Hildebrando de Castro é pernambucano, mas vive em São Paulo. Esta é sua primeira exposição na Bahia, Ilusões do real, doze pinturas em acrílica sobre tela e mdf.
Assinando os textos da mostra temos o artista Vauluizo Bezerra: “Estas imagens que ora vemos na Paulo Darzé Galeria dizem respeito às atualizações deste artista emblemático, que possui trajetória rica e transformadora pelo que é grifado em sua importância no panorama da arte brasileira. Aqui presenciamos a beleza inteligente de imagens que não guardam nenhuma inocência. São articuladas cuidadosamente no que nos oferece de sua beleza em sua camada mais aparente, além dos muitos substratos que suas abordagens referendam a serviço de um olhar preciso em suas estratégias cirúrgicas”.
A mostra Ilusões do real impressiona pela perfeição da execução e pelo preciosismo do traço ao criar a ilusão da realidade em pinturas que começou com uma viagem do artista pernambucano a Brasília. Ao chegar à cidade, ele ficou encantado com os brise-soleils do prédio anexo da Câmara dos Deputados. Os brises são lâminas, móveis ou não, que impedem o sol de incidir diretamente, mas deixam o ar passar — um marco da arquitetura modernista brasileira. Hildebrando passou três horas fotografando o prédio. Dois anos depois da visita à capital federal, ele resolveu reproduzir este elemento das fachadas dos prédios de Brasília. O resultado é uma pintura, em telas e objetos, que o espectador associa a uma abstração geométrica, mas não, é uma reprodução mesmo, pois os brises — usadas pela primeira vez por Le Corbusier no Palácio Gustavo Capanema, no Centro do Rio — criam um jogo de forma e cor na fachada, que muda de acordo com a incidência da luz, revelando combinações infinitas.
Na trajetória de Hildebrando de Castro temos em grande parte como tema o corpo humano, intercambiado por suas narrativas, elaborações e o simbólico que expressam, ou partes dele em sua fragmentação, com especial relevo para o coração, mais seres humanos e bonecos para falar de uma infância ou de uma vida perversa, com figuras insólitas, até chegar ao urbano, com as últimas mostras, como esta na Paulo Darzé Galeria de Arte, e a ilusão do real, jogo de formas e cores, por sua incidência da luz e da sombra, da composição e de combinações, chegando a alguns momentos a colocar a pintura na tridimensionalidade, apresentando objetos.
A obra de Hildebrando de Castro é uma obra de representação, os trabalhos possuem como base a fotografia. Não uma fotografia tirada a esmo, mas preparada em seu cenário para tal, o que nos leva a estarmos diante de trabalhos, seja figurativo ou geométrico, em não procurar a realidade em si, mas estreitamente vinculada ao real, uma arte com origem essencialmente na pintura, arte que começou crítica, irônica, de beleza estranha ao mostrar a banalização da vida e da morte, do prazer e da dor, com uma visão que colocava em primeiro plano as obsessões, os fetiches, as exceções, percorrendo o simbólico, e com um humor bem preciso ao tratar a tudo isto. Temática que os críticos colocam como procurando representar aspectos eróticos, religiosos, kitsch.
Dessa forma, a nova exposição marca uma ruptura na obra de Hildebrando, mas só até certo ponto. Sim, a geometria é uma novidade, já que ele nunca foi adepto do concretismo ou do construtivismo. O figurativismo também continua no mesmo lugar. E a luz continua um elemento importante nas pinturas do artista. Não à toa seus trabalhos não começam com croquis, mas com fotografias. “Me chamou a atenção sobretudo a situação rítmica que as lâminas verticais criavam, pois cada movimento singular de abrir ou fechar das janelas geravam uma nova composição cromática com infinitos matizes e valores tonais em função da luz projetada nos elementos. Apenas recorto um detalhe da arquitetura, a composição geométrica”, diz Hildebrando.
