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Fernando Coelho

Opening
05 de February de 2010

Schedule
19 às 22h

Exhibition
06 de February a 06 de March

Nas várias fases que a sua pintura exibe nesta trajetória, seja esta através das articulações geométricas ou dos jardins e flores, ou ainda de uma presença mais marcante do desenho, atuante em determinados momentos da racionalidade ou da emoção, como a unificá-las, as imagens na sua pintura compõem o espaço com cores que surgem através de luzes por um movimento gestual a conduzir planos e formas, paisagens e figuras, desenho e invenção, e emergem possuindo uma sensualidade como mistério diante do olhar. Após surpreender a todos com a exposição itinerante por museus brasileiros, denominada Jogos do Olhar, onde rompia um caminho que vinha realizando até aquele momento através de um repertório temático de formas orgânicas, sua obra passa para as formas geométricas, transformando-se radicalmente o seu tema e o seu fazer, sem abandonar, entretanto, os seus compromissos básicos com a arte, como a ter no gráfico o instrumento de estruturação e unidade de seu desenho e pintura.

Fernando Coelho nasceu em Salvador, Bahia, em 1939. A sua primeira exposição individual foi em 1964, na Galeria Querino. Realizou individuais e coletivas em quase todo o Brasil e em países como Itália, Estados Unidos, Dinamarca, Portugal. Possui obras em acervos dos museus: Arte Moderna de São Paulo, Arte Moderna da Bahia, de Arte da Universidade Federal do Ceará, Arte Moderna do Rio Grande do Sul. Seus trabalhos constam do Dicionário de pintores brasileiros, de Walmir Ayala, e do Dicionário crítico da pintura no Brasil, de José Roberto Teixeira Leite. Ressalta-se ainda na sua trajetória a realização de painéis para algumas empresas em Salvador, Bahia, como Banco Comercial, Casaforte, Golden Cross, Centro Empresarial Iguatemi, Centro Administrativo da Bahia, Empreendimentos Odebrecht, Hospital Aliança, Aurenkar Transportes e, em São Paulo, para a Zanini – Cia. de Equipamentos Pesados S/A.

Prazer Agonia Espanto

Arte é tudo aquilo que se transforma
sem nunca deixar de ser ele mesmo.
Fernando Pessoa

Conheci o fabulário visual de Fernando Coelho no início dos anos 70 quando no imaginário do filho de Alagoinhas – cidade cravada em pleno recôncavo baiano e celeiro de uma expressiva e influente cultura popular – prevalecia em suas telas os excessos do barroco e o mistério das procissões e festas baianas. Mas o requinte da cor desenhando a forma já anunciava as futuras ousadias estéticas.

Encontrei Fernando entusiasmado e feliz em 1975 no seu amplo atelier no Horto Florestal em Salvador. Ali estava pondo a risco os atrevimentos de seus personagens fantásticos e circenses equilibrando-se em linhas de extremo perigo, tanto para eles, como também para a vida de artista. Fernando saia definitivamente da pintura ligada a uma cultura de raiz e entrava com expressiva densidade e coragem pela porta da frente da mais vasta universalidade.

Nas nossas longas e inspiradoras conversas, se interpôs uma antologia que estava a encantá-lo, a obra em prosa de Fernando Pessoa, em especial o capitulo Da Arte em que nos fala o poeta sobre algumas cousas fundamentais para se entender a pintura do outro Fernando em Pessoa: A arte é notação nítida de uma impressão errada (falsa). (A notação nítida duma impressão exata chama-se ciência). O processo artístico é relatar essa impressão falsa, de modo que pareça absolutamente natural e verdadeira.

E ali estava o pintor a falsear belamente a realidade com extrema consCiência do ofício a superpor camadas de sonhos às veladuras precisas das tintas e objetos adicionados numa obra de grande força no gestual gráfico. Estava certo de que Pessoa também tinha razão mais uma vez: A OBRA DE ARTE é primeiro obra, depois obra de arte.

