Uma resenha
Alejandra Muñoz
Dar forma às frustrações ou expurgar ressentimentos através do processo artístico seria um caminho terapêutico. Mas, ateliê não é divã e Marco Antônio não entende suas vivências como patologia. Pelo contrário, ele tira da espessura das ausências, das omissões e das carências, um lastro conceitual para suas criações que articulam imaginários mais amplos e referências comuns à maioria de nós. Assim, o lúdico coletivo e o testemunhal subjetivo se entrelaçam na difícil equação da memória do artista: um passado recheado de incompletudes e um futuro atravessado por expectativas truncadas. O olhar pelo retrovisor da vida dá lugar a um roteiro surreal de criação. Então, como primeira mostra individual, esta mostra não é retrospectiva, mas resenha a produção recente do artista.
O ponto de partida é um gesto ético contemporâneo, o reaproveitamento, o reconhecimento das potências simbólicas de materiais ainda úteis. Madeira, metal ou papel, quase sempre oriundos de demolições de velhos edifícios, garimpos de sucata ou resquícios de peças esvaziadas dos valores representativos de outrora, explicitam uma concretude de existências ignoradas. Então, tais materiais são, além da expressão da resistência física e mineral, um modo de resiliência e de reinvenção que subjaz à obsolescência e impermanência daqueles objetos aos quais pertenceram.
O casal de imbuia assinala uma presença enigmática no espaço: duas figuras torneadas, que evocam a tradição do mobiliário baiano, parecem ter pulado do acervo do Museu Costa Pinto ao outro lado da rua. O acabamento polido e liso das peças enaltece a memória da vida pregressa que cada matéria carrega, ao mesmo tempo que veicula a possibilidade de um novo objeto. Entretanto, o trabalho artesanal paciente e as superfícies reluzentes não são suficientes para que os objetos funcionem: pipas de aço não voam, bolas de mármore quase não rolam, chuteiras de imbuia não podem ser calçadas, o ioiô não desenrola, o banco de cumaru não é macio, o bate-bate de ipê é aflitivamente impossível de ser jogado. Portanto, o paradoxo devém uma metáfora instigante para o trabalho artístico.
Como costuma acontecer no inconsciente onírico, a memória pode aflorar gerando imagens de objetos distorcidos. Os estudos incompletos, a formação profissional não alcançada, o desejo de jogador de futebol não realizado, os laços familiares ausentes são fatos que também passam por um reaproveitamento, uma nova utilização, tal como foram resgatados aqueles materiais remanescentes de outras trajetórias. O resultado é uma tensão significativa entre arte e design além do fazer artesanal da marcenaria: são objetos sedutores em sua forma cuidadosa que, deslocados da escala e contexto conhecidos, desafiam a lógica em sua impossibilidade funcional e subvertem o que se espera deles.
O grande carretel de vinhático, alusivo à mãe costureira, expõe a tensão com uma meia lâmina de barbear em aço inox, que simboliza a outras ausências. A dimensão ampliada da instalação lembra as operações de escala de Oldemburg. Mas também foi com esses carretéis que Marco Antônio fazia carrinhos de brinquedo. Uma homenagem à infância? Talvez. Essa ambiguidade também está presente nas pequenas carteiras de jacarandá. O painel parece evocar as pedagogias tradicionais e suscitar inquietações sobre os rumos do ensino atual. Sua escala reduzida é uma metáfora da educação no mundo de hoje? Mais do que nostalgia do ensino incompleto pelo artista, a insistência no detalhe e na singularidade de cada elemento, são alertas sobre alteridade? Na proximidade dessas peças, o quadro preto da escola vira um campo de futebol. Então, quantos aprendizados há fora da escola? A moldura kaminagai do quadro verde pode remeter à relevância do alternativo e do não formalizado na construção das trajetórias artísticas.
Nesse instigante contexto de subversões e ambiguidades, o velho livro esvaziado pode ser um calhamaço de possibilidades em aberto em lugar do despojamento literal de imagens de um passado fragmentário. Portanto, esta resenha pode ser apreciada como promessa de novas criações. Que assim seja.
1 – Você nasceu na Bahia, em 30 de agosto de 1971, em Salvador, onde vive e trabalha. O que há de sua cidade, de sua gente, de sua infância como campo de referência ou de investigação na sua arte?
Nasci no centro de Salvador, no bairro do Barbalho, e fui criado no Subúrbio Ferroviário, em Plataforma. Toda minha memória afetiva vem desse caminho entre o centro pós-colonial urbano e o subúrbio ferroviário, ainda rural naquela época, onde as necessidades sempre se esbarravam no ato criativo, ato esse, onde criava os próprios brinquedos.
2 – Inicia aos anos 1990, com a chancela da gravurista Sonia Castro, conhece a técnica da xilogravura, que o faz se aproximar de seu ofício primário, de marcenaria fina, herdada do avô.
Frequentei, na primeira infância, a oficina do meu avô materno onde tinha toda a liberdade de manipular ferramentas e construir o que vinha à cabeça. Com minha aproximação com Sonia Castro, comecei a estudar a técnica da xilogravura.
