A mostra O Tigre do Dahomey – A serpente de Whydah, de Mario Cravo Neto, apresentou 59 fotografias, acompanhado do lançamento de um livro com o mesmo título.
A exposição e o livro trazem referências ao momento do sacrifício. São animais ensanguentados, sem a cabeça ou com a cabeça separada do corpo representando oferenda ao deus, numa mistura de ervas, penas e sangue. As referências ao candomblé e a sua ritualística são constantes em sua obra e Exu é representado não só pelos objetos e cores, mas pela atitude de valorização da cultura religiosa afro-brasileira implícita na encenação dos personagens.
Margarett Loke
Ele continua empurrando os limites da foto-grafia em preto e branco desnudando deu-sas formas na escuridão.
(The New York Times, 21.11.1997)
Isabel Carlos Lisboa
(…) a fotografia é, em M.C.N., mais do que um lugar de experimentação de efeitos ou, nou-tra vertente, um registro da realidade: é, sobretudo, um lugar de procura da natureza humana, no que esta possui simultanea-mente de visceral e de sublime. Por isso, os seus retratos não são apenas caras e cor-pos encenados em estúdio: são registros de algo que aconteceu, de vivências, de pro-cessos, de transformações – ou, se quiser-mos, de “performances” (o corpo espirrado de cal, o pássaro tropical em interacção sobre um torso, uma tartaruga no lugar do rosto: acções pontuais que desestabilizam os limites de todos os corpos). (…)
Ao telefone, ao convidá-lo para a entrevista, Mario Cravo Neto, amigo desde adolescência nos caminhos da Bahia, num momento onde dava continuidade a sua brilhante atividade criativa, com novo livro e nova exposição, inicia a nossa conversa, reproduzindo na abertura, após dizer ‘claro que respondo’:
Farejando nosso grande poeta Bob Dylan eis aqui a canção que sempre citávamos: Don’t Think Twice, It’s All Right.
An’it ain’t no use to sit and wonder why, babe
If you don’t know by now …
When your rooster crows at the break of dawn
Look out your window and I’ll be gone…
But don’t think twice, it’s all right*
Assim podemos agora percorrer o caminho da entrevista.
* Não pense duas vezes, está tudo bem – E não adianta sentar e se perguntar/Se você ainda não sabe…/Quando o galo cantar ao nascer do sol/Olhe janela afora e eu não estarei mais lá…/ Então, não pare para pensar, está tudo bem.
Suas fotos possuem uma marca intransferível. São bastante pessoais. Identifica-se de pronto ser de Mario Cravo Neto. O que o levou, dentro da cena contemporânea internacional (você é um artista internacional), a esta criação e a esta produção?
É verdade? Ou seriam algumas delas, ou uma das facetas que pratico que me tornaram mais conhecido? Aqui temos imagens de muitos anos atrás e algumas recentes, escolhidas e colocadas juntas, em dípticos ou trípticos, às vezes solo – todas vindas de um processo poético que emerge de uma espécie de aroma que expande a sua nascente nos seus afluentes. Mais especificamente estamos falando de 45 anos de devoção à prática criativa.
Suas fotos não são reportagens nem narrativas. Estão mais para o documento. São antropológicas. São dramas de um povo, de sua gente, do homem. O que é a fotografia para você? Apenas um trabalho? Ou sua forma de expressão para comunicação com o mundo? Ou simplesmente uma arte, a arte que você cria?
Creio mais especificamente num leve drama; documento e antropologia nunca me interessaram. Diria que o que faço é uma expressão do “myself” – expressão que não tem significado claro na nossa língua. O resto para mim não importa, sou indiferente à fotografia, ou se estou me comunicando com o mundo, pois este não é o sentido do que pratico. Desde cedo que faço mesmo é o que gosto, e só agora cheguei à conclusão que, tentando fazer o que gosta, também tem que fazer o outro lado, o que não gosta. Nos meus vinte, passei um ano na cama sem me movimentar, fiz tanta coisa que gostava num momento em que era obrigado a fazer o que não estava a fim, por estar preso e imóvel. Quarenta e um anos depois, eu me encontro na mesma situação, e por isto mesmo esta mostra ficou guardada de dezembro de 2007 a junho de 2008. E aí, gosto do que estou fazendo? Sim, porque já não faço mais aquilo que inicialmente projetamos, estamos num outro momento e num outro espaço – assim nasceu o título da mostra que naquela época ainda não existia: A Flecha em Repouso.