Hildebrando de Castro nasceu em Olinda em 1957 e passou sua infância e se desenvolveu profissionalmente no Rio de Janeiro. Autodidata, realizou sua primeira exposição individual no Museu Nacional de Belas Artes, ainda nos anos 1980. Viveu onze anos entre Paris e Nova York e desde 2004 vive em São Paulo. Seu trabalho sempre operou no terreno da representação figurativa, valendo-se da estratégia de empregar o enquadramento e a luz da fotografia como referência para a construção da pintura. Os primeiros trabalhos com pastel seco foram ponto de partida para as experimentações pictóricas que o levaram ao domínio do óleo e da acrílica. Em sua nova série, a realidade da “objetiva” traz substrato para unir geometria e representação, e estabelecer vínculos com o construtivismo e suas vertentes. Em 2013 duas obras do artista foram incorporadas ao acervo do MAC USP.
Nada mais aflitivo para um artista, que uma folha de papel, ou uma tela, em branco: porque daí advém sua condição solitária encoberta pelas sombras de uma multidão.
O exercício da arte é uma aventura pela qual o artista vislumbra suas ações num campo cheio de escaramuças, onde as inúmeras ideações incidem sobre seus atos. O artista é alguém que se oferta à fragilidade pela sua necessidade de absorção, pela sua premência em emitir um silêncio significante, a partir de como administra os ruídos das imagens; agrega para si, essa instância paradoxal: sacerdote e sacrifício. Mas é no vértice destas contradições onde se abre o gozo, a potência deflagrada como soma de suas administrações que lhe insta legitimidade perante as sombras que lhe oprimiam, agora nominada pela imagem de seus rostos que configuram o corpo reconhecível da sociedade que lhe aceita.
Uma vez instituído, o artista opera como um malabarista, sempre no fio da navalha, burlando sua invalidez; porque o meio de arte é eminentemente excludente, porta um gene perverso que lhe é constitutivo: admite com resistência novas verdades que podem se tornar referências estáveis, mas o fantasma da suspensão estará sempre rondando à medida de seu humor cortesão.
Pela minha condição de artista, me faço presente aqui, por uma função meramente mediadora, ou ao menos para emitir um ponto de vista que se abstém da formalização crítica, ou atividade analítica, tendo como objeto a obra de outro artista, já diversamente explorada por pensadores experientes sobre as ideias que estão contidas na espacialidade complexa da obra de Hildebrando de Castro.
A intenção aqui é tentar extrair um ponto de vista que possa vislumbrar algum filtro diferente, pela paridade experiencial nessa vivência que o ato de criar implica, e, sobretudo, por uma identificação mais ou menos aproximada na forma como sempre administrou os riscos pelos quais deliberadamente escolheu, e o tornou um artista consagrado, mesmo trilhando caminhos que suscitaram provocações administradas de forma surpreendente, decidida e corajosa.
Hildebrando de Castro é um artista que em toda sua trajetória deflagra desafios no contrapé das expectativas. Sua obra porta de imediato uma condição pela qual levanta certa tensão, no modo como enreda suas qualidades de irrefutável preciosismo em sua fatura.
Artista eminentemente figurativo, grifado por qualidades técnicas obsessivas, abrindo pela mimese toda sua instrumentação argumentativa, para além da inevitável evocação hiper-realista, porque distante do seu acriticismo. Desenhista de observação pelos cânones tradicionais, usando modelos para a construção de suas narrativas, para em seguida assumir a fotografia como um aporte de agilização processual, além do sintoma que tais usos refletem simbolicamente como ato incurso em seu tempo.
O uso da imagem como recurso para a representação de sua imagética lhe retira das ideias naturalistas do passado, mas se reporta a esse passado instaurando ironicamente novas extensões que se sobrepõem aos valores estéticos instituídos historicamente. O universo onde se apoia as narrativas de Hildebrando de Castro são providos pelo território da arte, do pensamento do homem sobre o homem, suas idiossincrasias e as coisas que cria e se cerca.
