Paulo Coqueiro apresenta a mostra “Outras Expedições”, na qual traz questões relativas às incertezas na produção, usos, circulação e política das imagens, trabalhos de suas últimas pesquisas, abordando os limites da linguagem fotográfica como elemento inspirador para criar ficções. A mostra tem curadoria de Alejandra Muñoz e texto de apresentação de Junia Mortimer.
Paulo Coqueiro nasceu em Boa Nova, município do interior da Bahia. Graduado em Agronomia, é mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, está realizando seu doutorado na Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, sendo coorientado na Escola de Comunicação da UFBA. O trabalho artístico de Coqueiro aborda questões fundamentais relacionadas a produção, uso, circulação e política de imagens. Sua contribuição para a arte contemporânea rendeu-lhe reconhecimento e prêmios internacionais, incluindo a participação na Bienal de Fotografia de Houston, em 2020, e o prêmio da VII Trienal de Fotografia de Hamburgo, em 2018. Foi o primeiro baiano a ser laureado com o Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger. Coqueiro já expôs suas obras em exposições individuais em renomados festivais e galerias ao redor do mundo, incluindo a Bienal de Fotografia de Luca, na Itália; o Festival Internacional de Fotografia de Lianzhou, na China; o Centro de Fotografia, de Montevideo; e o Palacete das Artes, em Salvador. Também esteve em exposições coletivas, como as do PhotoVisa, em Krasnodar, Rússia; do Museu de Arte da Bahia (MAB) e Museu de Arte Moderna (MAM), em Salvador-BA; do Museu de Arte Contemporânea – Dragão do Mar, em Fortaleza-CE; da XI Bienal do Recôncavo, em São Félix-BA; entre outras.
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Este trabalho problematiza a relação imagem/cidade através de um discurso visual crítico e iconoclasta da paisagem habitada de Salvador-BA, evidenciando sua fragmentação e seus contrastes estruturais.
Em boa medida, tal investida identifica quão ficcionais são as imagens que sempre representaram a cidade ao longo do tempo e faz surgir uma nova iconografia, reorganizando aquela visualidade que contribuiu para generalizar uma identidade soteropolitana.
Como um artista viajante dos nossos tempos, Paulo Coqueiro realizou expedições sistemáticas, entre 2017 e 2020, ora com roteiros planejados através de pesquisas de paisagens no Google Maps, ora se deixando conduzir à deriva pela cidade, fotografando vistas de estruturas arquitetônicas de bairros tradicionais, do Subúrbio Ferroviário, bem como de bairros não associados ao turismo; de habitações desordenadas nas encostas; de ocupações irregulares ou estabelecidas formalmente.
Neste período de incursões, fez mais de 10 mil fotografias e produziu com elas uma série de panoramas da cidade em colagens digitais. A inspiração para cada novo panorama foi, quase sempre, uma obra icônica (de pintura, gravura, desenho ou fotografia), apropriada pelo autor, pertencente a museus, instituições ou coleções particulares, produzidas desde a fundação da Cidade da Bahia por engenheiros militares, artistas viajantes, pintores, desenhistas e fotógrafos, sendo que estes últimos só chegaram por aqui nos idos de 1839.
A composição dessas novas vistas da cidade, através do deslocamento de paisagens, ruas, prédios e estruturas arquitetônicas para diferentes cercanias da sua origem física e temporal, gera estranheza e enfatiza aspectos da cidade pouco difundidos, integrando ambientes usualmente desconexos, forjando uma interação entre elementos do passado e do presente, deixando mais evidentes as rupturas, a diferenciação e o isolamento entre seus diversos lugares. Finalmente, essas colagens digitais com as novas vistas foram impressas em chapas metálicas, garimpadas em ferros-velhos. Sobre essas superfícies metálicas, Coqueiro fez tratamentos prévios e posteriores à impressão, utilizando produtos químicos abrasivos e fazendo intervenção com tinta a óleo, pastel, lápis, lixa, verniz, resinas etc.
