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Miguel Rio Branco

Abertura
15 de junho de 2018

Horário
19h

Exposição
16 de junho a 13 de julho

Em junho, dia 15, às 19 horas, com temporada até 13 de julho, a Paulo Darzé Galeria promove a exposição individual Cabisbaixo no paraíso, 55 imagens de Miguel Rio Branco. Fotógrafo, diretor de fotografia, pintor, começou sua carreira profissional em 1964, com uma exposição de pintura em Berna, Suíça. Iniciando a apresentação do livro da mostra, o crítico Adolfo Montejo Navas, em seu texto, afirma:

Se podem sulcar as águas das imagens? Inventando outros rastos e pegadas? Deixar outros passos? Cabisbaixo no Paraíso delata essa travessia, faz essa operação imagética tão própria e característica da poética de Miguel Rio Branco, no caso, respeito a Dulce sudor amargo (1985), inventando novas veredas. As fotografias daquele primeiro livro emblemático, ou melhor, as imagens daquela época (finais dos anos 1970), voltam para construir outro percurso inédito, uma viagem visual na qual o componente lírico, que já estava mais que latente, aparece aqui mais à flor da pele, como se a parte que se manifesta doce do suor tivesse sido redimensionada, segundo indica o próprio fotógrafo e artista, se ganhasse outra perspectiva e horizonte.

Na mesma aspereza do mundo registrada de uma vez, de forma irrepetível, daquele Salvador (do Maciel, do Pelourinho), o que se significava era uma topologia anímica. Miguel Rio Branco fotografou a anima daquele lugar, sua aura entre a melancolia da ruína e a relíquia viva do humano. Um lócus permeável, vivente, in situ, tudo o contrário de um não-lugar. Imagens auráticas, portanto, que jogavam com a distância – neste caso, com as distâncias curtas – e com a criação de uma medida sensível que quisesse dar conta precisamente do sem medida. De algo imensurável. Talvez respondendo ao desejo renascentista, em pleno final do século XX (a época das fotografias), ou já no XXI com o novo livro que se apresenta, todavia, considerando o humano como medida de todas as coisas, em sua necessidade de constelação, cosmologia.

Logo, então, desta sensação de fraternidade e sentido, urgia sua metáfora visual, uma exploração do comum – de um mundo em comum –, que, por sua vez, produzisse uma situação singular, uma filiação artística imprescindível de intensa dinâmica visual e humana: muitas vezes dramática, goyesca, também semioculta, melancólica em sua vibração, onde o excesso de páthos não impeça o livre jogo dos afetos do espectador, de quem olha. Difícil assim permanecer fora, sem inferência estética, pois, como nas imagens apresentadas agora por ocasião da mostra na Paulo Darzé Galeria, a mirada é construída com uma colaboração, um pedido de sintonia, e, sendo este olhar antiautoritário, ele é produtor de ligações, de intervalos, de entres – de possibilidades de interlocução com o indizível –; o que faz parte da definição alquímica de sua fotografia, baseado nas correspondências, comunhões, contrastes e antilogias, na produção de uma temperatura visual como definição poética. Lembre-se aqui, como índice, do número de imagens que mostram e ocultam ao mesmo tempo, da relação intensa entre figura e fundo, dentro e fora, presença e ausência, estática e movimento, cor e espaço, quais harmônicos contidos numa fotografia que privilegia as associações plurais, em aberto.

Algo que se evidencia, por exemplo, nas “palpitações coloridas de uma atmosfera”, que, como já se via em Velázquez (segundo observou Élie Faure), soletra o espaço, atraindo tudo a seu redor: o tempo, as figuras, a arquitetura, os objetos… E este ar contaminado, antes do dizer, quase adâmico, reporta certa origem na contemplação, é tido como um sopro visual. Assim, todas as imagens reunidas aqui sob o título simbólico de Cabisbaixo no Paraíso são configurações viventes, e, como tais, pedem de nós, como um organismo vivo, a parte de falta, falha, ferida, cicatriz – reconhecer a sua incompletude. Em consequência, a muda fascinação, que nos envolve num fundo matricial dessas características, é o sonho da linguagem que está na superfície, que emerge nas ressonâncias das formas, ecoadas entre uma imagem e outra. Onde isto nunca é aquilo, já que o que vemos é parte do invisível.