Sua arte, portanto, transpõe a ideia da janela que representa, para o espaço do simulacro. Lida com um trânsito entre signos reconhecíveis, situações, comportamentos, erotismo e religiosidade, conceitos instituídos – a seus aditivos provocantes, irônicos, onde está a serviço de deslocamentos que subvertem o usual, que estendem a natureza de suas construções subversivas no encontro de novas subjetividades em busca de elucidações.
A produção de imagens no mundo contemporâneo é excessiva. O olhar é forçado a uma alienação. Há um limite para a decodificação de suas (in) discriminações. Considerando apenas as imagens da arte pela sua história, testemunhamos o que foi filtrado como imagens exemplares: aquelas que trazem em si valores imanentes, em suas metodologias de feitura, que os liga a seu tempo, trazendo para a superfície o esforço que lhes tornaram importantes, como legado do visível, para interesse do olhar saturado, que se conforta ou reage ao que há de reflexo do mundo, do homem, a partir do que rege as éticas, as estéticas, que são enquadramentos políticos da visualidade.
As narrativas de Hildebrando de Castro abrem de imediato, questionamentos dessa politização das imagens. No plano da arte figurativa – usando aqui uma expressão genérica – é onde parece residir o desafio maior. O artista, por possuir esse aparato técnico irretocável, essa qualidade “imitativa”, resvala na necessidade premente em negociar o que pode portar uma condição narcisista de desenhar e pintar com preciosismo. Tornar a esterilidade narcísica – ou meramente diluidora do preciosismo – numa qualidade funcional no léxico do seu tempo, e em sua pertinência de extensão, como linguagem que ativa o que revela de novo, pelas surpresas a que somos hipnoticamente atraídos em seu trabalho.
Assim, o que converte suas imagens em afirmações visuais tão contundentes é essa mistura de precisão técnica irrepreensível às escolhas de variados repertórios que lhe servem como diferencial que chega a ser insolente. Escolhas que em sua soma perfaz sua trajetória que recorre a variadas estratégias, desde a montagem de um cenário que busca a ambiência precisa para o que quer expressar, ao uso e afinidade com modelos vivos recorrentes, que atendem às solicitações de sua imaginação para seus comentários, e arrematam uma espécie de choque térmico quando manipula diferentes aportes contidos na cultura, pelo que apreende de suas iconografias, objetos, situações insólitas, valores ecológicos encontrados entre o sublime e o deboche; na destruição da natureza, ou nas naturezas das destruições, pelos relativismos promovidos na interface da cultura e suas dinâmicas transformativas
Como artista autodidata, admite que provavelmente a origem de seus encaminhamentos independentes dos antolhos acadêmicos lhe tenham conferido suas liberdades de escolhas, pautadas inicialmente em sua memória pessoal de adolescente, já interessado no binômio sagrado\profano, ou, para ser mais preciso, religião e erotismo, onde articulou muitas de suas ideações iconográficas.
Imagens potentes, em geral, sem comentários circundantes que possam diluir sua imanência. A Hidelbrando, importa grifar uma ideia central circundada, via de regra, por fundos brancos ou negros, a dramatizar seu pendor pela estranheza, sexismos, dramaticidade, ironia beirando o humor negro, tangência ao escatológico, perversão, retratos, ludicidade de labor e humor.
Mas em sua trajetória de aproximadamente 25 anos, há a lida solitária, a cozinha oculta em que se dão todos os processamentos de um artista em que, do ponto de vista de sua obra, não há espaços para a sociabilidade: conquista pela retina ou corações expostos, ou melhor, pela cognição entre ambos. Neste sentido, falar de modo – ao menos esquemático – de sua genealogia, ou evolução, a sublinhar seus procedimentos técnicos em função do que contribuiu em suas transformações ao longo destes anos de trabalho incessante, onde reside por lei de causa e efeito a sucessão imbricada de que um resultado sucede a outros.
