As artes plásticas têm um público a ser questionado. Nós não temos um público para ser satisfeito. Esta é uma frase dita por José Bechara durante a nossa conversa, frase, aliás, de que gosto muito, pertinente a qual seja a arte, ou mesmo a literatura, que estejamos diante. E gostaria de abrir este texto sobre a sua pintura e escultura, ele que é um dos expoentes da arte brasileira hoje, com toda a carga que ela contém em seus significados e sua existência.
Tendo no início de sua carreira uma obra predominantemente de pintura, na sua trajetória passa a desenvolver uma linguagem poética, incluindo esculturas e instalações, além dos desenhos, e realizando em algumas obras um diálogo mais direto com a arquitetura. De antemão, todos devem saber que irão ver trabalhos onde a pesquisa formal é um dos fundamentos essenciais para a existência deles, tanto quanto o questionamento do espaço, do tempo, da memória, tendo como suporte na pintura a lona de caminhão, a lona usada, que, através de emulsões de cobre e de ferro, promovem a sua oxidação, acrescida de tintas e pigmentos, permitindo criar um trabalho de muita liberdade e de inegável beleza. As esculturas, por sua vez, nesta mostra, são desenhos espaciais, de rigorosa geometria, trabalhos revelando uma experiência nova, e o desejo de criar mais um caminho dentro da produção artística que realiza.
A experimentação com suportes e técnicas variadas marca o trabalho, e de nossa conversa vale destacar alguns momentos de suas ideias, posteriormente traduzidas na produção de sua obra: Arte é procurar o que não existe. A gente tem de ser motivado por riscos, a mostrar um trabalho de que você ainda não tem um domínio, que não está bem compreendido para mim. Eu acho que você nunca compreende bem o trabalho, ele aponta para um caminho. Eu nunca trabalho com certezas, eu considero uma pintura ou uma escultura como pronta, mas aquilo poderia ter sido feito de outra maneira também. Eu escolhi aquele material, aquelas dimensões, aquela aparência geral, mas isso é uma possível manifestação de uma ideia. Mesmo que você dê como pronto, o trabalho tem sempre uma vibração de dúvidas.
Esta tem sido a tônica de toda sua trajetória, iniciada com os estudos artísticos em 1987 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). Depois de quatro anos de estudo, em 1991, o artista passou a integrar um ateliê coletivo na Lapa, centro do Rio de Janeiro, com os artistas Ângelo Venosa, Luiz Pizarro, Daniel Senise e Raul Mourão. Em 1992 realizou sua primeira exposição de pinturas, no Centro Cultural Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Ainda neste período, começou a realizar experimentações, até que em 2002 criou sua primeira experiência escultórica, A Casa, trabalho que aconteceu durante uma residência artística no Paraná.
Estava hospedado em uma cabana linda. Mas nada de ideia e inspiração. Uma noite olhei para a janela emoldurando um quadrado negro lá fora e achei que aquilo era um vazio pronto para ser preenchido. Fui então colocando nas aberturas tudo o que tinha pela frente: camas, mesa de centro, cadeiras. No dia seguinte, de manhã, vi que aquele espaço tinha virado uma escultura, vomitando móveis, expulsando você. Havia ali, do ponto de vista simbólico, uma metáfora nessa inversão da casa. Uma casa que desaloja, que desprotege, que desampara. Eram móveis indo embora e você diante do vazio, desprovido de memória, de tempo. Tem a ver também com falta de lugar para as casas. E mais, ali pude perceber que tanto a casa e os objetos que nela estão são objetos geométricos.
Esta reorganização da mobília da casa, projetada para fora pelas portas e janelas foi documentada em fotografias, dando origem a duas séries: Temporária e Paisagem Doméstica ou Não Me Lembro do que Dissemos Ontem, que hoje integram coleções nacionais e internacionais, como a do Centro Pompidou em Paris, França. Outros desdobramentos desse projeto são Área de Serviço, uma exposição no Paço Imperial do Rio de Janeiro, em 2004, apresentando conjuntos de móveis domésticos organizados plasticamente e algumas séries de trabalhos de experimentação gráfica, como Externo e Interno, e os pequenos formatos. Com as esculturas em escala reduzida, chega o sólido vazio. Quer dizer, o vazio tem solidez, é uma matéria.
Também desta primeira experiência escultórica, uma obra em grande escala, em uma paisagem real, vem a explorar depois em diferentes maneiras, materiais e formatos, através de novas séries, como Open House, A Casa do Futuro e Ar – onde mais uma vez buscou na imagem de uma casa o ponto de partida para a criação. Em 2004, em uma exposição no MAM-Rio, reuniu todo o processo até então desenvolvido, além de uma peça escultórica de madeira em dois volumes com o mesmo título. Em Open House, realizou uma série de esculturas em menor dimensão, desenvolvida a partir de 2006, também tratando no tema esta casa simbólica e plástica. Também em 2006 fez a escultura Ok, Ok, Let’s Talk, uma instalação de mesas de jantar formando um plano irregular intercalado por duas cadeiras. Esse trabalho foi exposto na Pinacoteca de São Paulo, assim como no Patio-Herreriano, Museo de Arte Contemporáneo Español e na Galeria Mário Sequeira, com uma versão em madeira e outra em aço.
