O rápido desenvolvimento dos centros urbanos e o impacto dos avanços tecnocientíficos a partir da segunda metade do século dezenove alteraram os posicionamentos dos artistas acerca das relações produtivas e da interação humana com o meio ambiente. Nas primeiras décadas do século 21, enfrentamos uma situação análoga, não apenas pela intensificação da exploração do trabalho e da natureza, mas também devido à acelerada difusão dos meios eletrônicos de comunicação. Ao impor determinados formatos de socialização e monitoramento, os dispositivos digitais reconfiguram a mobilidade, os relacionamentos, a memória e o próprio modo de se estar presente em algum lugar.
As imagens surgiram como presenças que demarcam ausências e que, em determinados lugares, promovem trocas de olhares com os que já não estão. Conforme passamos os dedos pelas telas dos dispositivos eletrônicos, os rostos sem olhar, que aparecem momentaneamente por meio de mensagens e notificações, distraem a atenção para longe de onde estamos para outro lugar. Ao contrário das imagens físicas, que necessariamente estão em algum lugar, as imagens digitalizadas estão em toda e em nenhuma parte, pois habitam, nas nuvens do ciberespaço, um “não-lugar”, conforme os antropólogos denominam os locais de passagem, caracterizados pela hipervisibilidade e pela ausência de signos identitários relevantes, como aeroportos e terminais viários, por exemplo. Submetidos a um regime sob o qual somos convocados a responder aos chamados das telas a cada minuto, fomos condenados a nunca estar atentos onde estamos. As paisagens de Rodrigo Andrade exercem um contraponto a essa desterritorialização automatizada. Não apenas convidam, como toda obra de arte, a uma contemplação duradoura e a uma imersão reflexiva, cada vez mais rara na época da avaliação visual instantânea, mas também proporcionam uma experiência de fruição que se configura como acontecimento, uma vez que muda o modo como vemos a própria pintura. Rodrigo Andrade faz da pintura de observação a reafirmação de uma modalidade de presença que a cultura digital agride.
Frequente na pintura antiga e oriental, a natureza ressurge como pano de fundo de ações na pintura italiana. Na Legenda de São Francisco (Giotto di Bondone, 1300), a paisagem urbana aparece como lugar da futilidade, onde todos estão fora de si mesmos e a cidade está infestada por demônios. No ermo da paisagem rural, porém, ocorrem gestos milagrosos e encontros com o divino. Na Alegoria do bom e do mau governo (Ambrogio Lorenzetti, 1338), por sua vez, invertem-se os sinais dos enunciados produzidos pelas pinturas sobre a cidade e o campo. Uma cidade bem administrada apresenta atividades econômicas pulsantes. Homens e mulheres circulam livremente para dentro e fora das fronteiras. A paisagem rural estende-se, não como um lugar ermo onde ocorre o milagre, mas como consequência de políticas públicas salutares. Tanto a mobilidade e a vivacidade que caracterizam o bom governo quanto à violência e o medo que predominam no outro lado da Alegoria apenas remotamente se devem a fatores teológicos. Os afrescos do Palácio Público de Siena confrontam os da Basílica de Assis com uma versão secular do contraste entre a cidade e o campo.
Tão atento ao elitismo do mundo da arte quanto às referências históricas da pintura, Rodrigo Andrade participou do projeto Ali Leste de ensino de artes em Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital paulista, e produziu a exposição Um lugar, lugar nenhum (Galeria Marília Razuk, 2021), com pinturas de paisagens e observações feitas por artistas do centro e da periferia na região onde atua a “escola nômade”. Desde Courbet, Monet, Cézanne e Van Gogh, a atitude de pintar ao livre para captar uma pura sensação visual reafirma a autonomia do artista em relação ao meio de arte e torna a pintura capaz de registrar uma visão pré-reflexiva, inacessível no interior do estúdio, onde o desenho dos objetos representados tende a ser enquadrado por categorias, ao passo que, no calor da hora, sob a intempérie e com uma paleta restrita, o contato direto com a natureza produz uma experiência intuitiva do espaço. A própria pintura abstrata, da qual Rodrigo Andrade também é contumaz praticante, é devedora da revolução impressionista, uma vez que as relações entre formas e campos de cor também resultam da dimensão pré-reflexiva desbravada pela pintura ao ar livre.
