Anderson Santos, em A Vida Nua, nova exposição na Paulo Darzé Galeria, com abertura dia 4 de setembro, das 18 às 21 horas, e temporada até 27 de setembro de 2025, aprofunda sua investigação sobre a figura humana e a presença desta, explorando camadas de intimidade, memória e corpo no limiar entre o visível e o oculto. Pintor figurativo, que transita entre técnicas do óleo, acrílica, desenho à lápis, trabalhando principalmente sobre tela, cartão, madeira, e sendo um desenhista que utiliza o grafite ou o carvão sobre papel, e a pintura digital, vindo neste último caminho a desenvolver uma pintura e um desenho no iPad, adaptando a técnica tradicional para esta nova realidade digital, com isso realizando experimentos em vídeo, cartazes, e storyboards para cinema,
Obra marcada pela presença humana, principalmente a feminina, onde a imagem dentro da imagem está sujeita a manchas ou proporções que a distorcem, produzindo uma pintura expressiva, ao trazer a figura, em sua angústia e seu cotidiano, a uma posição central, tema logo visível desde o início de suas mostras em 2002, e nas diversas fases, séries, ou no assunto seguinte que elabora.
Em Vida Nua, Anderson Santos apresenta trabalhos em pinturas a óleo, acrílica, e lápis sobre tela, incluindo ainda desenhos sobre papel Fabriano e Velata Avario. O texto do catálogo é de autoria de Tarcísio Almeida.
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Anderson Santos sobre A Vida Nua
A Vida Nua é uma mostra que lança luz sobre a minha produção mais recente em pintura, com foco no óleo sobre tela. Apresento 21 obras, desenvolvidas desde o início da pandemia da COVID-19 até agora, atravessando um período de intensa transformação pessoal e coletiva.
O ponto de partida dessa série foi o vídeo “A Vida Nua”, realizado em 2020, para um edital emergencial, durante a pandemia. Esse trabalho, recusado na ocasião, acabou seguindo outros caminhos: esteve na SP-Arte online, no festival Zona Mundi, na mostra Raízes no MUNCAB e, posteriormente, em “Floresta Negra”, em Belém, exposição contemplada com o Prêmio Branco de Melo em 2023. O vídeo era um brado de esperança para que minha família pudesse atravessar a pandemia com vida, ainda que conscientes de que a experiência do mundo seria irreversivelmente transformada.
Apesar do confinamento, a sensação era de exposição extrema. A vida, reduzida a registros burocráticos — CPF, CNPJ, cartão de saúde, Green Pass — parecia nua diante da arbitrariedade do poder soberano. Nesse contexto, me aproximei da obra do filósofo Giorgio Agamben, especialmente “Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua”. Percebi como, em situações de exceção, os direitos civis podem ser suspensos e a vida reduzida ao seu limite biológico. Porém, sendo um homem negro, entendo também que esse arranjo de poder sobre corpos como o meu não se restringe a períodos de exceção, mas se estende indefinidamente ao longo da história.
As pinturas e desenhos de A Vida Nua partem desse lugar, mas não como ilustração de uma tese. Não tenho respostas prontas para o mundo em que vivemos. Traço corpos — em sua maioria femininos (porque carregam a possibilidade do vindouro) — que emergem no espaço da tela ou do papel em um jogo de evocação de presenças. Procuro diálogos silenciosos, como aqueles que vivenciamos com pessoas, plantas, lugares, animais e coisas que conhecemos há muito tempo: encontros, em que a simples presença mútua é capaz de revelar camadas de intimidade, memória, e a possibilidade de reinvenção de mundos.
Se em “Floresta Negra” havia uma relação evidente com a tecnologia e a interação em realidade aumentada, criando uma espécie de jogo com o público, em A Vida Nua decidi me afastar dessas camadas tecnológicas mais explícitas para me concentrar no gesto pictórico, no encontro direto entre corpo e pintura. Ainda assim, em um arranjo sutil de artesania, boa parte das imagens que me serviram de referência foi criada a partir do meu encontro com ferramentas de geração de imagens por meio de redes neurais — as chamadas inteligências artificiais. Essas imagens de referência foram reelaboradas a partir de meu próprio acervo, possibilitando o surgimento de novas criaturas híbridas.