Quando vemos, configuramos o oculto, deixando fora a facticidade das coisas, o contexto. Os contrastes, os enquadramentos, as posições, falam de imagens-energia, nada homogêneas, portanto, de um momento icônico em que o descontínuo se coloca inscrito no contínuo. Toda a obra de Rio Branco tem este passeio cabisbaixo no paraíso, esta soma de imagens assimétricas cujo quantum se mede por intensidades, forças, um além da imagem, um significante que extrapola os signos, o que vemos. Seja um gesto menor, fechado, ou uma vista aberta, de horizonte. Os limites e as medidas escolhidas pelo artista falam de um atlas visual, sempre se reconfigurando. E de um convite para mirar dentro aquilo que nos olha. E este ato de diferenciação e envolvimento perpassa nossa condição imaginante, necessitada de pensar com os olhos.

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Miguel Rio Branco nasceu em 1946. Filho de diplomata, viveu a infância e adolescência entre a Espanha, Portugal, Brasil, Suíça e Estados Unidos. Começou sua carreira profissional em 1964, com uma exposição de pintura em Berna, Suíça. Em 1966, estudou no New York Institute of Photography e em 1968 na Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro. No início dos anos 1970, trabalhou como fotógrafo e dirigiu filmes experimentais em Nova York. Em 1972, começou a expor seus trabalhos de fotografia e cinema e continuou a dirigir filmes de curtas e longas metragens durante os nove anos seguintes. Dentre seus curtas-metragens estão, por exemplo, A Jaula (1969), Apaga-te Sésamo (1985). Dentre seus longas-metragens podemos citar Revólver de brinquedo (1971), Dayse das Almas deste Mundo, (1991). Desde 1980 é correspondente da Magnum Photos.

Entre as principais instituições em que expôs em individuais e coletivas estão o Museu Georges Pompidou, em Paris, o MASP, em São Paulo, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tendo realizado mostras em cidades como Madri, Barcelona e Bilbao/Espanha; Nova Iorque, San Diego, Houston, Tampa, Boston, Connecticut/Estados Unidos; Buenos Aires/Argentina; Veneza/Itália; Berlim, Colônia, Frankfurt, Sttutgart/Alemanha; Paris/França; Londres, Liverpool/Inglaterra; Rotterdam/Holanda; Tóquio/Japão, e participado da 17ª e 24ª Bienal Internacional de São Paulo; 5ª Bienal de la Habana, Cuba; Nakta, 1ª Bienal Internacional de Fotografia Cidade de Curitiba.

Em 1966, estudou no New York Institute of Photography e em 1968 na Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro. No início dos anos 1970, trabalhou como fotógrafo e dirigiu filmes experimentais em Nova York. Em 1972, começou a expor seus trabalhos de fotografia e cinema e continuou a dirigir filmes de curtas e longas metragens durante os nove anos seguintes. Dentre seus curtas-metragens estão, por exemplo, A Jaula (1969), Apaga-te Sésamo (1985). Dentre seus longas-metragens podemos citar Revólver de brinquedo (1971), Dayse das Almas deste Mundo, (1991). Desde 1980 é correspondente da Magnum Photos.

Sua obra figura entre as principais coleções de arte, dentre as quais a de Gilberto Chateaubriand, no Rio de Janeiro, o Stedjelik Museum, Amsterdam, o Museum of Photographic Arts, San Diego, e a de David Rockefeller, Nova York, e seus trabalhos estão registrados em vários livros: Salvador da Bahia. Paris: Double Page, 1985; Dulce sudor amargo. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1985; Miguel Rio Branco. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991; Nakta. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1996; Miguel Rio Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; Silent Book. São Paulo: Cosac & Naif, 1998; Entre os Olhos, o Deserto. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. Entre as premiações estão o Grande Prêmio da Primeira Trienal de Fotografia do MAM de São Paulo (1980) e o Prix Kodak de la Critique Photographique, Paris (1982), Bolsa de Artes da Fundação Vitae, em 1994, e Prêmio Nacional de Fotografia da Fundação Nacional de Arte – Funarte, em 1995.

 

TOPOS E ANIMA (OU O DENTRO DE FORA)

Adolfo Montejo Navas

“Ó, doce milagre de nossos olhos cegos”

Jean-Luc Godard

I

Se podem sulcar as águas das imagens? Inventando outros rastos e pegadas? Deixar outros passos? Cabisbaixo no Paraíso delata essa travessia, faz essa operação imagética tão própria e característica da poética de Miguel Rio Branco, no caso, respeito a Dulce sudor amargo (1985), inventando novas veredas. As fotografias daquele primeiro livro emblemático, ou melhor, as imagens daquela época (finais dos anos 1970), voltam para construir outro percurso inédito, uma viagem visual na qual o componente lírico, que já estava mais que latente, aparece aqui mais à flor da pele, como se a parte que se manifesta doce do suor tivesse sido redimensionada, segundo indica o próprio fotógrafo e artista, se ganhasse outra perspectiva e horizonte.