Os lugares visitados por Rodrigo Andrade e seu grupo para a retomada dessa prática artística moderna estão entre a cidade e o campo. Centros urbanos modernos possuem “zonas de vazio”, conforme os antropólogos denominam certos correlatos dos “não-lugares”, áreas ermas incrustadas na cidade. No Brasil, a urbanização ao mesmo tempo precária e acelerada provocou um descompasso entre a estruturação do tecido urbano e o afluxo de imigrantes, de modo que apenas para perfis socioeconômicos privilegiados é possível atribuir a condição de sociedade propriamente urbanizada. Em São Paulo, populações inteiras não deixam as regiões periféricas onde residem senão a trabalho e somente participam da urbanização exercendo funções subalternas.
Rodrigo Andrade encontrou no mato e na quebrada da zona leste paulistana as paisagens que faziam sentido para o seu trabalho. As especificidades desses lugares e a colaboração com o artista urbano Link Museu impactam sua pintura. O artista já havia se deixado levar pelas pinceladas de um outro ao produzir versões para as pinturas de Ranchinho, o “Van Gogh de Assis”, em 2012. A troca com Link Museu, porém, é diversa, pois se trata de caminhar juntos e não seguir os passos de alguém. Em incursões para a pintura de observação ao ar livre, parcerias em galerias e ateliê, a dupla reata o apuro técnico à capacidade de encontrar valores pictóricos no tecido urbano.
Essa “partilha do sensível” entre o artista culto e o artista urbano transparece nas paisagens de Rodrigo Andrade que descobrem a riqueza visual das zonas vazias paulistanas e a vitalidade de regiões aparentemente áridas do cerrado brasileiro, confundindo os valores estabelecidos pelas referências de Giotto e Ambrogio. Não há encontros com o divino, mas uma tonalidade ígnea em contraste com a obscuridade dominante. Em monturos, poças e córregos, a pintura descobre uma consistência de magma que arde e pulsa em meio ao verde turvo e noturno do matagal em Terreno baldio e Terreno baldio II. Nestas pinturas é possível observar o uso de compactas massas de tinta que marca a obra de Rodrigo Andrade, utilizadas com apuro e parcimônia, formando figuras semelhantes a arabescos e ornamentos em contraste com as formas regulares das janelas com luzes acesas que salpicam a escuridão da região desprovida de iluminação pública. Uma área abandonada e negligenciada pelo poder público foi transformada em “horta urbana” por Link Museu e seus companheiros. O lugar tornou-se um ponto de encontro e convivência improvisado. A Vista da horta urbana de Rodrigo Andrade explora a irregularidade do terreno, caracteriza um mundo sem planos, linhas, nem retas. A presença difusa de torres de eletricidade e fiação elétrica põe-se em contraste com o verde vivo da folhagem, como se o progresso tecnológico apenas passasse por esse espaço a serviço de outras paragens, secando as árvores por onde passa.
Ainda assim, apesar dessa recusa do desenvolvimento urbano como algo distante da comunidade, os lugares mostrados nas paisagens de Rodrigo Andrade resultam do trabalho humano, seja a horta, os blocos de construção, ruínas ou as vistas da quebrada. O mundo humano está sempre por se fazer, por toda parte há “espaço em obra”. A irregularidade e a profusão de formas da natureza observadas em Desfiladeiro, Paredão rochoso, Despenhadeiro, Arbusto com paisagem rochosa, Rochedo e Cavernas contaminam as paisagens urbanas com uma titanomaquia entre o mineral e o vegetal encenada por pinceladas eletrizantes e as massas volumosas de tinta que, por sua vez, insinuam na pintura um flerte com a antiga linguagem do relevo. As massas constituem uma verticalidade hierática que se inclina sobre o espectador. O aparente desmoronamento dessas massas em As ondas verdes do mar sinaliza a fragilidade humana em face da resistência das coisas. No título da pintura ressoa o canto épico das Canções praieiras (Dorival Caymmi, 1954) sobre a trágica e “doce” morte que assola uma comunidade de pescadores. O que demarca as paisagens de Rodrigo Andrade não é o trabalho alienado que se configura na sociedade industrial e que a revolução digital conduz ao ápice da alienação sob o manto da autonomia. Uma solidariedade tácita reúne as vistas observadas pelos ocupantes pré-históricos da Serra da Capivara, cujas pinturas Rodrigo Andrade não apenas visitou, mas estuda com afinco, aos artistas modernos que recusam o progresso tecnológico em proveito da “segunda técnica” de práticas artísticas que favorecem vínculos comunitários e reconstituem a nossa atenção ao lugar onde estamos, como, por exemplo, a pintura de observação.
