uma borrachinha que tencionava o carretel. Assim que puxávamos a linha que saía do seu dorso, o brinquedo punha-se em disparada com movimentos similares ao de um camundongo. Brinquedos como esses se perfilavam em nossos interesses juntos com os cata-ventos, “Mané Gostoso”, apitos de madeira, peões, carrosséis, aviões de flandres, etc. Eram brinquedos que envolviam uma noção de física aplicada, básica pela sua simplicidade, mas inventiva pelos seus surpreendentes efeitos criativos.

Essa descrição do surgimento de um elemento à revelia de sua escolha, traz à tona a presença do acaso contido em suas pinturas anteriores, em que o artista não tinha o controle que tem nas pinturas atuais, pela própria natureza diferente de métodos. Fernando Coelho constrói hoje os seus quadros, aplicando-lhes o recurso de recorte de papéis pintados, segundo necessidades específicas, maneira pela qual nos remete a Matisse no período das colagens. O artista estrutura uma linha geral do trabalho e constrói um dédalo de pequenos elementos geométricos, feitos em cartões recortados e pintados que, fixados provisoriamente à superfície da tela, permite a Fernando processar, por eliminação ou acréscimo, o resultado que lhe venha a ser aprazível.
Esse ludismo de Fernando Coelho não é apenas evocatório de sua memória infantil, num tempo em que ele fabricava seus próprios carrinhos, ícones, aliás, muito presente em suas pinturas atuais, pela observação dos carrinhos de café e outras variações encontradas nas ruas de Salvador. Trata-se mesmo de uma vocação de sua natureza: Fernando Coelho é um artista de variados pragmatismos, tendo exercido profissões como designer, publicitário e arquiteto, atividades que reforçam o seu caráter natural para o lúdico como prazer no fazer, e como método estrutural de suas novas pinturas, que riem quando festejam conosco e se hieratizam quando pensam sobre nós.

¹ “Em agosto de 1976, ao fazer o catálogo de sua mais recente exposição, Fernando Coelho impôs dois de seus desenhos, dos mais insólitos, para questionar sobre sua pintura ricamente exemplificada. Desse modo, submetia o seu desenho ao confronto da pintura, sem outro propósito que o de validar o atributo mais intimo da obra. Aqueles dois desenhos do catálogo de 1976 chegavam como mensageiros de uma série a ser encetada no período imediato, na qual Fernando Coelho se dispunha a inquirir sobre a figura e o espaço”. Clarival do Prado Valladares, in Catálogo Fernando Coelho da Série Zanini S.A.
² Marcus de Lontra Costa, in Catálogo Jogos do Olhar, 1995.
Vauluízo Bezerra
Artista plástico
novembro de 2005

Nas várias fases que a sua pintura exibe nesta trajetória, seja esta através das articulações geométricas ou dos jardins e flores, ou ainda de uma presença mais marcante do desenho, atuante em determinados momentos da racionalidade ou da emoção, como a unificá-las, as imagens na sua pintura compõem o espaço com cores que surgem através de luzes por um movimento gestual a conduzir planos e formas, paisagens e figuras, desenho e invenção, e emergem possuindo uma sensualidade como mistério diante do olhar. Após surpreender a todos com a exposição itinerante por museus brasileiros, denominada Jogos do Olhar, onde rompia um caminho que vinha realizando até aquele momento através de um repertório temático de formas orgânicas, sua obra passa para as formas geométricas, transformando-se radicalmente o seu tema e o seu fazer, sem abandonar, entretanto, os seus compromissos básicos com a arte, como a ter no gráfico o instrumento de estruturação e unidade de seu desenho e pintura.

Fernando Coelho nasceu em Salvador, Bahia, em 1939. A sua primeira exposição individual foi em 1964, na Galeria Querino. Realizou individuais e coletivas em quase todo o Brasil e em países como Itália, Estados Unidos, Dinamarca, Portugal. Possui obras em acervos dos museus: Arte Moderna de São Paulo, Arte Moderna da Bahia, de Arte da Universidade Federal do Ceará, Arte Moderna do Rio Grande do Sul. Seus trabalhos constam do Dicionário de pintores brasileiros, de Walmir Ayala, e do Dicionário crítico da pintura no Brasil, de José Roberto Teixeira Leite. Ressalta-se ainda na sua trajetória a realização de painéis para algumas empresas em Salvador, Bahia, como Banco Comercial, Casaforte, Golden Cross, Centro Empresarial Iguatemi, Centro Administrativo da Bahia, Empreendimentos Odebrecht, Hospital Aliança, Aurenkar Transportes e, em São Paulo, para a Zanini – Cia. de Equipamentos Pesados S/A.