O corpo na sua foto, sejam os humanos, o das coisas, dos bichos, inteiros ou em seus detalhes, retratos, todos eles podem ser vistos em vários períodos de sua obra; eles são reveladores do íntimo de cada um. O que o leva a buscar captar esta alma de tudo e de todos?
O corpo na foto? Sim, o corpo no meu trabalho sempre foi o meu corpo e o meu espírito, um sem o outro não vinga, imbuídos de um fundo mítico/poético. Lendo Bertrand Russel, que os mais jovens pouco conhecem – no livro Misticismo e lógica, encontrei o texto referente a Zenon, o eleático – em anexo no catálogo da mostra. Encontrei a referência três anos atrás, copiei o texto e perdi o livro, não consigo achar. O que mais posso dizer se as coisas comigo acontecem assim.
O corpo na sua fotografia, apesar de sua beleza, não é sedução erótica ou exotismo, mas o corpo na sua dignidade de corpo humano. Que pensamento o leva a criar – são indiscutivelmente belas fotos – o corpo através destas características?
Mudo um pouco o roteiro das perguntas para que fiquem mais update com o contexto: existem matéria e espírito, misticismo e lógica, com suas variáveis dependendo do contexto cultural em que se apliquem. Não creio que “corpo” seja sinônimo de matéria, já que hoje os físicos já a tratam como matéria sutil. Na nossa cultura baiana, se olharmos a nossa volta, encontramos árvores e pedras que comem, corpos que se banham, cabeças que bebem, então que universo é este do qual estamos falando?
Suas fotos, apesar de individuais, quando vistas separadas possuem cada uma sua autonomia, mas elas nos parecem criadas sempre como parte de um ensaio, de uma exposição, de um livro, e possuem um tema, uma revelação. Suas fotos são exigências desta revelação ou de uma revelação exigente?
A vida é revelação em qualquer nível. Necessitamos de mais compreensão, mais amor, mais pensamento positivo, menos problemas, revoltas, discussões e trapaças. Às vezes me sinto cansado por ser humano.
Como é escolhido o tema que você passa a desenvolver? Há um projeto? Uma conceituação? Como constrói a sua temática?
O tema aparece quando a obra ou o trabalho está pronto. Tema é só um ponto de partida, nunca o fim da linha, onde se joga a toalha.
Quanto à composição, muito do seu trabalho é de estúdio, com fundo infinito. O que o leva a buscar esta intencionalidade destes para a sua cena? Como é feito o jogo de sombra e luz que aí é evidenciado? O que origina a criação desta composição?
O que origina a criação desta composição no jogo de luz e sombra? Em termos mais abrangentes, é a velha questão: o sol se levanta e ilumina de forma rasante a superfície da Terra; aí fica mais tarde e as sombras, como geleiras, desaparecem ou se dispersaram; depois vem o meio-dia e fica tudo flat. Pós noon, o processo recomeça no sentido inverso dos ponteiros, e assim passa o dia. O artista faz a mesma coisa com uma pequena diferença – ele desfaz o que não agrada, rasga, quebra e joga fora; outros cortam sua própria orelha!
Você se considera um artista do espaço e da luz? Este é um caminho para aprender a sua arte?
Caminho para aprender arte é um refrão; em arte não tem nada para se aprender. Ou você faz o drama ou se consome no drama.
O que é a memória na sua arte? O que é a memória para um artista como você? Desdobrando a pergunta: o que é e o que há da ancestralidade na criação de sua arte?
Basta olhar a sua volta, depois virar um pouco e observar a si mesmo e caminhar pelo jardim onde os símbolos trarão a sua atenção para o que interessa – vem expresso em forma de sonho e compete a cada um interpretá-lo. Aí é onde reside a questão! O nosso Carl já resolveu a questão assim: “A sensação nos diz que alguma coisa existe; o pensamento mostra-nos o que é esta coisa; o sentimento revela se ela é agradável ou não; e a intuição dir-nos-á de onde vem e para onde vai” – Jung.
Que influências você considera fundamentais para vir a ser o fotógrafo que você é, com este rigor, esta precisão, esta rara beleza e humanidade?
Não são influências, mas certo tipo de temperamento herdado, que cada indivíduo carrega dentro de si. Fora isto, ele (o temperamento) deve ser domado para que se torne mais brando, para que possa suavizar nossas alucinações.
(entrevista / junho de 2008)