Na mesma aspereza do mundo registrada de uma vez, de forma irrepetível, daquele Salvador (do Maciel, do Pelourinho), o que se significava era uma topologia anímica. Miguel Rio Branco fotografou a anima daquele lugar, sua aura entre a melancolia da ruína e a relíquia viva do humano. Um lócus permeável, vivente, in situ, tudo o contrário de um não-lugar. Imagens auráticas, portanto, que jogavam com a distância – neste caso, com as distâncias curtas – e com a criação de uma medida sensível que quisesse dar conta precisamente do sem medida. De algo imensurável. Talvez respondendo ao desejo renascentista, em pleno final do século XX (a época das fotografias), ou já no XXI com o novo livro que se apresenta, todavia, considerando o humano como medida de todas as coisas, em sua necessidade de constelação, cosmologia.                                 

Logo, então, desta sensação de fraternidade e sentido, urgia sua metáfora visual, uma exploração do comum – de um mundo em comum –, que, por sua vez, produzisse uma situação singular, uma filiação artística imprescindível de intensa dinâmica visual e humana: muitas vezes dramática, goyesca, também semioculta, melancólica em sua vibração, onde o excesso de páthos não impeça o livre jogo dos afetos do espectador, de quem olha. Difícil assim permanecer fora, sem inferência estética, pois, como nas imagens apresentadas agora por ocasião da mostra na Paulo Darzé Galeria, a mirada é construída com uma colaboração, um pedido de sintonia, e, sendo este olhar antiautoritário, ele é produtor de ligações, de intervalos, de entres – de possibilidades de interlocução com o indizível –; o que faz parte da definição alquímica de sua fotografia, baseado nas correspondências, comunhões, contrastes e antilogias, na produção de uma temperatura visual como definição poética. Lembre-se aqui, como índice, do número de imagens que mostram e ocultam ao mesmo tempo, da relação intensa entre figura e fundo, dentro e fora, presença e ausência, estática e movimento, cor e espaço, quais harmônicos contidos numa fotografia que privilegia as associações plurais, em aberto.

Algo que se evidencia, por exemplo, nas “palpitações coloridas de uma atmosfera”, que, como já se via em Velázquez (segundo observou Élie Faure), soletra o espaço, atraindo tudo a seu redor: o tempo, as figuras, a arquitetura, os objetos… E este ar contaminado, antes do dizer, quase adâmico, reporta certa origem na contemplação, é tido como um sopro visual. Assim, todas as imagens reunidas aqui sob o título simbólico de Cabisbaixo no Paraíso são configurações viventes, e, como tais, pedem de nós, como um organismo vivo, a parte de falta, falha, ferida, cicatriz – reconhecer a sua incompletude. Em consequência, a muda fascinação, que nos envolve num fundo matricial dessas características, é o sonho da linguagem que está na superfície, que emerge nas ressonâncias das formas, ecoadas entre uma imagem e outra. Onde isto nunca é aquilo, já que o que vemos é parte do invisível.

Quando vemos, configuramos o oculto, deixando fora a facticidade das coisas, o contexto. Os contrastes, os enquadramentos, as posições, falam de imagens-energia, nada homogêneas, portanto, de um momento icônico em que o descontínuo se coloca inscrito no contínuo. Toda a obra de Rio Branco tem este passeio cabisbaixo no paraíso, esta soma de imagens assimétricas cujo quantum se mede por intensidades, forças, um além da imagem, um significante que extrapola os signos, o que vemos. Seja um gesto menor, fechado, ou uma vista aberta, de horizonte. Os limites e as medidas escolhidas pelo artista falam de um atlas visual, sempre se reconfigurando. E de um convite para mirar dentro aquilo que nos olha. E este ato de diferenciação e envolvimento perpassa nossa condição imaginante, necessitada de pensar com os olhos.

