Esta é a primeira vez que Gonçalo Ivo realiza uma individual na Bahia. A mostra, com abertura no dia 4 de outubro, às 19 horas, e temporada até 2 de novembro, apresenta pinturas em aquarela e óleo sobre tela, em
grande e em pequenos formatos, e objetos em madeira. Acompanha a mostra um livro sobre a obra do artista com 116 páginas.
Abstracionismos. Geometrismos. Uso as palavras no plural, pois verifico uma pintura, desde seus cadernos de anotações com desenhos em grafite e lápis de cor, evidenciando o processo criativo, até o que depois poderemos ver como trabalhos de dimensões variadas em aquarela ou em óleo sobre tela, ainda que por vezes mais geometria, ou outros momentos numa ênfase de ligação com o real, ou mais abstratos, tanto faz. Pouco importa a catalogação de abstracionista ou geométrico, ou os dois, pois seu ato de pintar é linguagem, sendo assim, poesia, e é isto que deve ser uma pintura. Um ato poético. Além do que, diante de sua obra, obra inquieta, sempre aberta às questões estéticas que o desafiam na sua relação diária com o ateliê, mesmo que a geometria sirva como base para a estrutura da composição, nada impede de no seu desempenho se deixar interferir por experiências que, de certa forma, retiram o caráter absoluto da forma ao introduzir um diálogo ou uma afirmação: seja qual for o fazer artístico, este deve ser sempre descoberta, uma aventura pessoal. Talvez só venhamos a perceber este estado de interação quando conseguimos nos desprender da sedução de encantamento que ele produz nas diferentes possibilidades do trabalho e do envolvimento que exerce.
Artista nascido no Rio de Janeiro em 1958, filho do poeta Ledo Ivo, com ateliê em Paris e Rio, e exposições em vários países da Europa, da América e estados brasileiros. Participou de bienais, e tem uma bibliografia com várias publicações no Brasil, Itália e França sobre sua obra, que integra, entre outras, coleções como a do Itaú Cultural, Instituto Moreira Salles, Museu de Arte Contemporânea de Niterói, de São Paulo, Museu Nacional de Belas Artes, Pinacoteca de São Paulo, Union de Banques Suisses.
Você é filho de um poeta, Ledo Ivo. Já que você teve uma convivência diária e familiar com a cultura, o que a literatura e as outras artes influenciaram, ou influenciam, na realização de sua obra?
Realmente convivi com artistas – poetas, pintores, romancistas, críticos de arte etc. – desde a minha infância. No meu caso pessoal, as marcas desta convivência perduram até hoje. Mas não acredito que seja uma obrigação este tipo de contato. Cada história é uma história e cada caso é um caso. Conheço vários outros artistas que não tiveram um histórico familiar como o meu. Na verdade o benefício dessas amizades que eu tive com grandes poetas como João Cabral, ou o convívio no ateliê de Iberê Camargo, José Paulo Moreira da Fonseca, Abelardo Zaluar e muitos outros geraram em mim uma grande curiosidade intelectual.
E a escolha da pintura como o meio de expressão de sua arte? O que o levou a isto? Há um momento na sua biografia para esta decisão?
Não. Meu interesse por pintura vem da infância. Há uma fotografia de 1959 onde estou no colo da minha babá portuguesa e no fundo aparece uma pintura do Milton Dacosta, adquirida por meus pais. Desenhava bastante como toda criança, e gostava de copiar os vasos de flores de Odilon Redon reproduzidos num livro que repousava na mesa de centro da casa de meus pais. Ainda usava calças curtas quando meu pai adquiriu algumas têmperas do Volpi. Então resolvi ser pintor. Pedi a ele para me levar aos ateliês dos artistas seus amigos e foi aí que conheci uma dezena deles, aos quais mostrava meu trabalho: Augusto Rodrigues, Iberê Camargo, Ione Saldanha etc.
Sendo então pintor, que artistas o tocaram, o apaixonaram, com sua obra, ao vê-los? Ou, quais as ideias o impregnaram para desejar criar a arte que faz?
Sempre fui muito aberto com relação às questões estéticas. Prova disto é a constante mutação do meu trabalho ao longo das décadas. Fui aluno de dois pintores, Aluísio Carvão e Sérgio Campos Mello, que muito me marcaram quando eu tinha 17 anos e frequentava os cursos do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Do ponto de vista estético, sempre me interessei pela obra do Volpi, do Klee, da Maria Helena Vieira da Silva e muitos outros. Todos estes, em minha opinião, pertencem praticamente à mesma família espiritual. São artistas mais delicados, diria mesmo apolíneos.