1) Uma pergunta mais geral, vamos iniciar pelo caminho da curiosidade. Você morava em Alagoinhas, interior da Bahia. O que o leva a optar pela pintura como meio de expressão e de vida?
Quando eu me decidi, foi nos anos 60. Mas a coisa é mais longe. Desde menino eu mexia com coisas criativas. Por exemplo, meus brinquedos, que foram motivo de uma série que eu fiz, eu mesmo fazia. Eu preferia fazer. Não só por morar no interior, e menino do interior gostava de fazer estas coisas. Mas o que me fascinava era a criação do brinquedo, a invenção. Não era nem não poder comprar um brinquedo. Meus pais teriam condições de me dar um brinquedo. Mas eu preferia inventar. Aí está uma origem que eu não determino. Também aí, neste tempo, na minha cidade, Alagoinhas, tinha um cinema, e os anúncios eram pintados. Não havia cartazes. E tinha um cara que era pintor do cinema. O trabalho dele era esse. Pintava cenas inteiras do filme da semana. Eu não saía de lá vendo-o pintar. E também colocava letreiros. Era fantástico. Um dia ele deixou que eu colocasse uma frase. Fiquei encantado.

2) A capital, a cidade da Bahia, como se dizia naquela época, vem em seguida. A ideia de ser pintor já estava como um objetivo quando desta vinda?
Vim para Salvador para estudar, para fazer Arquitetura, que era o que eu queria ser. Tinha fascínio por aquilo. Aqui chegando, precisando trabalhar, eu já desenhava, isto é 57/58, eu comecei a trabalhar com Antonio Rebouças numa fábrica de móveis, com máquinas, carpinteiros etc. Embora fábrica, ele estava mais preocupado com a forma que com a produção, em criar coisas novas, e Rebouças ali fazia cerâmicas, desenhos, esculturas, pinturas. Foi aí que aprendi a ser designer. Neste momento, realmente, está a semente de toda esta história. Ao deixar a fábrica, eu saí impregnado destas coisas e tinha 20 anos. Ao sair, conheci um pessoal que fazia outdoor, que naquela época era pintado sobre placas de zinco, e desenhava anúncios para outdoor ou letristas para placas de obras, todo esse negócio. Conheci pessoas de publicidade, e disto, com sócios, fundamos uma agência de publicidade, a Orgap. Na agência eu não fazia a parte de arte, era contato, mais comercial. Em casa é que fazia pintura. Foi nessa época que conheci o Museu de Arte Moderna, com Lina Bardi, no foyer do Teatro Castro Alves, e fiquei encantado com as exposições de Manabu Mabe, Antonio Bandeira e Jenner. E eu ia todo dia ao museu, pois a agência era na Avenida Sete.

3) E como é que a pintura como profissão vem para o primeiro plano na sua vida?
Os quadros continuavam a ser feitos e quem me descobriu foi Claudir Chaves, que tinha uma galeria com Renot. Ele achou que era bom o que eu fazia e começou a comercializar. Disto é que venho a fazer minha primeira exposição. Nesta época, circulando na cidade, eu já conhecia Jorge Amado, Jenner. E Jenner foi uma espécie de pai, de irmão, de padrinho, tudo para mim. Ele me ajudou muito, além de toda influência que eu tive da pintura dele. Eu, através de Jenner, entrei não só na pintura, mas nos colecionadores, no público, e pelas mãos de Jorge nas galerias, nos críticos. Eu fui assim abençoado por estas pessoas. Espero não os ter decepcionados.

4) E como foi chegar a esta pintura sendo agora um profissional? O ato criador é complexo, em si mesmo uma aventura, dependente de inúmeros fatores. Hoje, como sente o seu resultado, a importância desta opção na sua vida?
A importância não é no sentido das artes plásticas. A descoberta da criatividade é muito maior do que ser pintor. A maneira como a pintura pode ocorrer é que é o mais interessante. Você permitir este fluxo, que é inconsciente, e que para você permitir tem que chegar a um estado de liberdade, de desapego daquilo que pode significar materialmente, porque senão ele censura e não acontece coisa nenhuma. Se você não tiver este estado livre, você tem medo até de pintar, de perder a tela, pois ela vai se estragar, e aí vai ter prejuízo, só podendo fazer o que vai valer. Aí é que se quebra a cara e a coisa já não vale mais nada. Creio que a importância, não só da pintura, mas da vida, está na criatividade.