Assim, as placas metálicas impressas, de diferentes tamanhos, espessuras e estados de conservação, permitem estabelecer uma comparação daquelas imagens do passado com as atuais da cidade. Por sua vez, a qualidade ferruginosa do seu material constituinte, vulnerável ao salitre e ao tempo, demonstra a mesma precariedade insular da cidade que se predispõe a representar.
Eu li n’algum lugar que os olhos têm fome – ou antes seria sede?1 A imagem é a água da visão. Do tato ao pensamento. Já chamaram essa fome-sede de voracidade2. Fotografar a cidade parece fazer correr o rio que sacia os olhos, às vezes quase à indigestão. Famigerado olhar: o que tanto se quer ver? O que pouco se quer mostrar? Ou vice-versa.
Cabe um naco generoso de desaprendizagem do imperialismo
num obturador destroçado
Num obturador reformado
Um obturador quase obliterado
Acontece que ver não basta. Tem que pegar o que sobra, das lentes e do ferro velho, e dobrar a realidade, esse metal quase pesado, com a mão da visão. Inscrever num resto de cidade a imagem – imagem que ela própria, metacidade, já deu. Ao verter a imagem sobre a cidade, o que restou dela, um artista enverga as casas sob o peso quase pluma da tinta. Reverbera o som da artesania que supervive nas franjas da Conceição. Naquela ladeira os artífices são muitos, desde antes das panoramas de Mulock. Você escuta os ferros? Repare: também dá pra ouvir as frequências de um brado heroico que permanece malogrando a superfície áspera, suja de imagem. São as vozes do capitaloceno³. Isso que você vê e quer tocar – veja, mas não toque! –, essa sobra de cidade, artefato-imagem, é desvio tanto quanto é reinserção, quase resplandecente, na roda do capital. A gente fica com as migalhas.
Aproxime, chegue mais perto. É preciso beber com os olhos. Só estamos te confundindo pra te fazer ver.
Durante mais de seis anos, Paulo Coqueiro tem feito incursões por esta Cidade da Bahia, coletando imagens e metais. Com as fotografias ele produz as colagens – que remetem ora mais, ora menos diretamente a uma determinada tradição pictórica de Salvador. Em diferentes ferros-velhos, do Uruguai ao Acesso Norte, passando pelo Largo do Tanque e pelo Retiro, Paulo escolheu as placas: aço carbono, ferro, ferro xadrez, aço inox, aço carbono galvanizado, cobre, latão. Ele trata cada material (limpa, lixa, estabiliza), dimensiona as colagens e as imprime nas placas em UV. Mas, pense!, nada está congelado: os metais continuam sua vida e corrompem, sorrateiros, a perenidade de qualquer imagem.
1 Gregor Schneider sobre Thomas Demand.
2 Jacques Lacan sobre a natureza maligna que é constitutiva do olhar.
3 Crítica ao Antropoceno, que evidencia a inflexão nos modos de vida e produção gerada pelo capitalismo.
Junia Mortimer
Entrevista com Paulo Coqueiro / por Claudius Portugal
Você utiliza, na pesquisa e nos suportes, características que modificam a apresentação de suas fotos. Como chegou a este momento?
Esse trabalho tem o nome original de “Expedição à Cidade da Bahia e Arredores”, nome que traduz esse interesse inicial pela iconografia de Salvador, desde seus tempos coloniais. Fiz quase 10 mil fotos da cidade, de suas vistas, a maioria delas buscando panoramas abrangentes. Fiz a maioria delas entre 2018 e 2019, enquanto pesquisava as antigas imagens.
Acredito na interação entre o conteúdo e a forma final do trabalho, então me ocorreu de maneira natural elaborar as colagens, utilizando as imagens pesquisadas como referência. Algumas delas sofreram pouca edição, outras são resultado de um acúmulo de dezenas de imagens sobrepostas.