Assim, Fernando Coelho, compreendeu naquele momento de transição e coragem, o compromisso de construir em sua estória a OBRA DE ARTE como mestra da vida (…) autoexpressão lutando para ser absoluta. E disse ainda Pessoa: Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura. É isso, o que Fernando Coelho tornou visível na grande mostra naquele ano de 1975 no Museu de Arte Moderna da Bahia, que tive a honra de fazer a curadoria, como na outra mostra, Jogos do Olhar, de 1994, no mesmo museu. Nela, deixa o fantástico de lado e põe os pés em sua terra ao revisitar e transmutar a criativa e interativa arte de seu povo. É também disso, o que se renovou e amadureceu em outra importante mostra de pinturas realizada, em 2005 na Galeria Paulo Darzé, onde o rigor formal beirava a raia do construtivismo. Na individual podia-se também vislumbrar claramente a inspiração dos mestres históricos e universais da linguagem construtiva, e mesmo, a de um outro genial baiano, Rubem Valentim, cujas obras seminais entre as décadas de 50 e 60 – que são mais fontes de inspiração do que influências – e que são por Fernando, transcendidas e belamente transfiguradas.

Fernando nesta mesma mostra começa a desconstruir seus construtivos e requintados jogos de armar com sua usual liberdade gráfica da criança lúdica nele habitada. Um exemplo: as pinturas Cabeça e Carrinho de brinquedo, que são como projetos iniciais a serem expandidos e potencializados nesta nova série maravilhosa de pinturas aqui expostas. Toda ela teve como ponto de partida a bi-polarização do cérebro pretendida pela ciência, já que a espiritualidade defende uma unificação para a busca do equilíbrio e da não dualidade. Fernando faz uma entrada de cabeça no seu obscuro e desconhecido mundo, o inconsciente atonal redimensionado. Prevalece, no entanto, não só mais o lado esquemático dividido entre esquerdo e direito, razão e intuição, com a consciência ocidental sempre cindida entre dois polos: bem e mal, preto e branco, negativo e positivo… O artista desenha outra linha de equilíbrio sem dualidades mesmo repartindo algumas obras em duas telas verticais como dípticos e criando situações quase antagônicas. Fernando Coelho diz que entre a agonia e o prazer de criar, tão visceral e dual em um artista, surge das duas telas, uma terceira possibilidade, ou, uma situação adversa e complementar que está somente a depender da imaginação pública.

Submergindo no mais fundo do subjetivo e sempre agindo com grande liberdade poética, Fernando torna-se com estas pinturas, um peregrino pelas terras pagãs do seu inconsciente e encarna os mesmos desejos dos mestres da pintura em sua passagem do moderno ao contemporâneo. Assim podemos viajar com imenso prazer inspirador pela história da arte do século XX e vislumbrar dela, ecos em suas obras: nos organismos cósmicos em Kandisnky; da liberdade na cor que se faz forma nos papeis recortados em Matisse; na ousadia formal de desconstruir-se em Malevitch; na busca de tornar moderno a ancestralidade em Klee e em Miró; na pureza da sabedoria cromática em Morandi ou em Volpi…

 

A finalidade da arte não é agradar.

O prazer é aqui um meio; não é neste caso um fim.

A finalidade da arte é elevar.

Fernando Pessoa

Fernando nos traz, felizmente, novas questões em sua pintura em meio ao mal estar contemporâneo que se instalou assim na vida como na arte, trazendo sombras de alienação em um mundo cada vez menos espiritual. Mas a maravilha de suas descobertas com a matéria pintada, transcendida e redimensionada, nos dá a novidade do alento de recuperar por meio do que se transcende e do que disso ficará como substrato poético: o desejo da sabedoria perdida de uma certa inocência e pureza que por falta, tornou mais impiedosa e menos imaginosa a mente ocidental.

Nestas pinturas dar-se uma liberdade tão imensa do direito de pegar delírio, que se imagina estar diante de uma obra em plenitude e êxtase do que não é somente a força necessária do que é justo e do que é belo. O belo já é a verdade de cada artista que se reinventa e assim reinventa o mundo. O poeta Manoel de Barros disse: O que não invento é falso. Frederico Fellini disse algo parecido: A mentira é a alma do espetáculo. Por isso, o cineasta preferia um mar imaginário feito em plástico a facilidade de filmar um real. O movimento de maré era causado por grandes ventiladores e ao final do filme La Nave Va, revela o truque sem muitos pudores.

Fernando sempre inventou sua pintura com extrema paixão pelo ato do prazer de pintar. Nele, sua verdade quase absoluta, como se outro dito de Pessoa fosse o mais real: O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não tem importância. Assim a OBRA DE ARTE é o primevo ato de desatar a luta absoluta que se trava no atelier do artista, uma batalha árdua quase sempre contra ele mesmo, isto é, contra todas as suas crenças e certezas apreendidas.

