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José Bechara

Abertura
27 de abril de 2023

Horário
19h

Exposição
27 de abril a 27 de maio

Um minuto e dezessete segundos

 

“Navegar é preciso, viver não é preciso”. Fernando Pessoa.

 

Após fazer as devidas oferendas, Ogum “deveria esperar a próxima chuva e encontrar um local onde houvesse ocorrido uma erosão. Ali devia pegar areia escura e fina e colocá-la no fogo… ao queimar aquela areia, ela se transformou na massa quente que se solidificou em ferro. O ferro era a mais dura substância que ele conhecia, mas era maleável quando estava quente. Ogum passou a modelar a massa quente. Ogum fabricou primeiro a tenaz, um alicate para tirar o ferro do fogo… Ogum passou a produzir toda espécie de objeto de ferro…”[1].

As obras de José Bechara emanam a força de Ogum, orixá forjador, guerreiro, patrono da agricultura e protetor daqueles que viajam pelas estradas. Certamente, o artista não imaginou essa presença quando produziu os trabalhos. Suas referências, grande parte provindas das vanguardas, estão distantes das religiões, sobretudo de matrizes africanas. No entanto, Ogum esteve presente em seu processo de criação, e, ao aportar na Bahia, isso se tornou evidente.

Bechara usa o ferro, o cobre e outros metais como pintura, se apropriando dos tons e efeitos obtidos no processo de oxidação como pigmento. Avermelhados, amarronzados, azulados e esverdeados são frequentes, inclusive nos suportes que utiliza – as lonas de caminhão. Essa presença da energia das rodovias é mais um elemento que coloca “Ogum no caminho” das obras, como um oculto coautor. O artista tem consciência do acaso em sua produção, incorporou o intangível como parte de sua práxis e poética. Uma operação alquímica, cujo desconhecido é administrado pela experiência que adquiriu e por uma operação sensitiva-científica controlada por ele.

A experimentação se tornou regra, assim como o intercâmbio de saberes e fazeres. A busca por dogmas coletivos e por uma perfeição idílica deixou de ser preponderante, e o artista se sentiu livre para criar sua própria identidade. O trabalho de Bechara é um jogo de fruição infindável que retorna ao mesmo ponto que não se encontra nem no começo nem no final, e se torna cíclico na visão. O que temos diante dos olhos é mutável, uma obra viva que pulsa uma inquietação formal, presente também na personalidade do artista. A lona que cobriu é agora coberta; a oxidação se fundiu como pintura; traços e faixas que, ao mesmo tempo, delimitam e expandem o espaço planificado da tela.

A possível perfeição geométrica, aparente nos grids e em outras obras da exposição, se encontra apenas na epiderme da percepção e logo se desfaz nos derretimentos orgânicos dos escorridos de tinta e nas falhas assumidas. Uma organicidade sútil presente em boa parte dos trabalhos, conformados por uma “geometria hesitante”, de quase-retas interrompidas pela natural imperfeição do gestual humano. Existe aqui uma consciência aparente da impossibilidade de controle do resultado final, assumindo o percurso como tal. O caminho é o objetivo e não a chegada. Uma metodologia que absorve o tempo e o acaso como partes integrantes das obras. Desde a apropriação das lonas, que tiveram passados desconhecidos; até a espera das reações químicas, que dependem do clima; do sol; da chuva; da umidade; da temperatura; do tempo; de paciência; de sabedoria; de erros e acertos.

A previsibilidade de um experimento é sempre relativa, e, na maioria das vezes, o descontrole precisa ser assumido. Em uma última interferência, o olho analisa o que precisa ser inserido ou apagado com o uso das tintas e cores. Além das escolhas, de materiais e reações, essa é a fase que Bechara tem o maior controle do resultado de sua ação. A obra seguirá, mesmo na parede e no espaço, se transformando pelo inexorável do tempo e das condições climáticas de onde esteja instalada. Entregue ao mundo pelo autor, vigiada pela mirada histórica da arte, e regida por Ogum, o orixá que nunca descansa. O artista também nunca descansa. Sua vida é um constante ato criativo em busca de soluções formais para resolver questões poéticas.

Um minuto e dezessete segundos.” Esse foi o menor tempo que Bechara levou entre a garagem de seu apartamento até a porta de seu ateliê, localizados em ruas vizinhas. Uma proximidade apaziguante para um artista intenso como ele, quando, no meio da noite, “encontra” o tom correto de uma cor que buscava para cobrir uma das muitas obras em que trabalha simultaneamente.

“O Galaxie do amor para sempre” é sobre esse momento; de alívio; de gozo; de intensidade; de apaziguamento e entrega. De um jovem, cujos hormônios estavam explodindo, e finalmente teve sua primeira noite de amor a bordo de um Ford Galaxie, “emprestado” do pai de um amigo, no alto de um cartão postal. De um artista cuja maturidade, rigorosa e consistente, permite adicionar novas camadas ao seu próprio repertório, sem hesitar, renovando sua própria linguagem constantemente.

A vida passa e “os passados” se perpetuam no presente, que é fruto do acúmulo dessas experiências vividas, como afirmou Walter Benjamin. Bom saber que Ogum sempre estará em nossos caminhos – nos protegendo, guiando e inspirando – mesmo que a gente não saiba. Ogum Yê!

Patakori Ogum!

 

Daniel Rangel.

 

 

[1] Prandi, Reginaldo. Mitologia das Orixá. “Ogum cria a forja”. Companhia das Letras. São Paulo, 2001.

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