3- Pode falar da influência deste avô e da madeira em despertá-lo para o que faz hoje?
A influência dele foi de fundamental importância para conhecer técnicas e tipos de madeiras e suas diversas aplicações que hoje reverberam em meu trabalho.
4 – Ao fim dos anos de 1990, fortalece sua inserção no mundo das artes trabalhando no estúdio do artista visual J. Cunha. Qual o legado deste momento para sua arte hoje?
Ter contato com J. Cunha foi um pontapé inicial para entrar no universo das artes visuais com toda sua pluralidade e o legado foi o conhecimento obtido com o fazer artístico.
5 – No ano 2000 você participa das oficinas do MAM onde passa a ter contato direto, e podemos dizer diário, com vários artistas contemporâneos baianos e desenvolve especialmente técnicas de gravura e de expressão tridimensional. Qual o significado desta especialização para o quem vem depois na sua criação?
O significado foi a interação com as técnicas citadas e suas descobertas, tendo total importância e sendo fundamental para pensar e conceituar o trabalho.
6 – Nesse ínterim, junto com os artistas Eliezer Bezerra e Fernando Pigeard, cria o grupo Artconceito e passa a expor no circuito de arte de Salvador, da Bahia e do Nordeste. Pode detalhar este convívio em um coletivo, podemos chamar assim, no seu crescimento de artista?
Foram 10 anos muito produtivos. O Artconceito nasce com a ideia de ser um coletivo onde sempre abríamos para outros artistas. Discutíamos um sobre o trabalho do outro, onde esse câmbio de críticas gerava resultados extremamente positivos.
7 – Atualmente, você vem desenvolvendo um trabalho em que a memória e a experiência vivida caminham juntos. E disso temos sua frase: “Mergulho num lago de memórias “. A construção atual de suas esculturas, de seus objetos é, como você diz: “onde a lúdica experiência vivida faz surgir uma simbologia do imaginário popular”. O que é este imaginário popular na sua obra?
O imaginário popular surge no cotidiano, por exemplo, na construção dos próprios brinquedos, na observação do modus vivendi. Onde, latas de leite vazias enfileiradas viravam um carrinho de esticar.
8 – Sua arte dialoga com a arte contemporânea, são várias as tendências, e em qual delas se inclui?
Existe sim um diálogo, onde o desapego e a liberdade fantástica é o que mais me fascina na arte contemporânea. Não necessariamente me enquadro em nomenclaturas, apesar de estar sempre próximo de um conceito minimalista.
9 – Além da arte contemporânea sua arte tem uma busca na cultura popular. Qual a necessidade deste diálogo como força criativa e de buscar essa vertente na sua criação?
Seria o contraponto com tudo que vivemos nos últimos tempos com toda essa revolução digital. Vejo a arte popular como fonte inesgotável de pesquisa, pois nela observamos o modo de vida das pessoas.
10 – A sua arte, com essas escolhas, existe em sua plenitude por viabilizar a sua expressão, a expressão de sua linguagem, sua aventura? É uma arte pessoal?
Sim e é extremamente auto retratante.
11 – Vejo seu trabalho tratando de problemas de linguagem da arte – formas, volumes, espaços, movimentos, materiais –, e na busca de uma precisão técnica através de uma pesquisa incisiva e paciente por esses terrenos, principalmente na madeira, olhando seu trabalho como esculturas, esculturas em madeira. Como vê essa leitura sobre a sua obra?
Madeira é minha matéria prima principal, mas estou sempre disposto a investigar outros materiais como mármore, granito, aço etc.
12 – Como é deflagrado seu processo de criação. Uma imagem, um material, um gesto, uma palavra. O que?
Geralmente, vem com um insight, que coaduna com a matéria, mas pode surgir também com um aforismo popular, uma observação do cotidiano e até mesmo um gesto.
13 – Sua arte caminha na fronteira entre técnicas, por adotarem diferentes maneiras de trabalhar os materiais. Este leque amplo de resultados materializa conceitos presentes em sua pesquisa e em seu trabalho e satisfazem o desejo ou sonho do artista?
As técnicas são usadas para dar vazão às minhas inquietudes, aplicadas de acordo com a matéria usada e suas possibilidades. E a ideia presente satisfaz por um momento até o próximo desafio.
14 – Como sente ou localiza a sua arte neste momento da arte baiana?
Quando estudei no MAM BA, ainda havia discussões entre o moderno e o contemporâneo. Hoje, o artista já “nasce” contemporâneo, estou sempre a conhecer mais a minha “aldeia”.
15 – Situe essa exposição de agora na Paulo Darzé Galeria na sua trajetória e do que ela é constituída. Material? Tema? Quantas obras? Qual o significado dela no seu percurso?
Os materiais são madeiras de reuso, tais como: jacarandá, ipê, vinhático, imbuia, além de outros materiais, como chapa de aço carbono, aço inox, e granito. O tema é um autorretrato diluído em formas e volumes. São treze obras, entre esculturas de parede, objetos e esculturas circulares. A exposição na Paulo Darzé Galeria é a continuidade de minha trajetória e no que acredito.
ENTREVISTA p/ Claudius Portugal