Impressas em papel, davam uma boa noção do que pretendia, mas queria a materialidade de um suporte que se relacionasse conceitualmente com a obra. Foi quando cheguei às chapas que passei a coletar em ferros-velhos de diversos locais da cidade. O trabalho subsequente foi todo experimental, envolvendo algumas perdas até chegar a esse resultado atual.
É importante a noção de conjunto nesse trabalho, mas em todo o processo busquei uma diversidade que se relacionasse com os desenhos, as pinturas, as fotogravuras e as fotografias. Então, a intervenção subsequente com tinta visava essa amplitude de estilo, para conferir uma atmosfera múltipla, própria das peças de museu, que remetem a diferentes períodos históricos e diferentes técnicas.
Para ser estendida a pergunta, como vê a apropriação da fotografia pelos artistas hoje?
O interesse pela fotografia é cada vez mais abrangente. Não seria diferente com os artistas, creio. Seja para registrar performances, seja para acompanhar processos ou mesmo como uma linguagem em si mesma, potente, capaz de dar conta de um discurso, como os demais campos artísticos.
André Rouillé propõe uma dicotomia que, para mim, está ultrapassada, ao tratar de uma certa fotografia dos artistas e de uma certa arte dos fotógrafos. Ambos os campos podem ser expressivos e transitar nos espaços voltados à arte indistintamente.
Quanto às possibilidades de apropriação de imagens de outros artistas, penso que a contemporaneidade recebeu um grande legado. São anos de produção no campo das artes, que geraram um acúmulo de milhares de imagens, referências que construíram uma identidade e uma cultura visual. A apropriação acaba sendo uma espécie de curadoria, uma seleção dessas imagens.
Seu tema é a cidade de Salvador. A representação dela por fotógrafos que documentaram sua história? É um tema, uma imagem, um símbolo representativo desta relação imagem/cidade?
O tema é a cidade de Salvador sim, mas está inserido em uma discussão mais abrangente, à qual venho me referindo em outros trabalhos, em uma pesquisa sobre a imagem fotográfica, em como essas imagens podem gerar narrativas potentes. E mesmo quanto à propaganda crise, de que muito se tem falado, no que diz respeito à mediação da fotografia à realidade do mundo, sua qualidade representativa, acredito que está relacionada à sua condição de linguagem e, consequentemente, à subjetividade inerente à expressão humana. Defendo, assim, a fotografia nesse lugar amplo, similar à escrita, à pintura, ao cinema.
Nessa obra, a cidade de Salvador é a referência temática, e busco inspiração no trabalho desenvolvido por diferentes fotógrafos que registraram a paisagem da cidade em grandes vistas, como o engenheiro inglês Mulock, que veio para a Bahia para documentar a construção da estrada de ferro da Cidade da Bahia ao São Francisco; o suíço Guilherme Gaensly e seus panoramas; Marc Ferrez e sua viagem pela Bahia; e até mesmo o Victor Frond e sua curiosa expedição, que produziu o Brasil Pitoresco, a primeira publicação a utilizar a fotografia na América Latina. Mas também me inspiro em outros tipos de panoramas, como o do engenheiro militar Caldas, que fez um prospecto cadastrando a cidade em 1758; ou a aquarela de Luis Vilhena, datada de 1801, que, segundo ele próprio, foi feita a partir de um decalque do Prospecto de Caldas, sobre o frontispício da cidade. As gravuras de Rugendas, Emma Juliana Smith, Eduard Hildebrand e tantos outros. Esse conjunto iconográfico, na maioria das vezes, reportava a cidade para fora dela.
Há algum objetivo na sua fotografia de buscar a antropologia, o documental, sem que ele se perca de ser arte nesse processo criativo?
Nesse trabalho, faço a opção por um dos possíveis usos da fotografia, a tensão promovida entre o que é aparente frente à possível qualidade que ela tem de iludir. A cidade não é exatamente aquela que está retratada, mas reconhecemos ali muitos dos elementos dela. O aspecto realista da imagem fotográfica nos coloca em uma cilada. Há um certo desconforto, um certo embate entre o senso de realidade que nos guia versus a realidade de fato.