Assim, o que caracteriza singularmente este artista, é seu modo ímpar de fazer suceder interesses sempre cuidadosamente escolhidos a serviço de uma precisão gritante, mesmo referindo às subjetividades que ele nos traz à tona. De modo resumido, ou apenas nominando os encadeamentos temáticos de Hildebrando, a partir da forma poética que Denise Mattar, curadora de ILUSÕES DO REAL – mostra que apresentou sem intuito retrospectivo, mas que fornece toda a linhagem pela qual é possível compreender a trajetória do artista: Historias Insólitas, Entes Humanos, Inquieto Coração, Corpos Fragmentados, Infância Perversa* e Arquitetura da Luz, que é objeto da mostra aqui presente.
Estas imagens que ora vemos na Paulo Darzé Galeria de Arte dizem respeito às atualizações deste artista emblemático, que possui trajetória rica e transformadora pelo que é grifado em sua importância no panorama da arte brasileira. Aqui presenciamos a beleza inteligente de imagens que não guardam nenhuma inocência. São articuladas cuidadosamente no que nos oferece de sua beleza em sua camada mais aparente, além dos muitos substratos que suas abordagens referendam a serviço de um olhar preciso em suas estratégias cirúrgicas.
O que nesta mostra testemunhamos é mais um de seus surpreendentes posicionamentos como artista que escolhe para suas afirmações visuais verdadeiros desafios de alguém acostumado a reinventar, ou reintroduzir, no campo das imagens, suas possibilidades infinitas. Neste recorte de sua produtividade Hildebrando de Castro abre mais uma vez seu surpreendente repertório, a mapear entre frestas, o que a história torna passado, e ele torna presente. Com estes brise-soleils, se debruça nos estaleiros onde se originaram as construções reflexivas, a arte, e, também, a arquitetura brasileiras em seu limiar hegemônico, onde evoca a acepção moderna instaurada por uma metabolização local.
Estas imagens dos brise-soleils introduz certa contração em relação ao que conhecemos de Hildebrando. Recolhido de seu caráter mais dramático, mas conservando seu princípio de resoluções pictóricos formais impecáveis, mantendo sua ironia de forma mais velada, pela própria natureza do tema que aborda.
Nesta mostra Hildebrando trata da convergência de duas escrituras que permeiam pela sua pintura as disposições de um recorte arquitetônico que enceta as janelas com seu aporte simbólico na história da visualidade, o que remete ao problema autorreferente da arte.
A partir da aparência, e da própria metodologia da arte Concreta, seus campos de cor e forma executados em seu estado geométrico e cromaticamente asséptico, respectivamente, o artista entroniza de imediato uma questão vocabular do ideário concretista.
A reversibilidade, expressão contingencial do impasse concretista – que assinalava o problema de figura/fundo – é escolha deliberada de Hildebrando que não deixa de revolver seus genes constitutivos de temas anteriores, onde o enquadramento de perversão se reveste aqui, de uma sofisticação enredada numa perspectiva puramente retiniana a brincar com sensos de contenções como aporte de seus objetos temas, em estado de suspensão.
Mas nestes brise-soleils há também a posição do artista que aparece mais uma vez na regência de sua politização, no que tange às imagens que, à guisa de suas escolhas, perscruta crítica que sublinha as utopias modernas, nestas abordagens que apontam direções da arte e da arquitetura, nos oferece também um sentido de territorialização desta incursão como problemas localizados, isto é, a incursão de um capítulo da história recente da arte e da cultura brasileira imersa nas extensões do modernismo, onde se origina o começo da hegemonia da arte brasileira.
Não haveria nestas imagens dos brise-soleils, um tipo de urdidura que guarda os mesmos sentidos de perversão que orientaram muitos dos trabalhos de Hildebrando em suas diversas fases anteriores? Não é essa diretiva que ele nos obriga a tomar com a retina em riste a sondar a imaterialidade de algo que evoca o concreto, em sua instância temática, a da arquitetura em seus detalhes funcionais, que apontam para um dispositivo que em certa medida é um impedimento parcial da função transparente que deve possuir as janelas, e que nos provoca a olhar ao que ele mesmo assinala nada haver por sua inexistência suspensa, congelada pelos seus simulacros num detalhe funcional arquitetônico cuja função é reter a luz de forma modular? Não é também, a condição alusiva ao Concretismo, a negação do próprio tema, quando articula seus campos cromáticos a serviço de algo que parece contradito ao que remete?