 

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II

Dado esse prévio pano de fundo, há na obra do fotógrafo e artista duas forças em jogo que são a própria natureza da fotografia personalizada e cuja articulação é reveladora: “a linha descontínua dos choques reveladores ou o contínuo da copresença”, como diria Jacques Rancière*; em outras palavras, kairos e cronos, mas, sobretudo, a possibilidade das imagens disruptivas, autônomas e, ao mesmo tempo, de um baixo contínuo imagético subjacente a todo infinito, qual música. Não por acaso, é através de uma montagem mais simbolista que dialética que as frases-imagens de Rio Branco visam dar conta de um universo heterogêneo, maleável; que os versos-imagens – poderíamos dizer pelo grau de construção lírica e perceptiva – estão mais interessados em repotenciar o contraditório, nosso status cifrado de mistério ontológico, com imagens reveladoras e de choque por um lado, e de continuidade e de religatio por outro. Neste ponto, é fundamental ter em mente que em suas fotografias se percebem mais duas situações: o litígio com o mundo e o religatio com a vida ou o inverso, a comunhão com a existência e o conflito com a história. De fato, cabe se perguntar: não são suas imagens o intento, a chave ou uma senha para passar de um mundo a outro? (E resgatar a leveza do anjo caído, de algum paraíso possível?) Na verdade, é isso o que acontece: o verbo imagético de sua poética reata as duas situações, sem solução automática ou síntese pacificadora. Ambas as coisas, como vasos comunicantes no sempre frágil domínio da perplexidade.

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III

Seja como for, é a reconciliação de uma mesma matriz estética, como parte de um mesmo húmus, o que estabelece como razão poética uma coincidentia oppositorum de situações, vivências, percepções. Não em vão, o paradoxo disso continua alimentando sua obra até hoje de imagens e sinais, com todo tipo de registros. Como funciona a verdade visual de um oximoro, ajustando a distância certa para o encontro de coisas dissímeis, mas de alguma forma aptas para alguma conexão ou comunhão. Algum alumbramento. Contudo, o descobrimento lagunar, engolfado, de que a vida comporta matérias-primas tão irreconciliáveis ou adversas, parece inferir que só a volta do avesso inventa o devir de tudo. Aciona a máquina do mundo e seu sentimento. Ou o movimento dos ciclos, que são sempre maiores que nossa subjetividade. É o que se revela no movimento dessas imagens de Cabisbaixo no Paraíso, no qual seu sortilégio funciona como um ímã mítico que espraia a intensidade com que a cor invade, como um ar, dança, capoeira e geometria, areia e corpo, animais e arquitetura, ar livre e interiores, natureza-morta e viva ao mesmo tempo. Pois não é só o corpo que se contorce, também a alma. Assim, uma figura que sobe numa estrutura de barraca olha o céu vazado. Há o primeiro plano de uma mão de santo que implora outra fé de vida. Um tabuleiro espera seu turno de jogo. E o rústico instrumental de cabeleira não se contradiz com o plano contrapicado de um revólver no chão de um balcão que dá para a rua. Ou, então, quem não sabe que a sensualidade é uma serpente na pele? Que os torsos falam? Ou que um rojão lançado ao céu não deixa de ser uma celebração, oferenda, outra forma de sublime? Ou que cada vida tem sua jangada?

 

É o mesmo atrator imagético, mítico e vital que aciona todas as situações, ou que as milenares heteras ativam no meio de sua atávica atividade, numa decadência que não é só arquitetônica ou ambiental. Neste contexto, o renascimento das mulheres do Pelourinho transfigura aquele real, já frágil e malfadado. Daí que a intimidade dessas fotografias dói, seja por cumprir com uma vocação compartilhada de olhar e por apostar a favor de algo que não seja mera arbitrariedade e sim muito mais uma “imunização contra a exterioridade pura” (Cláudia Maria de Vasconcellos), contra a epidemia do alheio. Com efeito, as fotografias de Rio Branco prometem uma aproximação – até desde sua ferida –, uma poderosa aliança de afincamento, de presença. De copertencimento pneumático. Pois se trata de uma animação vivificante através de imagens que se convertem ao próximo como alteridade e natureza juntas. Nessa convivência, derivada de outro diapasão ocular, “a intimidade, essa imersão abissal no mais próximo, constitui uma região vedada a todos aqueles que permanecem reféns da linguagem sujeito/objeto”, como diz Juliano Garcia Pessanha.**

                                                    