Nas telas e mostras, a coragem de expor seus medos e angústias, seja o lado temeroso da idade que Fernando coloca na pintura Como vai sua cabeça 70 anos depois?  A obra é assinada no dia do seu aniversário, ou, na entrada de cabeça no desconhecido, no escuro das perguntas que na arte, mas do que na vida, ficam sempre sem respostas. Como as tantas dúvidas que lhe atormentam a alma em seus pedidos de carência e afeto para si e para o Mundo.

Assim como Caetano Veloso diz na canção O homem velho: Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll. As coisas migram e ele serve de farol, Fernando agora compreende com mais imensidão e disciplina sua disponibilidade para aprender a morrer para o que já não lhe serve mais a solitude da vida, ou a solidão das procuras estéticas onde cada vez mais coabita corajosamente uma criança e um velho. Ambos são personagens de dois momentos da grandeza do drama universal que traz o homem para o lugar do eterno e do maduro. Nele, o universo infantil vai transformando os fantasmas do medo do ser que se interpõe entre o dito prazer e a agonia do ato da criação: solitário em si, e ao mesmo tempo, tão solidário com o Outro. E por isso, como Veloso na mesma canção: Já tem coragem de saber que imortal.

O fim da arte superior é libertar.

Fernando Pessoa

Agora todo poder do aprendizado é transmutado em poderosos ícones vivenciais, nestas pinturas que velam e desvelam a poesia no seu íntimo, postas a nu e a prova no atelier que para Fernando Coelho é uma espécie de caixa preta, a câmara escura de revelar e transfigurar o que não é só o mágico. Também o atelier como o lugar do imaginário se por pronto a todas as adversidades e diversidades. Lugar do corpo a corpo com matéria, alma e pensamento. Local de libertar tudo que é represa dentro e quer a cumplicidade solta do Outro lá fora.

O ponto de partida é sempre o desafio da tela branca, espaço ainda virtual do sonho, que já não lhe é mais tão misterioso e surpreendente. Não lhe é mais um espaço que dá tanto medo de avançar com o imaginário, mas que solucionado com sua vasta amplitude criativa, a cada dia se revela o lugar de múltiplas possibilidades e potencialidades de parir uma outra OBRA ao desvelar humanidades desconhecidas.

A poesia do essencial lhe dá desejo culto de desafiar a si mesmo como ato de meditação experimental ao lograr uma liberdade de sempre ser, estar no abismo necessário da impermanência. Correr riscos à risca, amar… Diz a frase de Gaston de Bachelard que o artista tanto ama: Nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha.

Fernando Coelho sonha na alternância do invisível com o visível ao trazer o primeiro cadinho pro colo inquieto do outro. Papel crucial da arte. Um exemplo: suas anotações fugais sobre os guardanapos brancos de papel que pinta com a soltura do descompromisso. Ele vai colá-los sem receio nas telas proporcionando o efeito das surpresas casuais em soluções que lhes dão plena agilidade nos jogos informais. Estes quadrados são quase texturas-fundos das figuras imaginárias que se fundem as formas que recorta, monta, desmonta na procura de resoluções quase infinitas. Quebra cabeças de resolutas ludicidades com os quais brinca se ser o artista que sempre desafia a si mesmo. Encontra assim um inusual resultado que parece deixar a obra nunca por completa, como Guimarães Rosa – por meio de Riobaldo – queria que as pessoas estivessem, não sempre iguais e nunca por terminadas.

Se para Pessoa a Arte é o aperfeiçoamento do mundo exterior, para o outro em Coelho, a sua obra de arte é a busca de um aperfeiçoamento interior. Sábio do profundo jogo dual de erros e acertos que a vida em si nos coloca para desafiar o que pensamos ser tão estável e já parte do absoluto.

Sua extraordinária serie de novas pinturas coloca-o diante da matéria ordinária de coisas curiosas que assimila ao cola-las sobre a tela, dando-lhes leveza e nobreza, mágica ao simples, criando uma complexa originalidade construtiva que nos põe em poder de suspensão e espanto.

