“Guerra do soldado sem razão”, Thaís Darzé
Tudo agora é pandemia, tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia, aqui todo mundo vai morrer. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas […].
Fala de Bolsonaro em Isto É, 2020
No início de 2021, enquanto o mundo enfrentava a pandemia da covid-19, no Brasil, que se encontrava no meio do mandato do então presidente da república Jair Bolsonaro, não apenas a saúde, mas também a democracia estava em risco. Um pouco antes disso, Fábio Magalhães se debruçava sobre “Escritos sobre a guerra e a morte”, de Sigmund Freud. É esse cenário que funciona como gatilho para a série de pinturas e objetos do artista intitulada “Guerra do soldado sem razão”.
Um gatilho emocional é uma situação que “dispara um trauma” em um indivíduo, entendendo que nossos processos mentais acontecem de forma encadeada, ou seja, nenhum pensamento, sentido ou lembrança acontece isoladamente ou por acaso, tampouco surge do nada. Ainda que algumas sensações aparentem certa espontaneidade, existem elos ocultos que conectam esses eventos mentais a outros anteriores, em uma sequência contínua de pensamentos e emoções.
O mesmo ocorre com o corpo da obra de Magalhães. Em seus trabalhos, é possível observar a construção de um realismo ficcional a partir de pulsões das condições psíquicas, em uma estrutura conceitual arquitetada pelo artista ao longo dos anos em diálogo com sua pesquisa plástico-visual. Contudo, apesar dessa pesquisa cuidadosa, o artista afirma: “minha arte não é uma ilustração de teoria, e nem deve ser; a teoria é apenas a semente fértil”.
Fato é que tal cenário, de um país polarizado, regido por um discurso de ódio, sob um governo autoritário e cujos cidadãos enfrentam possibilidade de ter a vida ceifada, ou a de seus entes queridos, levou Fábio a visitar e articular uma série que metaforiza a pulsão de morte através da guerra. Porém, trata-se de uma guerra sem altas patentes, na qual há apenas soldados. Estes podem ser voluntários ou cooptados pelo serviço militar obrigatório, indivíduos no front de batalha que desconhecem a razão da defesa ou do ataque, desconhecem o território, a direção, as táticas e estratégias. Indivíduos desprovidos de consciência, arremessados no campo de batalha, como brinquedos, marionetes ou mesmo peões cegos em um tabuleiro invisível.
No conjunto de pinturas e esculturas de “Guerra do soldado sem razão”, o artista utiliza o brinquedo para representar o soldado, tensionando os conceitos de diversão, infância, violência, poder e morte.
Os limites entre violência e infância são encurtados, deflagrando contornos sociais, de modo a definir quem pode brincar e viver, em oposição àqueles a quem essas ações são negadas. Também nos damos conta de que vivemos em um mundo que cultua a guerra e a violência, onde elementos bélicos são associados à diversão e infância numa perspectiva histórica, em que a inocência não é permitida.
O artista, ao resgatar brinquedos da própria infância, reaviva memórias lúdicas que ultrapassam as barreiras da brincadeira para tocar nas duras realidades da vida, criando um verniz imagético para suas obras.
A produção de Magalhães não opera por meio de mudanças bruscas ou grandes rupturas. Seu vocabulário imagético e o substrato conceitual de sua pesquisa preservam as estruturas desde as criações inaugurais do artista. Suas obras nascem de metáforas sobre as condições psíquicas humanas. Não permanecem na superfície. Nelas, diversas camadas da subjetividade do ser vão se sobrepondo até as profundezas das condições humanas, em que temporalidade e espacialidade são completamente ausentes. O cenário e o contexto histórico se localizam na superfície, enquanto o alicerce se encontra nas pulsões — nesse caso, na pulsão de morte.
Pulsão, instinto ou impulso fazem parte do “território” inconsciente, no qual habitam processos que não são acessíveis ao consciente de um indivíduo, segundo os conceitos freudianos básicos. Nesse sentido, vão parar no inconsciente, a parte mais recôndita e inacessível da mente, fatos que foram excluídos do consciente e que não podem ser lembrados, pois foram reprimidos ou censurados, e lembranças traumáticas que continuaram a influenciar a vida do indivíduo sem jamais ser lembrados.
Tanto a pulsão de vida quanto a de morte têm fontes de energia distintas. Freud denominou a libido como a fonte geradora da pulsão de vida, mas não denominou a fonte geradora da pulsão de morte. Seria a destruição essa força motriz de morte? Fábio elegeu a guerra como metáfora para traduzir a pulsão de morte em seu repertório. Existiria força maior de autodestruição, em escalas humanitárias, do que a guerra?