Nas duas Cavernas, áreas planas e escuras aparecem rodeadas pelas formas rochosas, barrentas, aquosas, ígneas e aéreas que compõem, com galhos retorcidos e gramíneos, um vocabulário pictórico constituído por Rodrigo Andrade em seu contato vivo com a paisagem semiárida. Nas pinturas de zonas vazias, a relação se inverte. Carros estacionados sobre aclives, moradias precárias, a cintilação das luzes domésticas e a própria constituição do espaço como mundo da vida possuem a dignidade do trabalho coletivo e da comunidade que se forma, vive e, apesar de ter sido marginalizada pelo sistema econômico, sustenta-se em meio à obscuridade que permeia. Se a experiência de expressão pictórica proporciona ao artista uma visão privilegiada, intuitiva ou pré-reflexiva, nas pinturas de Rodrigo Andrade esta visão não se transmite sem a consciência da “responsabilidade de ter olhos quando os outros perderam”, conforme a formulação do Ensaio sobre a cegueira (José Saramago, 1995). Cara à pintura italiana do trezentos e à pintura holandesa do quinhentos, a figura do anacoreta, emulada por Rodrigo Andrade no estudo O ermitão, traduz o sentimento de responsabilidade que impele o artista à partilha do sensível. O anacoreta que se retira para o ermo não vive necessariamente sozinho, mas funda uma comunidade que se quer à parte do Império. Nas pinturas de observação que revisitam o gênero da paisagem, Rodrigo Andrade propõe exercícios de “ascese desespiritualizada” para uma forma de vida resistente ao enquadramento narcísico que nos distrai do espaço ao redor e fecha nossa atenção, assim como o “mal branco” prefigurado pelo escritor português.
José Bento Ferreira
Você iniciou nos anos 1980 integrando o grupo Casa 7. Desde o início é indicado afinidades com a produção do neoexpressionismo alemão, com obras em grandes formatos, de pinceladas amplas e matéricas, expressivas, e cores fortes. A partir de 1985, sua pintura revela uma gestualidade que desfaz as composições mais evidentes, realizadas anteriormente. Segue alternando trabalhos figurativos e abstratos e, a partir de 1999, surgem novas mudanças.
O diálogo do artista com questões contemporâneas e tradicionais, seus temas, e de como essas pinturas recentes se relacionam com sua trajetória, passando a criar obras onde espessas massas de tinta a óleo, em formas geométricas, são aplicadas sobre a tela. Telas nas quais apresenta formas monocromáticas retangulares ou circulares dispostas sobre superfícies neutras. E que fazem alusões a signos e sinais gráficos, presentes no ambiente urbano, conforme é reiterado pela crítica.
No ano 2000, convidado a participar do “Projeto Parede”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), sua obra passou a ter a dimensão ambiental, onde seu trabalho intervia no corredor entre o saguão de entrada do museu e a sala principal de exposição, com blocos de cor que vinha realizando desde 1999. Após a parede do MAM, você realiza em um bar, a pintura “Lanches Alvorada” (2001). Sobre as paredes de azulejo do bar, blocos de tinta a óleo em cores que se confundiam, apesar da discordância entre si, com elementos visuais bastante poderosos e característicos de um estabelecimento desse tipo: Tabelas de preço pretas com letras amarelas, caixas de cerveja em plástico vermelho, a televisão pendurada próxima ao teto, cadeiras de metal pintadas de vermelho, o azulejo antigo com desenhos em rosa, laranja e amarelo. Em 2003, o espaço da pintura é abarcado pelo espaço exterior a partir da projeção da rua no interior da galeria na exposição “Passagem”. Creio que este resumo de passagem sirva para compreensão das perguntas que seguem.
1 – O que significam estas experiências para todo o processo de sua arte?
Meu trabalho sempre se movimentou entre a figuração e a abstração. Minha origem é a figuração, mas desde muito cedo eu quis experimentar, e conquistar, a autonomia das formas abstratas.
Talvez o denominador comum na minha obra seja a presença da matéria pictórica como elemento significante, expressivo.
2 – A experiência da ‘parede’ trazia novas questões para sua arte?
A parede abriu uma ampla possibilidade de expansão do meu campo pictórico. Da tela para o espaço do mundo comum, do mundo real. O trabalho emblemático dessa conquista foi “Lanches Alvorada”, pois não só era uma pintura na parede, fora da tela, como também fora do mundo da arte, afinal era num boteco do centro de SP. Com isso, os elementos encontrados no local da obra passam a fazer, parcialmente, parte da obra, ao mesmo tempo em que o ambiente ameaça engolir a pintura, criando uma tensão que me interessa, que a meu ver faz a força do trabalho.
3 – Pintura sobre a parede. O que significou naquele momento para sua arte, o espaço? Ou nela a presença íntima e direta, não mais um observador distante, do espectador com a obra?