Assim, me parece que o artista ao construir um jogo de impactante sofisticação e beleza, que parece envolver a ele próprio, o espectador e o que problematiza com o objeto pictórico, as funcionalidades dos objetos enquadrados em seus historicismos, e a maneira que os envolve com suas articulações conceituais, cobertas por uma inteligente abordagem onde nos endereça a atenção para a afirmação de Michel Foucault: A relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita*. A este respeito não me furto em estender nestes jogos visuais de Hildebrando de Castro trazendo de imediato, mais uma vez, Foucault, em sua análise de ‘Las Niñas’ de Velásquez, aqui simplificando a paridade suspensiva do que Hildebrando de Castro ativa como princípio de reversibilidades em suas construções visuais eivadas a um inteligente conceitualismo que me parece conduzir suas operacionalidades através da pintura.
Vauluizo Bezerra Julho 2014
Hildebrando de Castro, ilusões do real
Hildebrando de Castro tem uma trajetória singular, solitária e inteiramente pessoal. Autodidata, sempre teve a ousadia de pintar o que lhe interessa, de tratar obsessivamente um tema e passar a outro assunto quando o considera esgotado. O artista brinca com o desafio de criar a ilusão da realidade, e seu trabalho impressiona pela perfeição da execução – em qualquer uma das técnicas que utiliza. Sua obra é essencialmente narrativa, mas suas histórias não espelham a realidade, elas evocam um mundo paralelo – que o artista enxerga colado ao real. E Hildebrando vê coisas incríveis: a crueldade presente num espeto de corações de galinha, a perversidade inerente ao mundo infantil, a estranheza de seres humanos fantásticos, a agudeza por trás de um olhar flagrado, a impregnação da personalidade num retrato sem foco, a beleza aterrorizante da natureza nas suas manifestações de força. na sua pesquisa mais recente Hildebrando detém a luz que brinca sobre a arquitetura. Fixa sombras, revela detalhes e acentua contrastes. Daí resultam imagens quase concretistas, mas seu trabalho não se esgota na forma, pois, transcendendo a geometria, guarda de forma velada a presença humana que as criou. Sem se deixar guiar por regras ou modismos o artista se impõe como um dos mais originais e criativos do cenário artístico nacional.
Denise Mattar
Como surgiu o desejo de ser artista e, com ele, sendo autodidata, o direcionamento do estudo, a disciplina, o empenho para chegar ao objetivo deste fazer? Poderia lembrar até 85/86, quando já estava sendo premiado em salões. Fale um pouco sobre este começo, a sua sensibilidade e dedicação para chegar ao seu objetivo?
Eu tenho um primo cenógrafo que me inspirou bastante, embora ele não saiba. Toda vez que íamos visitá-lo era uma alegria para mim, pois ele desenhava superbem e fazia sempre o meu retrato. Eu achava aquilo simplesmente genial.
Passei boa parte da infância e da adolescência procurando referências e tentava representá-las. Aos 11 anos ganhei de um irmão, Elias, meu primeiro kit de pintura: tinta a óleo, pincéis e telas. Pintei algumas telas inspiradas no folclore e decidi que eu queria ser um pintor.
Aos 16 anos deixei a escola e resolvi procurar trabalho. Vim para São Paulo, onde consegui um estágio numa agência de publicidade. Imaginei que ali encontraria alguma coisa relacionada com a arte. Foi então que reencontrei Matty Vitart, uma amiga desenhista e pintora fantástica, fiquei muito impressionado com seu trabalho, o qual por muito tempo influenciou o meu. Após o estágio, regressei ao Rio e comecei a trabalhar na Bloch como arte finalista e resisti muito para não me transformar em um ilustrador, pois achava que poderia atrapalhar o desenvolvimento do meu próprio trabalho. No começo dos anos 80, trabalhei como freelancer e, portanto, tinha mais tempo para me dedicar ao desenho. Foi quando conheci o diretor de arte Tadeu Valério, da EMI-Odeon, nos tornamos grandes amigos e, por muito tempo, parceiros de trabalho. Posso até dizer que ele foi meu primeiro mecenas.