“Soldado, onde está seu propósito?” é uma tela com fundo branco, sem horizonte ou qualquer referência espacial, apenas uma suave sombra da figura de um soldadinho de brinquedo degolado, sua arma está apontada para baixo, em condição de vulnerabilidade. A cabeça do soldado degolado está posicionada logo à frente do corpo que permanece em pé, dando a impressão de uma recente decapitação. Nessa obra, não existe porção humana, não há sangue ou vísceras. Onde estaria o conflito então? O propósito do brinquedo não deveria ser brincar de matar? Ao mesmo tempo, o soldado possui uma arma de fogo nas mãos, mas parece ter sido morto por uma tecnologia rudimentar, como um facão. Conflitos insolúveis e antagonismos são recorrentes em suas obras.
Já em “Artilharia acéfala”, apesar de uma composição estética semelhante por conta da ausência de elementos espaciais e humanos, temos cinco soldados também decapitados enfileirados em posição de ataque, com armamentos de guerra. São objetos/brinquedos sem vida e armados para matar, ou seria para morrer? A ausência das cabeças sugere uma perda de consciência, em que indivíduos se tornam brinquedos/marionetes de máquinas de guerra, seja nos conflitos individuais ou nos grandes conflitos impostos pela sociedade. Nós nos tornamos seres que reagem sem razão e que pouco conhecem a si mesmos e aos próprios propósitos.
Aos poucos, as porções humanas, através da presença do sangue e das vísceras, vão emergindo nas pinturas. Em “Soldado, aonde está seu inimigo?”, os três soldados têm a cabeça/consciência preservada, mas ainda assim permanecem num estado de desnorteamento quanto ao campo de batalha. Parecem atacar as porções de carne, as vísceras. Mas de quem são essas vísceras? Não seria um ataque ao próprio eu? A consciência não é suficiente, consegue acessar seu inconsciente?
Um ponto a ser notado é que os títulos de muitos dos trabalhos dessa série são questionamentos e interrogações. Essa atitude reforça de forma ainda mais explícita o fato de que a obra de Fábio não se propõe a apresentar respostas, mas está ligada a dúvidas, tensões e até mesmo contradições.
Em “Soldado, a quem tu pedes ajuda?”, a presença de carne viva toma conta da pintura, cobrindo quase todo o campo de fundo do trabalho. No primeiro plano, o soldado/brinquedo aparece agora desarmado e com um telefone ao ouvido. Um pedido de reforço no front é sugerido no título da obra; contudo, a presença da interrogação nos faz perceber a desorientação do combatente. Estaria ele pedindo ajuda aos aliados ou aos inimigos? Essa pergunta reforça a ideia de falta de sentido nos conflitos e, principalmente, nos leva a refletir sobre quem de fato controla uma guerra e se beneficia dela. Será que temos consciência de quais conflitos devemos enfrentar?
Uma das esculturas mais intrigantes é “O monumento”: o mesmo personagem (soldado/brinquedo) se repete em todas as obras da série. Nesta, ele encontra-se em um pedestal de mármore preto; a figura bate continência, mas tem a própria cabeça embaixo de um dos seus pés. Porém, monumentos são esculturas ou estruturas arquitetônicas destinadas a perpetuar a memória de um grande feito ou personagem. Dessa forma, como um mísero soldado sem consciência seria digno de um monumento? Os “Senhores da Guerra” não sujam suas mãos e nem perdem suas cabeças, mas são eles que são imortalizados através da preservação de suas memórias.
“Ode à barbárie” é outro objeto que compõe a série: um dos soldadinhos de chumbo conquista o topo de um monte de vísceras e, com ares de vencedor, ergue uma bandeira para demarcar o território. O título tem um tom de ironia, fazendo exaltação à barbárie. A carnificina, o massacre, a guerra no contexto contemporâneo são associados a processos não civilizatórios. Entretanto, o mundo hoje enfrenta dois grandes conflitos: as guerras na Ucrânia e em Israel. Seria essa, então, uma confirmação da teoria freudiana de que o conflito e a guerra são ímpetos da condição humana? Seria a guerra uma necessidade humana de autodestruição e autorregulação?
“Guerra do soldado sem razão” nos leva a refletir sobre como a pulsão de vida e a pulsão de morte são interdependentes e precisam coexistir no ser para que se tenha uma vida em equilíbrio. Um indivíduo que tem apenas a pulsão de vida em funcionamento seria um indivíduo saudável? O excesso de libido certamente o levaria a uma disfunção. Portanto, é preciso compreender vida e morte como energias complementares e inseparáveis no ato de existir.