Ok, Ok, Let’s Talk é uma peça que vem logo em seguida e parte da ideia da utilização de um certo mobiliário doméstico, e lida com a geometria em grande escala, uma intervenção no espaço arquitetônico e que também traz uma carga simbólica sobre o amor. É sobre relações delicadas, diálogos impossíveis que algumas relações, depois de um certo tempo, têm de travar, e é sempre complicado. É uma experiência de intervenção espacial, é uma experiência formal no que diz respeito a intervenção, alteração ou ativação, seja o nome que você queira dar, do espaço arquitetônico, mas que tem um vetor simbólico também, e nele eu posso falar que é um trabalho sobre o amor, sobre a experiência difícil que as relações longevas oferecem.
Com as esculturas pequenas, série Open House, aconteceu o mesmo. Eu achei que a minha relação com a experiência escultórica precisava enfrentar outros problemas também espaciais. Fui para o pequeno formato. A escala reduzida me dá uma liberdade parecida com a que o desenho também me dá. Eu posso relacionar um número maior de materiais, introduzir outros elementos, como as grades vazias em algumas peças. Posso experimentar mais e errar muito mais ainda. Além disso, nessa escala reduzida, posso tomar todo o espaço ocupado pela peça ao mesmo tempo. Esses trabalhos menores, eu os produzo com o mesmo entusiasmo com que desenho.
Posteriormente no campo da escultura, Bechara realizou duas mostras no Instituto Tomie Ohtake, quando apresentou trabalhos que se tornaram uma quebra radical de sua produção neste campo tridimensional, diversamente do que apresentara em sua primeira exposição neste espaço – uma instalação formada pelo acúmulo de móveis, acompanhada por um conjunto de pinturas realizadas sobre lonas de caminhão oxidadas. Na segunda mostra, apresentou obras produzidas em vidro plano, utilizando-se das transparências, dos reflexos e das refrações, em trabalhos de grande formato, inserindo a pintura, para através destas relações envolver o espectador em uma arquitetura bastante singular.
Em seguida chegou a série Suspensos, pesquisa que utilizou grandes painéis de vidro presos por cabos de aço no teto, emoldurando de forma irregular peças aleatórias, cores, sombras, reflexos, manchas, transparências, superposição de planos, peso e equilíbrio, em desenhos marcados diretamente na parede. Em 2009, ampliou o universo espacial ao iniciar a série Esculturas Gráficas, jogo de tensão entre o geométrico e a matéria. Em 2010, com a série Gelosia, voltou a trabalhar com o vidro como suporte para suas obras. Placas de vidro com oxidação de aço, placas de fórmica e tinta acrílica tornaram-se peças escultóricas que se apoiam contra a as paredes e quinas das salas de exposição. É um trabalho que me dá muita liberdade e que vejo como uma pintura, embora a operação seja tridimensional. Pretendo experimentar muitas coisas. Estou só começando a esculpir o vazio. Cada experiência contamina a outra. Sei que nunca vou abandonar a pintura, que é a base de tudo, a grande paixão. Acho que a obra que produzo é a minha forma de gritar, de protestar, de me colocar no mundo.
Já a história da pintura de José Bechara, que começou figurativa, é modificada em seu percurso após um problema de saúde, por ter contraído uma hepatite A, que, mesmo depois de recuperado, como consequência, o impedia de trabalhar com tinta, fosse acrílica ou óleo. Neste momento foi que descobriu como suporte a lona de caminhão. Em um posto de gasolina, vendo um cara lavar uma lona de caminhão, paguei 20 reais para que ele parasse o serviço, o que me permitia olhar e perceber a diferença, a quantidade daquilo que mais tarde iria chamar de ‘ocorrências visuais’. A parte molhada estava mais homogênea porque havia um filtro entre a luz direta e a superfície da lona, que era a água. Ela tornava a superfície mais escura e mais homogênea, diminuía o grau de contraste entre as marcas que a lona recebia de cordas e outras coisas. A lona, propriamente, adquire com o tempo uma cor cinza, chumbo, oferecendo marcas mais claras. Era como uma pintura em uma tela de 11 x 8 m. Precisava pensar muito rápido, pois o cara queria continuar lavando. Novamente, como a mesa na janela, havia alguma coisa ali que não sabia o que era. Mas havia alguma coisa… Uma pintura ao contrário, que começava pelo fim.
Uma pintura que depende muito mais do olhar que propriamente dos gestos. No final das contas, porém, é pintura, porque tem uma hora em que o seu olhar vai dizer: para! Ele é quem manda. Essa lona escura não serve, pensei, mas a que não está molhada, sim! Precisava pensar na velocidade… A lona de caminhão usada é um campo que reúne uma quantidade de acontecimentos. Procurei, então, alguns caminhoneiros pelas ruas, mas eles não queriam vender porque precisavam da lona. A única maneira de ter essa lona usada seria comprar uma nova e trocar com eles pela usada – o que, em si, já é uma parte do trabalho. A ação é a seguinte: pego uma lona novinha, limpa, sem nenhuma marca, a não ser a logo do fabricante. Ela é laranja. Quando dou essa lona para o caminhoneiro, entrego uma matéria necessária para ele e desnecessária para mim. Obtenho aquilo que deixa de servir para ele, a sua utilidade, mas passa a servir para mim, em uma outra paisagem. Não é mais a das estradas, vai para um outro lugar. O trabalho da minha pintura hoje começa no posto de gasolina, na cooperativa de caminhoneiros.