5) Como sente nestes quarenta anos a sua trajetória como pintor?
É esta possibilidade criativa que sempre me fez ficar atento. Eu tive três ou quatro etapas de minha carreira que, se eu quisesse ficar fazendo aquele negócio que eu fazia, me estabelecia normalmente, com sucesso, vendendo os quadros. Mas eu não consigo. Não quer dizer com isso que não seja possível fazer. Muita gente faz e dá certo. Mas eu não consigo. Então eu sempre tenho de estar fazendo uma coisa nova, porque isto aí é um problema existencial, a coisa nova lhe mantém vivo, interessante, vibrante. Você tem de descobrir coisas. Tem de ter o inusitado, a surpresa. Se você não faz um quadro que lhe surpreenda, surpreenda a você mesmo, não tem sentido fazer este quadro. Vai fazer para o mercado? Porque vende? Por determinada solução agradar? Não. O quadro tem de primeiro surpreender você, pois aí você tem a certeza de que vai poder surpreender os outros. Então isto é que me conduz. E vou continuar assim, pois, se aguentei até agora, daqui para frente é mais fácil, pois não dá mais para me permitir fazer coisas que eu não ache intensamente interessantes.

6) Vamos nos deter à sua trajetória, às suas fases, começando nos anos 60. O início foi gráfico? Apenas desenho?
Este início do desenho tem origem da prancheta. Vinha da publicidade e da arquitetura. O domínio da linha, do espaço, eles eram bastante evidentes. A construção era gráfica. A cor era para colorir desenho. Mas a primeira exposição já foi de pintor, em 1964, na Galeria Querino. Eu fui fazer mostra de desenho mesmo já nos anos 70. Agora, esta minha pintura inicial era bastante desenhada. Não era desenho de linhas. E a temática era a cidade, bastante influência de Jenner nesta primeira fase. A ida para o desenho em seguida foi uma forma de me libertar. No livro de Clarival do Prado Valadares, de 1964, sobre meu trabalho eu já estou liberto.

7) Nos anos 80, a sua pintura incorporou uma sensualidade, um erotismo, através da paisagem com flores, formas orgânicas, e cores em explosão. Como chegou a isto?
Esta passagem começou com os desenhos do livro de Clarival. Nestes desenhos comecei a perceber a sensualidade, a coisa erótica, de certa forma. E eu não tinha intenção nenhuma de fazer erotismo, como não tenho até hoje. Esta passagem foi feita pelo desenho. São de 77. Depois passei a fazer os desenhos no quadro, as cores, e no meio disto começou a surgir uma flor na mão, às vezes saindo da própria cabeça, no meio de um daqueles personagens. Essa coisa foi se transformando, e de uma certa forma naqueles bonecos, quando eu tirava o olho, virava este tipo de flor, uma flor que não existe. Aí começaram a surgir as cores. Muito tênue. Muito agradável. Mas logo passei a desenvolver e enxergar as flores — olhava em Arembepe os copos-de-leite, os antúrios —, e saía desta visão o que foi dito como erótico. Era uma coisa espontânea, que explodia sensações. Nascimento, fecundação, orgasmo, mas, para mim, não deixa de ser flor, era tudo flor.

8) Como entender que você para após fazer isso, radicaliza, e o próximo passo seja o construtivismo? Como foi esta saída do orgânico para o objeto geométrico?
Talvez ao radicalizar a emoção, que é o que estava fazendo, o passo seguinte seja mesmo a radicalidade da razão. A exaustão vem por começar já sentir uma espécie de repetição. Já não vinha do umbigo, vinha da cabeça. E vindo da cabeça, vamos logo para a cabeça. É o construtivismo. Talvez tenha sido tudo isto um exorcismo. Mas repetir eu não consigo.

9) Mas antes do construtivismo, houve uma parada mesmo. Você passou algum tempo, vamos dizer, distante da pintura. E quando voltou, talvez buscando o seu próprio início, voltou com o construtivismo. É verdadeiro este tempo de ausência no trabalho do pintor?
Sim, há uma parada. Fui realmente realizar o sonho do arquiteto e fazer a Vila de Sauípe. Projetei. Pintei. Quando acabou, eu estava ligado em arquitetura e veio na pintura o construtivismo, trabalhando com muita cor. Mas, seja como for, tenho duas coisas que trago dentro de mim: a organização e a explosão. E já são dez anos nele. As coisas agora já estão tomando outro rumo, um rumo que sintetiza vários deles, várias destas fases. Elas estão agora se encontrando, com um dado novo que é a minha entrada no quadro, a minha figura, e isto está chamando a minha atenção. Não estou entrando na pintura, mas entrando no quadro, e queira ou não queira, o artista se pinta a vida inteira. Esta coisa eu interpreto como a descoberta do tempo. Você chegando aos 70 anos. Eu ouço frequentemente me dizerem: você só pensa nisso, só fala nisso. Mas é que isto tem descobertas fantásticas. E viver são descobertas. O tempo está me dando isto, que é estar contemplando na minha pintura a mim mesmo. Eu conversar comigo mesmo. As minhas coisas, os meus brinquedos, as minhas lembranças, os carrinhos, as flores… Mas o que domina são duas ou três figuras que conversam entre si, discutem o que é que nós fizemos, e aí, no que estou fazendo agora, chega à memória.