Bené Fonteles
Brasília, janeiro de 2010

 

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O PARAÍSO COLORIDO de Fernando Coelho

A cada pintor seu paraíso
Gastón Bachelard

A pintura de Fernando Coelho se apresenta a nossa contemplação como uma construção lúdica, cheia de efeitos cromáticos onde saber e afeto marcam presença. Um verdadeiro paraíso habitado pela passagem do tempo que imprime na tela, através do olhar desconfiado e da mão comprometida com a elaboração artesanal, imagens de uma infância que perdeu a ingenuidade, teme o futuro e a incerteza da vida. Assusta e fascina. O presente registrado na tela é um conjunto de elementos acumulados na memória. A pintura renasce da arqueologia da memória de um tempo imemorial carregada de sentimento humano para o pintor. Pintar e sonhar são motivos para viver e trapacear as maldades do mundo.

Figuras perturbadoras de desenhos lúdicos e expressionistas realizados há cerca de trinta anos atrás, reaparecem na superfície das obras atuais. Entre a figura e a abstração, a pintura desse artista, nesse momento, com a utilização de recursos de colagens que foi um procedimento importante na evolução do cubismo, ritmo intenso e explosão cromática, alcança uma nova dimensão, afirma sua força diante das outras linguagens da contemporaneidade e exalta a atualidade desse velho suporte.

Composições densas, elaboradas, mas sem perder a espontaneidade. A luz transborda, a cor chega ao êxtase. Sem fazer concessão ao belo do senso comum, o artista despreza a realidade para refazer a pintura plena, onde nada ocupa o espaço sem uma razão, mesmo que, paradoxalmente, esta seja da ordem da emoção. Os efeitos plásticos obedecem a uma organização própria.

Esse paraíso infantil e colorido com um jardim florido ao redor é um grito contra o desaparecimento do amor no mundo da máquina. No meio de tanta alegria e humor alguma coisa emerge do fundo do quadro que parece pressentir a ameaça do desconhecido, do futuro. Sem deixar de ser ao mesmo tempo um lugar artificial para responder às provocações especificas da forma, da cor, do gesto angustiado e o porquê da figura. Difícil identificar o que ocorre no interior de uma cabeça lamenta o pintor com suas cabeças fantasmagóricas.  As causas e os efeitos não estão evidentes. Fazemos a identificação e arriscamos conclusões a partir de nossas próprias carências e da nossa vontade sempre renovada de ver.

A ação da cor fala, dá vida às formas e às imagens. O pintor desenhista, com toda sua sensibilidade para a cor, inventa outra natureza e outra anatomia, com uma agitada gestualidade para reverenciar o expressionismo. Tudo que está na tela quer ser visto de forma dramática, sem rejeitar as atribuições individuais de sentido. O espectador embriagado de tanto ver, descobre a euforia da infância e a solidão da velhice, registradas pelo devaneio do pincel do artista. Cada tela narra um sonho ou um pesadelo, com resultado estético capaz de fazer um convite para uma meditação sobre a natureza das coisas e da arte, como um processo aberto à vivência do sujeito.

As figuras aparecem não por acaso, elas existem no inconsciente do artista. Uma festa de referências infantis: jogos, máscaras, palhaço, maestro, fantasmas que falam de um passado não resolvido. A vida parece uma brincadeira, um instante que passa e deixa no ar um riso ou um gemido. Com toda sua autonomia pictórica, é impossível abstrair dessas pinturas as conotações fora do mundo da arte, mas elas não são pontos de apoio, são motivos para o sujeito experimentar e realizar o desejo de pintar. A subjetividade que emerge do fundo da tela, o que foi recalcado fica em segundo plano, os efeitos pictóricos falam mais alto.

Almandrade
(artista plástico, poeta e arquiteto)

1) Uma pergunta mais geral, vamos iniciar pelo caminho da curiosidade. Você morava em Alagoinhas, interior da Bahia. O que o leva a optar pela pintura como meio de expressão e de vida?