A mostra se articula em três subséries: Presenza, que se ocupa do corpo das imagens criadas artificialmente e da dificuldade inicial dessas ferramentas em lidar com um imaginário não branco; Accra, que aborda mais diretamente nossa relação com as tecnologias emergentes e o preço desse relacionamento para o corpo do planeta; e Sobre a Vida, onde me volto para o envelhecimento da minha família mais próxima. As três séries juntas nos questionam sobre o que é estar no mundo hoje, apesar de todos os nossos excessos, e o que significa estar realmente presentes.
Para mim, A Vida Nua é uma exposição que reafirma o poder da pintura de ainda abrir mundos e de sustentar presenças. Mesmo diante da precariedade da vida, a figura vem se afirmar na sua potência radical — ou presença.
Meu encontro com o trabalho de Anderson Santos, materializado sob o pretexto da sua exposição, vai um pouco além do que aqui se passa. Esse encontro, que se dá no cruzamento entre gerações e em meio a um profundo interesse pelas implicações da estética na vida e no cotidiano da experiência negra, alcança também um conjunto de situações sobre a prática e sobre os motivos da insistência na intimidade da pintura. Nesse sentido, A Vida Nua é, antes de tudo, um percurso transversal nos últimos dois anos de produção do artista, em que podemos presenciar tanto um estudo sobre sua pesquisa pictórica quanto um testemunho de sua trajetória como pesquisador da imagem.
A partir dessa posição (a do encontro), a prática compositiva de Anderson Santos se coloca num lugar duplo: um espaço em que o corpo, em vez de se fixar numa forma estável de figuração, aparece como meio atravessado por composições biográficas e digitais — fabuladas, sobretudo, por percursos de inteligência artificial —, memórias e recombinações tecnológicas. Quando afirma que ser pintor negro e baiano não é uma identidade a ser simplesmente reivindicada, mas uma condição de risco e de potência, o artista aponta para a pintura como território em que se tornam visíveis tensões e histórias que não cabem no biográfico, mas que inevitavelmente transbordam nele.
Em A Vida Nua, essa condição se apresenta sob o signo do paradoxo. As obras reunidas trazem presenças que se insinuam e logo se desfazem; corpos que aparecem como começos; jardins povoados por figuras que não cessam de oscilar entre memória e invenção. A pintura é o meio em que esse movimento se materializa: a cor se acumula em camadas, mas é atravessada por interrupções, cortes, mudanças de ritmo, traços e dissoluções que devolvem ao espectador a experiência da instabilidade.
O título da exposição convoca a expressão formulada por Giorgio Agamben para designar a vida reduzida à sua dimensão biológica, exposta ao poder e à violência. Mas, nas mãos de Anderson Santos, essa “vida nua” não é apenas isso — é também insistência, possibilidade de reinvenção. Aqui, a vida exposta é também a vida que atravessa o tempo, que se multiplica em imagens que não cessam de se recompor.
Nas obras apresentadas, de Presenza 45 (il primo inizio) a Io, Anderson, passando por Accra (Agbogbloshie) 4 e Vida Nua 5, a pintura se abre como espaço de deslocamento e retorno. Em Accra, por exemplo, encontramos uma geografia marcada pela circulação e pelo descarte, ao mesmo tempo em que se evoca um lugar de memória coletiva. Em Io, Anderson, a primeira pessoa não é autoafirmação reduzida, mas exposição: o “eu” que se mostra é sempre atravessado por outros, por fantasmas, por forças de fora.
Desse lugar e a partir desses procedimentos, A Vida Nua pode ser lida como um chamado: olhar para o corpo não apenas em sua condição de limite, mas como abertura. Olhar para a pintura não como representação, mas como prática material que convoca memória e invenção. E, sobretudo, olhar para a vida não apenas em sua precariedade exposta, mas em sua força criadora — no gesto que insiste em transformar a carne em presença. Ao afirmar que pintura e autorrepresentação não se limitam ao íntimo, expandindo-se em camadas coletivas, aproximamo-nos também das questões formuladas por Fred Moten e Stefano Harney em A Des/Aparição da Foto de Família Negra: “com a fotografia, o enquadramento se apresenta a nós como um ato de separação, um ato de foco e um ato de isolamento”.