10) Há um tema recorrente na sua pintura?
Dois caminhos estão presentes na minha pintura. O caminho racional, de construção, decorrente do fascínio pela arquitetura. E um outro, da emoção, pela descoberta da cor, do gesto. Mas estes dois caminhos se completam. Podem-se identificar formas, mas é uma pintura abstrata.

11) O que é o espaço na sua obra?
No livro de Clarival (mais uma vez tenho de remeter a este trabalho), ele já chama a atenção sobre a minha capacidade de conquista do espaço, ocupar uma folha de papel com duas linhas. Eu sinto a necessidade do grande espaço. Quando eu entro num quadro, eu preciso da questão espacial

12) E a cor?
Sempre fui considerado um bom colorista. A razão? Não tenho uma razão. Já fui a certas etapas de colorido bem baixo, discutindo passagens de preto e cinza, e daqui a pouco já sou a explosão de uma cor, um vermelho, um amarelo. Mas na maioria das vezes as duas coisas estão se comunicando.

13) O desenho, o espaço, a cor se completam na sua pintura, seja orgânica ou geométrica, pelo ritmo. O que é este para você?
Ele existe pela manifestação do afago, pela tentação de envolver. Meus quadros trazem uma proposta de abraço, de afeto, e que talvez seja representado por este ritmo que você fala. Raramente meus quadros são agressivos ou colocam o espectador na distância. Na maioria ele tende ao aconchego. Sou eu, minhas carências, meus desejos, minha maneira de ser, de fazer as coisas. Todo sujeito que cozinha faz isto. Cozinhar é uma maneira sutil de você abraçar o outro. Você não tem maneira mais delicada de fazer um gesto de afeto do que dizer: eu vou fazer, que seja um sanduíche, para você. Não há coisa maior que você possa fazer. Há nele toda uma carga emotiva e você não precisa mostrar isso como num abraço ou num beijo. Num quadro, ele aparece de inúmeras maneiras — mas, sempre, o ritmo é a tentativa do afago. Ele não é explícito, ele é proposto.

14) Há uma luminosidade no seu trabalho que surge de dentro da pintura. Como sente esta luz?
Quanto à luz, sim, esta vem de dentro. É uma coisa viva. Eu tenho esta coisa forte na pintura, a luz, para que esta sensualidade aflore sem que eu perceba.

15) Você faz parte da segunda geração do modernismo baiano. O que tem de Bahia no seu trabalho?
O que mais pode ser considerado de Bahia no meu trabalho é a cor. Principalmente essa vibração. Na fase geométrica apareceu mais explícita, mas são estas aventuras de cor onde eu vejo que eu sou baiano. A Bahia está nesta luz.

16) Como sente a arte agora?
Há duas coisas para discutir. Uma é o aparecimento do curador, em que este se transforma numa pessoa de muito poder, estando ligado em geral aos marchands, aos colecionadores, a instituições, o artista passando para um segundo plano, ou passando a ser cúmplice da curadoria. Isso está criando situações muito complicadas em termos de avaliações verdadeiras. Com esta situação, você pode criar avaliações de sucesso para um artista como se cria para artistas de cinema, de televisão, e que eu acho uma coisa perigosa, mas que vai uma hora chegar a uma solução. A outra são as técnicas novas. A perda do gesto, do envolvimento físico do artista com o trabalho que produz, criando uma transformação na produção da arte. O que não quer dizer que o resultado não seja bom. Mas você me perguntou sobre este processo que é a arte agora, e, talvez por ser de uma geração mais antiga, vejo isto com uma certa preocupação. Quando eu vejo um trabalho produzido desta forma, ele tende a não me emocionar, não consigo vibrar a ponto de me entusiasmar. Então, vejo um pouco perigoso o artista começar por esse processo, pelas facilidades. O bom da arte é a dificuldade.

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