Quando eu me decidi, foi nos anos 60. Mas a coisa é mais longe. Desde menino eu mexia com coisas criativas. Por exemplo, meus brinquedos, que foram motivo de uma série que eu fiz, eu mesmo fazia. Eu preferia fazer. Não só por morar no interior, e menino do interior gostava de fazer estas coisas. Mas o que me fascinava era a criação do brinquedo, a invenção. Não era nem não poder comprar um brinquedo. Meus pais teriam condições de me dar um brinquedo. Mas eu preferia inventar. Aí está uma origem que eu não determino. Também aí, neste tempo, na minha cidade, Alagoinhas, tinha um cinema, e os anúncios eram pintados. Não havia cartazes. E tinha um cara que era pintor do cinema. O trabalho dele era esse. Pintava cenas inteiras do filme da semana. Eu não saía de lá vendo-o pintar. E também colocava letreiros. Era fantástico. Um dia ele deixou que eu colocasse uma frase. Fiquei encantado.

 

2) A capital, a cidade da Bahia, como se dizia naquela época, vem em seguida. A ideia de ser pintor já estava como um objetivo quando desta vinda?

Vim para Salvador para estudar, para fazer Arquitetura, que era o que eu queria ser. Tinha fascínio por aquilo. Aqui chegando, precisando trabalhar, eu já desenhava, isto é 57/58, eu comecei a trabalhar com Antonio Rebouças numa fábrica de móveis, com máquinas, carpinteiros etc. Embora fábrica, ele estava mais preocupado com a forma que com a produção, em criar coisas novas, e Rebouças ali fazia cerâmicas, desenhos, esculturas, pinturas. Foi aí que aprendi a ser designer. Neste momento, realmente, está a semente de toda esta história. Ao deixar a fábrica, eu saí impregnado destas coisas e tinha 20 anos. Ao sair, conheci um pessoal que fazia outdoor, que naquela época era pintado sobre placas de zinco, e desenhava anúncios para outdoor ou letristas para placas de obras, todo esse negócio. Conheci pessoas de publicidade, e disto, com sócios, fundamos uma agência de publicidade, a Orgap. Na agência eu não fazia a parte de arte, era contato, mais comercial. Em casa é que fazia pintura. Foi nessa época que conheci o Museu de Arte Moderna, com Lina Bardi, no foyer do Teatro Castro Alves, e fiquei encantado com as exposições de Manabu Mabe, Antonio Bandeira e Jenner. E eu ia todo dia ao museu, pois a agência era na Avenida Sete.

 

3) E como é que a pintura como profissão vem para o primeiro plano na sua vida?

Os quadros continuavam a ser feitos e quem me descobriu foi Claudir Chaves, que tinha uma galeria com Renot. Ele achou que era bom o que eu fazia e começou a comercializar. Disto é que venho a fazer minha primeira exposição. Nesta época, circulando na cidade, eu já conhecia Jorge Amado, Jenner. E Jenner foi uma espécie de pai, de irmão, de padrinho, tudo para mim. Ele me ajudou muito, além de toda influência que eu tive da pintura dele. Eu, através de Jenner, entrei não só na pintura, mas nos colecionadores, no público, e pelas mãos de Jorge nas galerias, nos críticos. Eu fui assim abençoado por estas pessoas. Espero não os ter decepcionados.

 

4) E como foi chegar a esta pintura sendo agora um profissional? O ato criador é complexo, em si mesmo uma aventura, dependente de inúmeros fatores. Hoje, como sente o seu resultado, a importância desta opção na sua vida?

A importância não é no sentido das artes plásticas. A descoberta da criatividade é muito maior do que ser pintor. A maneira como a pintura pode ocorrer é que é o mais interessante. Você permitir este fluxo, que é inconsciente, e que para você permitir tem que chegar a um estado de liberdade, de desapego daquilo que pode significar materialmente, porque senão ele censura e não acontece coisa nenhuma. Se você não tiver este estado livre, você tem medo até de pintar, de perder a tela, pois ela vai se estragar, e aí vai ter prejuízo, só podendo fazer o que vai valer. Aí é que se quebra a cara e a coisa já não vale mais nada. Creio que a importância, não só da pintura, mas da vida, está na criatividade.

 

5) Como sente nestes quarenta anos a sua trajetória como pintor?