IV

De fato, essa intimidade que despedem as imagens abriga um envolvimento especial, sui generis, além das convenções documentais. Como se se assistisse a uma viagem despojada, nua, abissal, uma aproximação ao que é desnudo, àquele limite em que fala o dentro de fora, e vice-versa. Deste modo, as imagens com saturação de cor, de certa opacidade ou baixa intensidade luminosa, revelam mais que qualquer coisa o poder de uma corporeidade constante que gravita no ar, e que se pode respirar em tudo: ora nos tórax ou nas extremidades focalizadas ou nas figuras fragmentadas, às vezes sem rosto, ora no mar como uma mancha vermelha ou na linha de praia com suas luzes e sombras de prata com figuras. Embora o corpo humano não seja onipresente como tal, nem aquele das prostitutas do Maciel inclusive, que ressoa como espaço vivo da hospitalidade, pois a própria linha de fuga das imagens sempre é para dentro, como parte de um umbral incandescente que não esconde sua parte de sombra ou de velado, de fragmento e de não totalidade. Naturalmente, o adentramento nestas imagens se produz da mesma forma em interiores, rostos, corpos, exteriores, dentro de um cômodo ou ar livre. Talvez porque o fio terra visual seja o mesmo, o de encarnar a imagem mais do que incorporá-la (na diferença que Marie-José Mondzain estabelece a respeito de como, na imagem, “encarnar é dar carne e não dar corpo. É operar em ausência de coisas”).***

Uma das razões dessa polivalência tonal das imagens pode estar, por sua vez, no seu interior semântico, sua pluralidade interpretativa e de leitura, o que permite uma articulação maior de exposição. Aquele religatio imagético, de forças, nem sempre à vista, mas latente, que funciona como um substrato, sulca fazendo uma nova leitura fotográfica, inédita em sua quase totalidade neste Cabisbaixo no Paraíso, e se inclina para o reconhecimento de uma permeabilidade pulsional, dionisíaca, às vezes melancólica, que representa o êxtimo e o íntimo. Uma porosidade, em suma, em que cor, luz, espaço e pessoas fazem parte do mesmo erotismo visual – da mesma pertença –, um tipo de osmose que deixa em suspenso, todavia, mais os limites prefixados do externo e do interno.

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V

No entanto, ninguém pode ignorar hoje que essas imagens abertas – de corpo e mirada aberta –, viraram muito mais “puras” (nobres) em sua impureza que a pornografia visual que tanto promove o tecno-capitalismo telemidiático e espetacular, leia-se sua promovida exibição da subjetividade. Neste sentido, a honestidade ética das imagens de Rio Branco tem a ver com o retrato amplo, generoso, da condição humana, mas não aquela que está sendo vendida nos reality shows, sob a aparência do entretenimento e cujo álibi é, ironicamente, a participação pública, algum grau de interatividade ou conivência. Esse exibicionismo banal das visibilidades clichês se contrapõe totalmente com o poder e a sensualidade das imagens do fotógrafo e artista, que nunca oferecem uma totalidade visual que sequestre nossa imaginação (uma reclamação muita denunciada pelo cineasta Abbas Kiarostami, por exemplo). Aliás, os desnudos do fotógrafo e artista parecem esconder mais do que mostram, não estão completos nunca, guardam um tremor, abrigam um enigma, em suma, uma certa indeterminação. Deveríamos falar melhor do desnudo em singular, melhor do lugar que ocupa o desnudo, sua marca perceptível em qualquer coisa representada, um devir especular da mirada. Tanto a gravitação das sombras, a luz espessando-se, o flou gestual, quanto a fragmentação das composições e a diversidade de angulações e recortes, tantas vezes cinematográficos (planos em detalhe ou recortados), são uma riqueza de pontos de vista que favorecem essa empatia emocional, perceptiva. No fundo, não há a redução narrativa ou configuração da imagem ao relato – ou àquilo que fosse simplesmente temático ou de uma tecla só –, como não há um reconhecimento clichê das coisas, senão um punctum explodido, uma aproximação polivalente às nervuras e cesuras do real.

Por meio de suas imagens fraseadas de grande poder icônico e simbólico, de uma sintaxe lírico-barroca, ao mesmo tempo ascética e exuberante – o destino de um olhar –, assistimos a um regime de copertencimento não só estético, pois se estabelece um laço comunitário – acaso a comunidade que vem –, como a tendência sempre neo-humanista que acompanha a sua fotografia. Daí também que em Cabisbaixo no paraíso – um símil bíblico para um passeio contemporâneo – se acesse um lugar localizado, que, sendo fruto de outra época, revive um mesmo élan vital, o de estar inscrito num conflituoso labirinto histórico, emocional, sobretudo numa época que há tempo se desconfigura a condição humana.

(Foz, abril de 2018)

 

> garoto capoeira

 

* Rancière, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 70.

** Pessanha, Juliano Garcia. Recusa o não-lugar. São Paulo: UBU, 2018, p. 12.

*** Mondzain, Marie-José. Pueden matar las imágenes? El imperio de lo visible y la educación de la mirada después del 11-S. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2016, p. 32.

 

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