O espectador de uma obra como “Lanches Alvorada” é não só colocado diante da pintura, ele é colocado no meio da pintura. Assim, a experiência estética torna-se mais imersiva. Apesar disso, a estranheza da pintura nesses locais sempre coloca o espectador numa posição questionadora: “o quê essas massas de tinta colorida estão fazendo aqui?”… Essa estranheza é fundamental no meu trabalho, mesmo nas pinturas sobre tela.
4 – O que nas telas era uma relação entre cores, no espaço público, para situar como instalações vem a se tornar uma conversa mais ampla. Tinha algum receio de esta obra ser nomeada pinturas decorativas, como chegou a ser dito por um crítico?
Olha, não tive esse receio não, pois sempre busquei uma relação de estranheza e adaptação das massas de cor e o espaço ao redor onde se instala. Por um lado, se harmonizar como ambiente e por outro se destacar do ambiente, numa “negociação” formal, que varia de caso para caso, mas onde a escolha das cores é um aspecto fundamental.
5 – O que a realidade de um bar interferiu para sua concepção de sua arte daí por diante?
Dali em diante a arte passou a ser um território de “contaminações”. A pureza da pintura deixou de ser um valor. Se bem que a minha pintura sempre foi “invadida” pelo mundo, senão pelo espaço propriamente dito, mas por referências e influências de coisas que existem fora da arte.
6 – O que isto acarretou deste momento para a sua sequência ou processo criativo no momento em que volta a tela?
Primeiramente, a noção de que a tela também podia ser encarada como um espaço do mundo onde eu faria uma interferência, uma instalação. Isso exacerbou minha ideia de estranheza entre o suporte da tela e a tinta, que são tradicionalmente feitos um para o outro. Esse paradoxo tornou-se fundamental em minha pintura. É o que garante a tensão que as anima.
7 – Em “Paredes da Caixa” (2006), blocos de cor, de tamanhos, formas e espessuras diferentes são instalados em algumas salas do Museu da Caixa Econômica Federal. Espalhados pelas paredes, retratos em estilo acadêmico de personalidades marcantes da história do banco. Os retratos convivem com grandes estantes de livros, mapas, cartazes, peças de mobiliário de época, máquinas de escrever, calculadoras e uma estranha sala de atendimento médico. Diz um crítico que ao distender as fronteiras de sua pintura, Rodrigo Andrade assume um risco. Tudo poderia resultar em puro efeito decorativo, se não se acreditasse na possibilidade de diferenciação.
Chegamos ao século XXI.
Havia neste momento como característica principal, na mostra “Passagem”, uma relação direta, apenas um vidro separava seu interior da calçada, da galeria internamente com o espaço urbano. Esta integração vira novos caminhos para sua arte?
O “risco” foi sempre um atrativo para mim. Afinal, estou lidando com os limites da arte, os limites da pintura. O “puro efeito decorativo” é um desses limites. Do outro lado, há o risco de ser NADA. Entre o decorativo e o nada busco nesses trabalhos criar um lugar instigante, potente e libertador.
8 – Sua pintura volta neste ponto a se relacionar mais uma vez com o universo dos objetos cotidianos. É a fronteira se ampliando? Um novo risco?
SIM.
9 – A sua pintura figurativa trabalha com a tinta densa, contornada e concentrada. Um tratamento que você já usava, desde 1999, nas pinturas abstratas. Nesse período de agora, pinturas foram feitas a partir de imagens fotografadas por você. Imagens fotográficas, dotadas de perspectiva, referências históricas da pintura e do país. Esta mostra na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, como veio a repercutir em seu processo de trabalho?
Essa série de pinturas, “Matéria Noturna”, marcou uma nova ruptura radical em minha trajetória. Era ao mesmo tempo um retorno à figuração e um salto para uma pintura de extremo realismo, de extremo ilusionismo. O uso de imagens fotográficas como base de pinturas foi algo totalmente inédito para mim. O ilusionismo é fundamental nelas, pois se trata de um espaço psicológico, imaginativo. Afinal o ilusionismo é um fenômeno psicológico. E a tensão do trabalho, de novo, está na coexistência entre esse espaço imaginativo da ilusão como o espaço concreto da superfície e da massa de tinta aplicada sobre ela, que quebra o ilusionismo sem eliminá-lo, de tal forma que ele (o ilusionismo) se refaz para o espectador, basta afastar-se um pouco. Essa dupla espacialidade é o diferencial expressivo e conceitual dessas pinturas.
10 – Você já fotografava pensando em fazer das fotos uma pintura nesta mostra?
No início não, mas logo em seguida sim. Eu imaginava as pinturas e depois corria atrás das imagens que serviriam de base.