Tem uma certa pedagogia de fundo. E, consequentemente, a questão que se coloca logo em seguida é: para que se faz isso? Qual o sentido desse rearranjo com as estruturas da cidade, no espaço e no tempo? O que isso me diz da cidade? Nesse sentido, tais provocações estão mais associadas ao campo da expressão do que ao campo da documentação e registro literal.
Esse processo não pode acarretar sendo um estudo visual e suas transformações nas fotos e na cidade?
Exato. As referências mais diretas de como a cidade já foi um dia são trazidas fortemente a partir dessa iconografia antiga. Uma “expedição” nos nossos tempos não poderia se pautar pelo mesmo objetivo de antes. Uma “expedição” nos nossos dias deveria reinventar o trajeto e atualizar nossa imagem a partir de nós próprios. E assim que pensei nesse trabalho.
Fui em busca de contatos em vários lugares da cidade. Eles foram aportando conteúdos, perspectivas distintas, como no São João do Cabrito, onde estive com José Eduardo, do Acervo da Laje. Conversamos sobre a experiência dele no bairro e arredores, como Plataforma e Porto das Sardinhas. Outra experiência que vale lembrar foi no Alto da Terezinha, por conta de um contato com missionários da Igreja Católica que estavam por lá construindo casas em regime de mutirão e me convidaram para fotografar o ato. Ou quando fui à Vila Vitória, na Fazenda Grande III, local que teria dificuldades de acessar, não fosse a experiência durante a entrega de cestas básicas na Ação 150 Fotos pela Bahia.
Alguns outros contatos foram importantes, como a visita a Pirajá e ao Subúrbio Ferroviário, onde estive com Ricardo Machado, um amigo que viveu parte da sua vida lá e conhecia pessoas e lugares, me apoiando como guia. E ainda acessei o guardião da nascente próxima à Pedra de Xangô, através de Jacileda Santos, uma amiga que trabalha na prefeitura.
Outra frente de ação, da qual pouco falo, é a pesquisa para identificar as imagens de referência. Algumas delas foram feitas no site da Biblioteca Nacional e do Instituto Moreira Salles (IMS), e a maioria aqui. Principalmente na biblioteca do Museu de Arte da Bahia (MAB), da Fundação Pierre Verger, na Fundação Gregório de Mattos, no Museu Tempostal e no Instituto Histórico e Geográfico.
Você escreve que seu trabalho é “Um discurso visual crítico e iconoclasta da paisagem habitada de Salvador-BA, evidenciando sua fragmentação e seus contrastes estruturais. Em boa medida, tal investida identifica quão ficcionais são as imagens que sempre representaram a cidade ao longo do tempo e faz surgir uma nova iconografia, reorganizando aquela visualidade que contribuiu para generalizar uma identidade soteropolitana”. Como sente as pessoas diante dele?
Esse foi um trabalho que circulou pouco, e é ainda inédito em Salvador. Tenho curiosidade para saber como será a reação das pessoas. Foi selecionado para o Diário Contemporâneo, em 2019, ainda em sua versão impressa em papel. Tive bons retornos dessa mostra, mas o trabalho mudou de lá para cá. Quando o levei para o FestFoto, em Houston, em 2020, tive uma recepção também calorosa, e uma das peças ficou para a organização do evento. Mas a partir daí chegaram as restrições sanitárias em função da pandemia, e desde então não houve oportunidade de trazê-lo a público.
Inicialmente, essa exposição estava pautada para o MAB, com uma agenda definida e o planejamento expositivo voltado para aquele lugar. Conceitualmente fazia muito sentido. Eu pretendia utilizar algumas peças do próprio acervo do museu, explorando a tensão entre a apropriação e a obra original, mas abri mão da pauta por conta da pandemia.
Outro ponto: como se sente como “um artista viajante dos nossos tempos diante do Google Maps”?