Na pintura de Santos, o enquadro também opera, mas sempre em tensão: há corpos que se deixam capturar pelo limite da tela, mas que logo se re/de/compõem, se tornam outros, puro fluxo de um arcabouço referencial. Como se resistissem à “prioridade do quadro” e à tendência da imagem a se converter em retrato, em sujeito fixado, possuído. Moten e Harney lembram que “toda fotografia é uma retratação, especialmente quando a figura da modelo parece não lá estar”. Aqui, esse jogo se repete: o que vemos são presenças em vias de tornar-se, corpos que estão e não estão, que aparecem e se retraem.
Esse desvanecimento [fade], apontado por Moten e Harney, vai além de um simples efeito óptico: é um dispositivo para pensar a experiência estética da vida negra. A fotografia de família negra — um gênero que deveria afirmar pertencimento, identidade, permanência — é sempre atravessada por riscos de desaparecimento, apagamento, roubo, descarte. O fade é, nesse sentido, o espaço entre presença e ausência, memória e perda, ferida e bênção. Eles escrevem: “A foto polaroid se revela assim como des/aparece [fade] ao toque. A existência insiste nesse borrão da ferida e da bênção”.
O fade não é apenas precariedade, mas também potência. Ele abre brechas na prioridade do quadro, na compulsão de capturar e fixar sujeitos. Em vez de cristalizar uma identidade, o fade mantém o corpo em movimento, instável, fugitivo. Recusa o acabamento e, assim, funciona como prática de liberdade. Carrega também a dimensão da partilha: o que resta na foto de família não é uma presença íntegra, mas fragmentos, borrões, instabilidades que se transmitem de mão em mão. Uma “química de momentos roubados” — forma de comunhão precária, feita de restos e sombras, mas ainda assim vital.
Meu encontro geracional com Santos, expresso no contexto da sua exposição, pode ser lido da mesma maneira: uma insistência nesse borrão, nesse duplo estatuto de ferida e bênção, onde a carne da cor é o lugar em que violência e vitalidade se misturam. Vida e estética podem ser apreendidas como suporte daquilo que é insuportável, não como campo de resoluções apaziguantes, mas de contínua fugitividade. Assim como a fotografia em Moten & Harney, as telas de Santos são experiências de instabilidade, práticas que não prometem redenção, mas nos observam. Um “eu” em dissolução, em partilha: “é a aspiração de nosso suspiro de morte, a substância de ser não-vista em ser sempre vista”.
Por fim, A Vida Nua pode ser lida como gesto de recusa — gesto próximo ao que Moten e Harney chamam de “resistência estilhaçada, protegida — a química de momentos roubados é nossa verdadeira e terrível e bonita partilha negra”. As telas não entregam corpos fixos, não oferecem identidades pacificadas, mas partilham a instabilidade, a oscilação entre presença e ausência, figura e dissolução. Essa opacidade, a da participação no velamento-desvelamento, é justamente aquela que não oferece o corpo ao regime do visível, mas o transforma em campo de novas aparições. Essa dádiva mútua, sem fim, é também a lógica de sua pintura: ensaio indisciplinar, prática de vida, estudo poético em fuga.
Em A Vida Nua, portanto, o ato de pintar é sempre um fade. O corpo, sempre em risco, reaparece como cor, respiração e vitalidade. Como nos lembra Fred Moten: “nosso objeto resistente e implacavelmente impossível é predicação sem sujeito, fuga sem sujeito […] uma ode à impureza, uma obliteração da última palavra”. A pintura de Anderson Santos é essa obliteração: vida nua que não se deixa possuir, mas que insiste em suas forças — precariedade e bênção, ferida e sopro vital.
Tarcísio Almeida