O ritmo é o elemento responsável pela temporalidade musical, além de ser componente essencial para trazer cadência, compasso e regularidade, através da sucessão de tempos fortes ou fracos. Já o conceito de revolução está ligado a uma transformação radical de determinada estrutura, seja ela política, social, econômica ou tecnológica. A exposição J. Cunha: Ritmo e Revolução articula esses dois conceitos que norteiam a produção atual desse importante artista.
Neste conjunto de obras inéditas, somos imersos em uma experiência estética que evidencia ainda mais a presença do ritmo e da revolução, conceitos que permeiam todo o corpo da obra de J. Cunha. Na fortuna crítica das reflexões de Hans-Georg Gadamer, em A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, o trabalho de Cunha oferece uma leitura da arte como um fenômeno dinâmico e vivencial. Para ele, a arte, tal como o jogo para Gadamer, é uma forma de participação ativa, um campo em que se desdobram forças simbólicas, rituais e sociais.
A produção de J. Cunha insere-se nesse campo por meio da intersecção entre o ritmo do carnaval negro de Salvador e o ímpeto revolucionário que emerge das lutas históricas de resistência da diáspora africana. A experiência de Palmares, enquanto símbolo maior de resistência e formação de coletividade negra no Brasil, aqui reverbera como um núcleo irradiador de reflexões contemporâneas sobre os ajuntamentos urbanos e os desafios da moradia. A revolta, a busca por autonomia e a resistência física e simbólica de Palmares ecoam nas obras de Cunha, resgatando o sentido da arte como ato de insurgência contra o esquecimento e a marginalização.
Sua trajetória artística aprofunda-se nos símbolos afro-brasileiros, dialogando com a ancestralidade africana e reinterpretando-a no contexto da urbanidade contemporânea. Desse modo, sua paleta de cores se configura como uma cartografia da resistência coletiva. A revolução, em seu trabalho, não se manifesta apenas na forma, mas no âmago: suas criações, conectadas ao Ilê Aiyê e a outras agremiações, são afirmações de identidade em um espaço urbano muitas vezes negado às populações negras.
O carnaval, enquanto festa popular e política, é para Cunha o palco onde se inscrevem as tensões da contemporaneidade – as questões de pertencimento, moradia, o estatuto das cidades e os instrumentos das políticas urbanas que reconfiguram a paisagem social de Salvador e de outras cidades brasileiras. Sua produção simbólica e artística celebra a ancestralidade africana e, sobretudo, a atualiza, trazendo-a para o centro das discussões sobre espaço, identidade e coletividade nas metrópoles.
A exposição revela, ainda, como o ritmo – na música, na dança e nas artes visuais – se torna, para o artista, a principal linguagem de revolução. Assim como Palmares se erigiu como símbolo de resistência pela coletividade, a obra de J. Cunha reflete o poder do coletivo em moldar narrativas de contestação e de ocupação dos espaços. Através de formas, símbolos e cores, ele nos convida a refletir sobre o papel da arte como um espaço de luta e transformação.
Em seu vasto trabalho como cenógrafo, figurinista e artista plástico, Cunha participa ativamente desse jogo estético, onde o símbolo se faz ato político. Os estádios de futebol, tal como o carnaval, emergem em sua obra como territórios plásticos, onde a formação da identidade tropicalista brasileira encontra sua expressão visual. Assim como o jogo de futebol reúne multidões em uma coreografia coletiva, a arte de Cunha organiza elementos da cultura popular em uma sintonia rítmica que transita entre a festa e a revolução. Para ele, tanto o carnaval quanto os estádios tornam-se metáforas de ocupação: espaços de performance social, onde a resistência se manifesta no ritmo dos corpos e na plasticidade dos elementos visuais.
Em Ritmo e revolução, é apresentando um espaço onde a dimensão estética se confunde com a beleza da resistência, onde o jogo artístico se revela não como uma simples distração, mas como uma prática vital, capaz de questionar e reconfigurar as bases da convivência social. É, enfim, uma arte que faz ressoar o espírito de Palmares nas ruas do presente e se transforma em ato revolucionário, em uma celebração contínua da vida, da resistência e da memória coletiva afro-brasileira.
Danillo Barata e Thais Darzé, curadores