11 – A sua obra é permeada, assim se referem alguns críticos pela materialidade da tinta e referências sobre a história da pintura. A matéria sempre foi importante em sua pintura?
Sim, é o desejo de tornar concreto e significativo aquilo de que a pintura é feita: Tinta a óleo sobre tela (ou parede), o gesto que a aplica… É o desejo de tornar o próprio ato de pintar algo significativo e expressivo.
Sim, a história da pintura é importante no meu trabalho. É também um elemento expressivo. Por isso meu apego a certas formas clássicas, neutras por assim dizer, que não pertencem a mim, mas à história, à cultura. Minha afirmação de que atuo sobre uma matéria que está além de mim, e assim ser potencialmente engrandecedor.
12 – Se junta a isto uma gestualidade seja na pintura, mas também no desenho, gravura e objeto. Outro crítico já coloca que a sua própria pintura abstrata, da qual é contumaz praticante, é devedora da revolução impressionista, uma vez que as relações entre formas e campos de cor também resultam da dimensão pré-reflexiva desbravada pela pintura ao ar livre. Como se relaciona com a opinião e a crítica?
Questão profunda… A dimensão “pré-reflexiva” sempre foi almejada por mim. A de conseguir estabelecer ligações diretas entre meus impulsos e meus atos. Pintar, como fazia Manet, “por reflexo”. Seja como for, eu também procuro alternar e equilibrar reflexão e reflexo. Como escreveu Johns num caderno de notas: “Às vezes olhar, depois fazer; às vezes fazer, depois olhar”. De forma geral meu trabalho se nutre das opiniões e das críticas. Esse feedback é fundamental para que eu saiba se aquilo tudo que uma pintura significa para mim se transmite minimamente para o espectador.
13 – Sua mostra na Bahia, na Paulo Darzé Galeria, “Variações sobre paisagem”, acredito olhando seu CV, que é sua primeira exposição na Bahia. Sobre ela gostaria de saber como se enquadra hoje esta mostra diante de sua opinião, utilizando para tal a resposta dada por você numa entrevista. “Busquei nessas pinturas uma impessoalidade. No modo de fazer também, por mais gestualidade que houvesse. A ideia era preservar uma relação de neutralidade com a imagem. Não apenas convidam, como toda obra de arte, a uma contemplação duradoura e a uma imersão reflexiva, cada vez mais rara na época da avaliação visual instantânea, mas também proporcionam uma experiência de fruição que se configura como acontecimento, uma vez que muda o modo como vemos a própria pintura”.
Sim, a primeira exposição individual na Bahia. Participei anteriormente de um salão no MAM/BA (na gestão de Heitor Reis) em que ganhei um prêmio aquisição. Pois bem, a mostra na Galeria Paulo Darzé reúne pinturas realizadas entre 2020 e 2021 (mas que inclui pinturas de 2017). Marca uma inflexão, um movimento mais pessoal, menos “neutro”. A gestualidade é mais presente, o realismo não é tão ilusionista. A presença das massas de tinta aplicadas com estêncil se funde mais na pintura total, sendo reduzida às vezes a detalhes. Posto isto, as questões colocadas nas pinturas da exposição são desdobramentos dos meus trabalhos anteriores, onde o espaço virtual da imagem se choca com a materialidade da tinta, da superfície e do gesto. E mesmo que certas escolhas de motivos sejam um tanto idiossincráticas (cenas urbanas periféricas e natureza selvagem rochosa) elas se inserem em tradições estabelecidas de longa data na história da arte, que é sempre pra mim uma referência. Basta pensar na tradição modernista brasileira do tema “favela” (mas no meu caso não há idealização romântica) ou do tema “rochedos” na tradição ocidental desde o Renascimento (Mantegna, Bellini, Salvador Rosa, Courbet, Cézanne). Assim sendo, mantenho certa “impessoalidade” que sempre busquei na minha pintura. E, conforme minhas respostas na entrevista, ao mesmo tempo reflexão imersiva e impacto de um “acontecimento”.
14 – Qual o legado ou traço de união, ou características do percurso, que vê ou sente entre o início na Casa 7 e o que faz agora?
Bom, sou a mesma pessoa, né? Como disse o filósofo Merleau Ponty no texto A Dúvida de Cezanne: “Jamais somos livres de nós mesmos”. Por mais que eu tenha tentado mudar e ir além de mim, sair de mim, meu percurso é até surpreendentemente coeso. Vi isso na minha retrospectiva na Pinacoteca de SP em 2017/18. Mas dois traços no meu trabalho têm raízes lá na Casa 7: A presença da matéria e a fusão de elementos da história da arte e do mundo comum.