É esta possibilidade criativa que sempre me fez ficar atento. Eu tive três ou quatro etapas de minha carreira que, se eu quisesse ficar fazendo aquele negócio que eu fazia, me estabelecia normalmente, com sucesso, vendendo os quadros. Mas eu não consigo. Não quer dizer com isso que não seja possível fazer. Muita gente faz e dá certo. Mas eu não consigo. Então eu sempre tenho de estar fazendo uma coisa nova, porque isto aí é um problema existencial, a coisa nova lhe mantém vivo, interessante, vibrante. Você tem de descobrir coisas. Tem de ter o inusitado, a surpresa. Se você não faz um quadro que lhe surpreenda, surpreenda a você mesmo, não tem sentido fazer este quadro. Vai fazer para o mercado? Porque vende? Por determinada solução agradar? Não. O quadro tem de primeiro surpreender você, pois aí você tem a certeza de que vai poder surpreender os outros. Então isto é que me conduz. E vou continuar assim, pois, se aguentei até agora, daqui para frente é mais fácil, pois não dá mais para me permitir fazer coisas que eu não ache intensamente interessantes.

 

6) Vamos nos deter à sua trajetória, às suas fases, começando nos anos 60. O início foi gráfico? Apenas desenho?

Este início do desenho tem origem da prancheta. Vinha da publicidade e da arquitetura. O domínio da linha, do espaço, eles eram bastante evidentes. A construção era gráfica. A cor era para colorir desenho. Mas a primeira exposição já foi de pintor, em 1964, na Galeria Querino. Eu fui fazer mostra de desenho mesmo já nos anos 70. Agora, esta minha pintura inicial era bastante desenhada. Não era desenho de linhas. E a temática era a cidade, bastante influência de Jenner nesta primeira fase. A ida para o desenho em seguida foi uma forma de me libertar. No livro de Clarival do Prado Valadares, de 1964, sobre meu trabalho eu já estou liberto.

 

7) Nos anos 80, a sua pintura incorporou uma sensualidade, um erotismo, através da paisagem com flores, formas orgânicas, e cores em explosão. Como chegou a isto?

Esta passagem começou com os desenhos do livro de Clarival. Nestes desenhos comecei a perceber a sensualidade, a coisa erótica, de certa forma. E eu não tinha intenção nenhuma de fazer erotismo, como não tenho até hoje. Esta passagem foi feita pelo desenho. São de 77. Depois passei a fazer os desenhos no quadro, as cores, e no meio disto começou a surgir uma flor na mão, às vezes saindo da própria cabeça, no meio de um daqueles personagens. Essa coisa foi se transformando, e de uma certa forma naqueles bonecos, quando eu tirava o olho, virava este tipo de flor, uma flor que não existe. Aí começaram a surgir as cores. Muito tênue. Muito agradável. Mas logo passei a desenvolver e enxergar as flores — olhava em Arembepe os copos-de-leite, os antúrios —, e saía desta visão o que foi dito como erótico. Era uma coisa espontânea, que explodia sensações. Nascimento, fecundação, orgasmo, mas, para mim, não deixa de ser flor, era tudo flor.

 

8) Como entender que você para após fazer isso, radicaliza, e o próximo passo seja o construtivismo? Como foi esta saída do orgânico para o objeto geométrico?

Talvez ao radicalizar a emoção, que é o que estava fazendo, o passo seguinte seja mesmo a radicalidade da razão. A exaustão vem por começar já sentir uma espécie de repetição. Já não vinha do umbigo, vinha da cabeça. E vindo da cabeça, vamos logo para a cabeça. É o construtivismo. Talvez tenha sido tudo isto um exorcismo. Mas repetir eu não consigo.

 

9) Mas antes do construtivismo, houve uma parada mesmo. Você passou algum tempo, vamos dizer, distante da pintura. E quando voltou, talvez buscando o seu próprio início, voltou com o construtivismo. É verdadeiro este tempo de ausência no trabalho do pintor?

Sim, há uma parada. Fui realmente realizar o sonho do arquiteto e fazer a Vila de Sauípe. Projetei. Pintei. Quando acabou, eu estava ligado em arquitetura e veio na pintura o construtivismo, trabalhando com muita cor. Mas, seja como for, tenho duas coisas que trago dentro de mim: a organização e a explosão. E já são dez anos nele. As coisas agora já estão tomando outro rumo, um rumo que sintetiza vários deles, várias destas fases. Elas estão agora se encontrando, com um dado novo que é a minha entrada no quadro, a minha figura, e isto está chamando a minha atenção. Não estou entrando na pintura, mas entrando no quadro, e queira ou não queira, o artista se pinta a vida inteira. Esta coisa eu interpreto como a descoberta do tempo. Você chegando aos 70 anos. Eu ouço frequentemente me dizerem: você só pensa nisso, só fala nisso. Mas é que isto tem descobertas fantásticas. E viver são descobertas. O tempo está me dando isto, que é estar contemplando na minha pintura a mim mesmo. Eu conversar comigo mesmo. As minhas coisas, os meus brinquedos, as minhas lembranças, os carrinhos, as flores… Mas o que domina são duas ou três figuras que conversam entre si, discutem o que é que nós fizemos, e aí, no que estou fazendo agora, chega à memória.