Após alguns anos trabalhando como programador visual para capas de discos, eu passei dois anos em Paris, viajando pela Europa. Até então, eu só trabalhava com lápis de cor. Sentia a necessidade de expandir mais o meu trabalho e comecei a experimentar o lápis de cor com o pastel seco, e o resultado foi incrível.
Na volta ao Brasil, por forte influência de um tipo de linguagem desenvolvida na época, meu trabalho sofreu outra virada. Mais solto, me dei o direito de pintar, utilizando tinta acrílica, sem preocupações com o rigor técnico. Eu ainda não tinha o completo domínio da pintura.
Participei de alguns salões, ganhei alguns prêmios e fui convidado a participar da Trienal do Desenho em Nuremberg. Nessa mesma ocasião, fiz a minha primeira individual fora do país, em Munique, na Galeria Irene Mader.
De volta ao Rio, comecei a procurar por uma galeria que me representasse. Foi quando conheci Franco Terranova, a quem chamo de “meu pai na arte”. Trabalhamos juntos até o fechamento da Petite Galerie.
Finalzinho dos 80, fui para Nova York e mais uma vez meu trabalho sofreu uma virada: deixei o desenho mais livre, passei para o desenho mais realista em pastel e comecei então a fotografar. Compunha minhas próprias cenas com personagens reais, geralmente amigos meus, como: Numa Ciro (parceira querida em várias fases do meu trabalho), Teuda Bara, Michele Matalon, Claudia Odorissio, Edith Uhl e netos, Reston, Bete Coelho, Lola, Renée Gumiel e outros que topassem posar para o trabalho.
No comecinho dos anos 90, resolvi procurar galeria em São Paulo, quando conheci o Marcantonio Vilaça. Trabalhamos juntos até a sua morte em 2000.
Em 96 voltei pra Nova York, onde morei até 2004.
No final dos 90, meu desenho me obrigou a recorrer à pintura, por conta das veladuras e das limitações do desenho em papel. Passei então três anos dedicando integralmente o meu tempo para aprender a dominar a técnica da pintura a óleo. Comecei com pinturas em preto e branco desfocadas, e somente em 2006 senti a necessidade da cor na pintura e confesso que foi um novo desafio.
Em 2008, a convite de um grande amigo, Sérgio Carvalho, fui a Brasília pela primeira vez e fiquei muito impressionado com a relação espaço e luz na arquitetura. Lembro que parei em frente ao prédio do anexo da Câmara dos Deputados e fiquei por horas a fotografá-lo. Sua frente inteira de janelas com brise-soleil me impressionou. O sol das quatro horas da tarde ao se refletir nos brises multiplicava suas formas e tonalidades. Fiquei a imaginar que seria como uma sinfonia infinita de composições com os mais variados tons a cada abrir e fechar de janelas todos os dias. Esta foi a minha primeira aproximação da geometria. Levei dois anos para assumi-la. Cheguei a pensar em fotografia, mas não estaria trazendo nada de novo ao meu trabalho com isso. Na pintura, parecia-me impossível trabalhar com tantas retas. Depois de conversas com amigos, Valdirlei Nunes, Rubens Mano e Carlito Contini, resolvi arriscar e tentar o desafio. Como consequência disso, a partir de 2010, meu trabalho sofreu mais uma virada. Embora permanecendo no figurativo, o desafio de então era compor uma geometria abstrata, isto é, trabalhar com a geometria sem utilizá-la para fins de representação.