Falei do apoio de pessoas e organizações para conhecer lugares e ampliar o “acesso” à cidade. Mas o Google Maps foi um dos suportes mais importantes nesse processo. Cheguei a lugares que não conseguiria a partir de consultas prévias ao Google Street View. Ali se acessa um banco de imagens gigante. Estou elaborando um outro trabalho, que é um desdobramento desse, utilizando imagens da cidade feita pelo Google.
Você também diz: “A inspiração para cada novo panorama foi, quase sempre, uma obra icônica (de pintura, gravura, desenho ou fotografia)”. Vê sua obra como uma releitura da memória desta cidade ou um ponto para reflexão destas novas paisagens?
Essa é uma questão importante para o trabalho. Ao me apropriar de antigas imagens, trago uma memória inerente àquelas representações. Essas imagens foram produzidas com um certo comprometimento em cadastrar informações, em efetuar registros que garantem uma coerência com os aspectos visíveis da sua respectiva época. Mas não proponho uma releitura dessa memória. Assim, esse é um trabalho que se preocupa mais com a reflexão sobre a fragmentação e a desigualdade da cidade que nos resta. Acentua o contraste entre a beleza das paisagens naturais e a desordem urbana instalada sobre elas.
As fotos estão sobre superfícies metálicas. Como é feito esse tratamento prévio ou posterior à impressão? É dito por você que utiliza produtos químicos abrasivos e fazendo intervenção com tinta a óleo, pastel, lápis, lixa, verniz, resinas etc. Assim, as placas metálicas impressas, que é sua exposição e suas fotos, de diferentes tamanhos, espessuras e estados de conservação, permitem estabelecer uma comparação vertiginosa daquelas imagens do passado com as atuais da cidade?
Por ter sido um processo muito experimental, existe uma diversidade grande de combinação de procedimentos na produção dessas peças. De forma geral, as placas coletadas são tratadas para retirar os excessos de pontas, são lixadas e, em seguida, lavadas com água e sabão. A depender do material constitutivo da placa, uso um neutralizador de ferrugem, em alguns casos tinta óleo e em outros não faço intervenções. Dimensiono a imagem para o tamanho da chapa e faço a impressão ultravioleta. Posteriormente à impressão, avalio como ficou a interação da imagem impressa com a superfície da placa e verifico a necessidade de intervenção posterior com algum tipo de tinta ou verniz.
Pode dissertar um pouco mais sobre quando você diz “Por sua vez, a qualidade ferruginosa do seu material constituinte, vulnerável ao salitre e ao tempo, demonstra a mesma precariedade insular da cidade que se predispõe a representar”?
Salvador é essa cidade de forte intempérie trazida pela umidade, pelo sal e pelo sol. Esse aspecto é muito evidenciado nesse material metálico que escolhi para imprimir as imagens e demonstrar essa ação do tempo. A vulnerabilidade da cidade a esses agentes também é mostrada aqui de forma intensiva.
Quais são as suas influências?
Das enciclopédias ilustradas até Adriana Varejão. A cultura visual sempre exerceu um forte poder atrativo em mim. Trago elementos do interior da Bahia, da cultura popular sertaneja, do cinema e das artes gráficas. Mas também me interessa quem maneja bem a linguagem literária de forma a evocar a criação de imagens mentais. Para esse trabalho, evoco uma tradição importante na Bahia ao lidar com os metais, como Mário Cravo e Tatti Moreno, em esculturas.
Na sua opinião, por que o número de artistas que trabalham com a fotografia cresceu tanto?
Existem fenômenos simultâneos que talvez expliquem essa questão, como a proliferação dos dispositivos móveis, cada vez mais fáceis de manusear e que se tornaram muito mais acessíveis que os equipamentos fotográficos do passado; o acesso a informações e aprendizados sobre fotografia; a proliferação da imagem fotográfica como forma de perceber e estar no mundo, ampliando suas possibilidades de uso. Alguns artistas percebem/vivenciam esse poder agenciador da imagem fotográfica e conseguem utilizá-la de forma potente. Também através da fotografia, é possível validar os experimentos com arte mais circunscritos ao momento, como as performances.