 

10) Há um tema recorrente na sua pintura?

Dois caminhos estão presentes na minha pintura. O caminho racional, de construção, decorrente do fascínio pela arquitetura. E um outro, da emoção, pela descoberta da cor, do gesto. Mas estes dois caminhos se completam. Podem-se identificar formas, mas é uma pintura abstrata.

 

11) O que é o espaço na sua obra?

No livro de Clarival (mais uma vez tenho de remeter a este trabalho), ele já chama a atenção sobre a minha capacidade de conquista do espaço, ocupar uma folha de papel com duas linhas. Eu sinto a necessidade do grande espaço. Quando eu entro num quadro, eu preciso da questão espacial

 

12) E a cor?

Sempre fui considerado um bom colorista. A razão? Não tenho uma razão. Já fui a certas etapas de colorido bem baixo, discutindo passagens de preto e cinza, e daqui a pouco já sou a explosão de uma cor, um vermelho, um amarelo. Mas na maioria das vezes as duas coisas estão se comunicando.

 

13) O desenho, o espaço, a cor se completam na sua pintura, seja orgânica ou geométrica, pelo ritmo. O que é este para você?

Ele existe pela manifestação do afago, pela tentação de envolver. Meus quadros trazem uma proposta de abraço, de afeto, e que talvez seja representado por este ritmo que você fala. Raramente meus quadros são agressivos ou colocam o espectador na distância. Na maioria ele tende ao aconchego. Sou eu, minhas carências, meus desejos, minha maneira de ser, de fazer as coisas. Todo sujeito que cozinha faz isto. Cozinhar é uma maneira sutil de você abraçar o outro. Você não tem maneira mais delicada de fazer um gesto de afeto do que dizer: eu vou fazer, que seja um sanduíche, para você. Não há coisa maior que você possa fazer. Há nele toda uma carga emotiva e você não precisa mostrar isso como num abraço ou num beijo. Num quadro, ele aparece de inúmeras maneiras — mas, sempre, o ritmo é a tentativa do afago. Ele não é explícito, ele é proposto.

 

14) Há uma luminosidade no seu trabalho que surge de dentro da pintura. Como sente esta luz?

Quanto à luz, sim, esta vem de dentro. É uma coisa viva. Eu tenho esta coisa forte na pintura, a luz, para que esta sensualidade aflore sem que eu perceba.

 

15) Você faz parte da segunda geração do modernismo baiano. O que tem de Bahia no seu trabalho?

O que mais pode ser considerado de Bahia no meu trabalho é a cor. Principalmente essa vibração. Na fase geométrica apareceu mais explícita, mas são estas aventuras de cor onde eu vejo que eu sou baiano. A Bahia está nesta luz.

 

16) Como sente a arte agora?

Há duas coisas para discutir. Uma é o aparecimento do curador, em que este se transforma numa pessoa de muito poder, estando ligado em geral aos marchands, aos colecionadores, a instituições, o artista passando para um segundo plano, ou passando a ser cúmplice da curadoria. Isso está criando situações muito complicadas em termos de avaliações verdadeiras. Com esta situação, você pode criar avaliações de sucesso para um artista como se cria para artistas de cinema, de televisão, e que eu acho uma coisa perigosa, mas que vai uma hora chegar a uma solução. A outra são as técnicas novas. A perda do gesto, do envolvimento físico do artista com o trabalho que produz, criando uma transformação na produção da arte. O que não quer dizer que o resultado não seja bom. Mas você me perguntou sobre este processo que é a arte agora, e, talvez por ser de uma geração mais antiga, vejo isto com uma certa preocupação. Quando eu vejo um trabalho produzido desta forma, ele tende a não me emocionar, não consigo vibrar a ponto de me entusiasmar. Então, vejo um pouco perigoso o artista começar por esse processo, pelas facilidades. O bom da arte é a dificuldade.

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