Este começo artístico tem seu início no desenho, grafite e lápis de cor, no desenho gráfico linear. Depois veio o pastel. E nele consegue uma excelência de elaboração. Mas mesmo chegando a um trabalho tão bem efetivado, a partir de 2000 passou a pintar com óleo e um novo aprendizado por conta própria. O que o levou a zerar a trajetória de uma técnica e se aventurar em outra? Quais os benefícios que o óleo trouxe para sua pintura?
Como falei acima, o próprio desenho me levou à pintura. Quando passei a trabalhar com preto e branco (tons de cinza), o pastel começou a se mostrar limitado. As veladuras nem sempre funcionavam como aquelas feitas em cores. Foi preciso bastante dedicação para chegar novamente a um ponto de satisfação que eu havia conseguido no pastel. Precisei de três anos para chegar ao domínio da pintura. Desta vez não se tratava de uma pintura sem compromisso técnico como a que desenvolvia nos anos 80 e, além disso, o óleo se tornou realmente fascinante em suas possibilidades.
Seus trabalhos possuem como base a fotografia. Não uma fotografia tirada a esmo, mas preparada em seu cenário para tal. O que pode falar sobre este assunto? Quando começou a fotografar? Isto surgiu já com base para uma marca pessoal da criação artística, esta fotografia que é posteriormente manipulada e vira pintura, uma representação da representação ao executar desta maneira? Hoje, utiliza o vídeo, o cinema ou somente fotos pessoais para a sua criação?
Sim, meu trabalho tem como base a referência fotográfica. Primeiro, pela praticidade de ter sua referência sempre pronta. O fato de precisar de um modelo posando por horas e dias não facilita nenhum trabalho, mas na fotografia isso se torna possível, além de proporcionar o enquadramento desejado e ter a luz controlada. Quando trabalhava com modelos e situações, fazia fotos em preto e branco para pintar em cores. Gosto mais da dramaticidade da luz na foto em preto e branco. Na maioria das vezes, trabalho com minhas próprias imagens. Raramente utilizo imagens de apropriação, mas depende do trabalho. Por exemplo: realizei uma série de pinturas sobre catástrofes e paisagens onde utilizei imagens da internet e imagens de filmes. Hoje todas as imagens de arquitetura são feitas por mim, mas não me considero um fotógrafo. A fotografia é sempre utilizada como estratégia.
Na sua trajetória, temos como tema o corpo humano, ou partes dele em sua fragmentação, com especial relevo para o coração, mais seres humanos e bonecos, para falar de uma infância ou de uma vida perversa, com figuras insólitas, até chegar às últimas mostras e a ilusão do real. Daria para determinar como fases do trabalho ou elas se intercambiam por suas narrativas, elaborações e o simbólico que expressam? Como é que chegou aos seus temas?
Meu trabalho sempre foi figurativo e, como autodidata, me senti na obrigação de percorrer todos os caminhos. No princípio, eu queria dominar a figura humana e falar através dela. Assim foi até os anos 90, quando a figura então se tornou fragmentada. Em 95 vêm os corações em exposição no CCBB – Rio de Janeiro. Aos corações eu começo a acrescentar partes do corpo, sempre compondo uma narrativa. As partes fragmentadas eram de bonecas que passaram a substituir os modelos para fazer uma paródia da vida real.
De volta aos retratos, dei início à fase em preto e branco. As paisagens sempre me fascinaram, principalmente as que ficavam de fundo nas pinturas clássicas. Pintei algumas inspiradas nas vitrines do Museu de História Natural de Nova York, como também uma série de cachoeiras.
De volta ao Brasil, em 2004, estive no Nordeste por um tempinho e comecei uma nova série, através da qual voltava aos fragmentos e fazia uma paródia entre bordado e cicatriz, dobraduras e marcas do tempo. Tinha muito a ver com essa volta ao nosso país.
Após alguns anos dedicados muito mais à pintura, resolvi retornar um pouco para o pastel e regressei exatamente ao ponto onde eu tinha parado: nos bonecos. Logo após vem a série das catástrofes em pintura, e, já entrando na paisagem urbana, a qual dá passagem para o trabalho que estou desenvolvendo ultimamente. A ligação entre uma série e outra se deve ao desejo de mudar e de poder me superar.