Como sente ou vê a fotografia no Brasil hoje?
A fotografia brasileira é igual ou melhor a qualquer fotografia produzida no mundo hoje. Aborda os principais problemas e atravessa a mesma crise. Tem nomes importantes de norte a sul. Bárbara Wagner e suas estratégias de subversão e visibilidade de um certo “corpo popular”; Rodrigo Braga e suas ações performáticas e construções manuais diretamente em paisagens naturais; Sofia Borges e as questões sobre a representação e a relação entre matéria e significado; Rosângela Renó, Berna Reale, Alexandre Sequeira, Aline Motta, Iris Helena, Letícia Lamper… Tem muitos bons artistas que utilizam a fotografia em seus trabalhos, dentre os quais destaco a densidade do trabalho de Miguel Rio Branco, com quem tenho a honra de compartilhar essa exposição aqui na Paulo Darzé Galeria. E, no Rio de Janeiro, existem dois fotógrafos admiráveis, com os quais compartilho um trabalho sobre a relação imagem/cidade, embora com resultados distintos.
Mas queria falar um pouco da fotografia produzida na Bahia nos últimos anos. Falar de algumas iniciativas ocorridas que merecem ser destacadas, seja pelo valor intrínseco, seja por se constituirem em uma ação de resistência ao desmonte do cenário da cultura. Início pelo Movimento Carta das Laranjeiras, que sinalizou para o descuido com as políticas públicas para a cultura. E se formos pensar de forma abrangente, temos o FotoBahia, movimento da década de 1980 a partir do qual surgiram nomes emblemáticos da fotografia baiana, como Adenor Gondim.
Sem uma linha temporal definida, lembro dos Fóruns de Fotografia; da Revista Umbu; do Moraria 53; da Ativa Atelier; do próprio prêmio Pierre Verger, que, sendo uma política estadual, alcança o Brasil inteiro na sua proposta; dos 16 Ensaios Baianos; da existência da Fundação Pierre Verger e do Forte Baiano da Fotografia Pierre Verger, que teve a curadoria de Alex Baradel e Célia Aguiar; do Arquivo Zumbi; do Oi Kabum, coordenado por Isabel Gouveia, que resultou em uma forma diferenciada de inclusão de pessoas e lugares na fotografia, produzindo novos nomes no cenário; da Galeria Alma, de Ricardo Sena e a Triângulo, de Álvaro Vilela, além da Casa Galeria da Valéria Simões; aos artigos que Cristina Damasceno vem escrevendo no jornal A Tarde; da proliferação dos estúdios especializados em impressão fine-art; da Editora Gris, com Rafa Moo e Lara Perl, que trabalha com edição de fotolivro; da SolisLuna; da existência do livro A fotografia na Bahia, coordenado por Aristides Alves; do Agosto da Fotografia; do Transatlântico; do Festival do Sertão; do Colóquio da Fotografia; dos Olhos da Rua do LabFoto e do projeto Encubadora de Jovens Talentos, da mesma LabFoto; do trabalho itinerante de Alex Oliveira; dos artistas que têm uma interação importante com a fotografia, como Ayrson Heráclito, Tiago Santana, Fábio Magalhães, Caetano Dias, Renata Voss, Eriel Araújo e tantos outros, cada um com sua pesquisa e especificidade; e da ação 150 Fotos pela Bahia, que mostra uma cena de interesse e força da fotografia.
Mas falo de tudo isso para lembrar da falta de uma política voltada para a fotografia, da falta de um conjunto de ações que apoie essa cena, bem como da inexistente política de preservação de acervos. Como, com essa quantidade de gente produzindo, pensando (com certeza esqueci de muitas ações e não sei de outras tantas), não temos hoje um festival que dialogue com o resto do Brasil, com a América Latina e – por que não? – com o mundo?