É dito pela crítica que sua temática procurar representar aspectos eróticos, religiosos, kitsch, e é um trabalho de representação figurativa. Como é que estas observações são recebidas por você? São realmente pertinentes ao seu trabalho?
Sim, meu trabalho sempre foi alusivo, irônico. Hoje, a luz e a sombra são as protagonistas, embora não se possa ainda definir o lugar de uma narrativa através destas janelas abertas ou fechadas. Mas asseguro que neste trabalho atual, embora figurativo, procuro mais a abstração do que a representação.
Há uma ruptura desta trajetória com as últimas mostras, Ilusões do Real? Ou será que o jogo de formas e cores por sua incidência da luz e sombra, a composição e combinações, e as fotografias não estão presentes desde o início? E nesta última fase, poderia falar da chegada dos objetos, a pintura passando para o tridimensional, mesmo mantendo-se sobre a superfície de uma parede?
A luz sempre foi a preocupação central no meu trabalho. Eu gosto muito de brincar com a ilusão da tridimensionalidade, mas é preciso que ela se encaixe perfeitamente à proposta. Foi o que aconteceu com essa série sobre a arquitetura. Como a própria pintura parece tridimensional, não foi difícil chegar aos objetos (relevos). O miniaturista maravilhoso Humberto Jara, que trabalha muito bem com madeira, ajuda-me a confeccionar os objetos. Depois executo a pintura e escolho as cores, as luzes e as sombras, compondo a imagem.
Sendo uma obra de representação, seja figurativa ou geométrica, pois não procura a realidade em si, mas esta como origem para pintura, como vê o estabelecimento vinculando o real e sua arte, ainda mais por constar nela, por seu desenho, seu traço, uma execução extraordinária do que vemos como realidade? É proposital este real da pintura confundindo o espectador e a sua visão que ele tem da realidade que ali está sendo representada?
Mesmo sendo uma pintura realista, alusiva, referente, eu procuro sempre deixar uma margem para a imaginação do observador.
Você começou gráfico (há passagem sua como designer, programador visual), crítico, irônico, de beleza estranha ao mostrar a banalização da vida e da morte, do prazer e da dor, com uma visão que colocava em primeiro plano as obsessões, os fetiches, as exceções, percorrendo o simbólico, e, para mim, com um humor bem preciso (humor negro?) ao tratar tudo isto. Sente ainda a sua obra dentro deste percurso?
Então, como falei anteriormente, na composição geométrica a luz e a sombra são as protagonistas em lugar da narrativa irônica.
Como é criar uma pintura figurativa, com as suas características pessoais, tendo como base a fotografia, de registro objetivo, pintura narrativa, num período onde as artes plásticas caminham por instalações, vídeos, performances? Seguindo o assunto, como vê a arte hoje, no Brasil e no mundo?
Cada um deve seguir o seu caminho independentemente de tendências. É nisso que aposto. Essa história do novo já ficou muito velha. O que eu sei é que não é fácil ser artista em época nenhuma. Nós, artistas, temos que aprender a conviver com a eterna angústia da ideia e da identidade. A arte é, e sempre será, fundamental.
Na sua trajetória, há um período de Estados Unidos e França. Você nasceu em Olinda, Pernambuco, e mora em São Paulo. O que estes lugares em sua realidade trazem para a pintura que você faz? Inquietude? Desafio? Indagações? E o que cada um representa para sua experiência de vida, nascido em 1957, e de artista, com mais de 25 anos de caminhada?
Eu tenho um pouco mais do dobro de 25 (risos). Acho que a tensão de ser um artista jovem ou mais velho será sempre a mesma.
Nasci em Olinda, Pernambuco, e fui levado (ainda bebê, pelos meus pais) para o Rio de Janeiro, onde passei a maior parte da minha vida. Hoje moro em São Paulo e me sinto em casa. Os lugares onde vivi e aqueles por onde passei foram importantes na minha formação e se refletem de muitas maneiras no meu trabalho.