A arte é algo pessoal, intransferível, fruto de uma sensibilidade ou um grande diálogo com os antecessores, com a história? Ou uma soma de todos eles?
Todos os dias quando acordo cedo e vou para o ateliê é sinal de que não tenho uma resposta precisa para sua pergunta. Mas acho que pode ser a soma de todos eles. Assim como temos artistas dentro da tradição da pintura como Lucien Freud, cujo trabalho nos transmite toda carga de história que há na arte e na pintura, temos também um artista genial como José Antônio da Silva, que trabalhava numa fazenda de café no interior de São Paulo. Ou o próprio Artur Bispo do Rosário, que em seu delírio inconsciente também produziu uma grande obra.
Você realiza uma obra geométrica, e, essencialmente, por sua composição e cor, poética. Isto é uma questão de sensibilidade, exercício, domínio da técnica, ou a reunião de todos eles mais o estudo permanente da tradição e o conhecimento da arte?
Penso que toda arte é um problema de cultura. Mas, como lhe falei na sua pergunta anterior, não excluo nada que esteja fora do contexto da própria arte, que é a forma distinta e intransferível de ver o mundo.
Além das ideias, poéticas e pictóricas, para existir sua obra temos a execução de sua pintura. Há um preciso domínio técnico. Como é realizado este aprimoramento? Como é solucionada a questão material no seu fazer no ateliê? O que o ateliê representa para você?
Saber é fruto de vivência, de experiência, de acumulação. É também fruto de muita prática, de erros e acertos. Meu ateliê é este espaço onde me encontro livre e imerso em mim mesmo.
Sua trajetória mostra uma marca de sua linguagem, mantendo-se fiel a si mesmo, não seguindo tendências, ou o espetáculo, ação bem em voga no mundo artístico. O que o leva a manter-se assim e, alongando-me, qual o sentido da arte para você, tanto o artista, como o espectador?
Não consigo ser diferente do que sou. É verdade que vivemos um momento de entropia e de falta de espiritualidade em arte. Talvez tenha sido sempre assim. Se meu trabalho transmite este estado silencioso e lacônico, não é intencional. Ao mesmo tempo, não trabalho em antagonismo a nada. Como lhe disse antes, minhas eleições foram muito precoces. Como apreciador de arte, por exemplo, sempre estive ao lado das mais variadas manifestações estéticas. Passo os dias ouvindo de música tribal, renascentista, clássica, aos compositores contemporâneos. Sempre quis ser pintor. Duas das características principais da arte da pintura são a contemplação e o tempo que devemos passar diante dela, que é um tempo completamente antagônico à sociedade à qual pertencemos. Hoje vivemos num mundo que se supõe prático, racional, cartesiano, assolado por muita informação e pouco conhecimento. E não estou me referindo só ao conhecimento que emana da ciência e da cultura. Há várias formas de conhecer coisas que não se relacionam de maneira óbvia com o nosso estado de consciência.
Com relação à palavra espetáculo, não tenho nada contra. Don Giovanni, A Flauta Mágica, O Cravo Bem Temperado são espetáculos de gênio. Assistir a um Fla-Flu no Maracanã é também um espetáculo glorioso. Porém é extremamente deprimente presenciar algumas manifestações que hoje são entendidas como arte e que visam exclusivamente ao escândalo buscando “épater les bourgeois”. Repare que uma das séries de pintura batizei com o nome Contemplações. É algo que tem a ver com o olhar e com a passagem do tempo.
O que o levou a morar em Paris? Sua pintura estava em descompasso com o Brasil ou foi apenas uma questão de circunstância ou oportunidade para que isto acontecesse, lembrando que sempre manteve ateliê no Rio de Janeiro? Como sente o Brasil neste momento da arte?
Sempre quis me aperfeiçoar no meu ofício. Infelizmente para mim, o Brasil não tinha muito a me oferecer. Estou falando da enorme tradição da pintura. Estar ao lado do Louvre, do Prado e da National Gallery de Londres e poder olhar cotidianamente Poussin, Velázquez, Ribera, Caravaggio etc. Uma lista praticamente infinita. Denise, minha mulher, e eu sempre sonhamos em passar um tempo na Europa. E isso já dura 14 anos. Lá criamos nossos filhos. Meus pais viveram por três anos em Paris logo após a guerra. Minhas informações sempre foram mais relacionadas com a Europa do que com a América do Norte. Isto é simplesmente uma opção. Acabei fazendo exposições, tendo representantes, marchands, mas nunca deixei de voltar ao Brasil.
Esta é a sua primeira exposição individual na Bahia. Nela temos pinturas em óleo sobre tela, aquarelas, desenhos em grafite e lápis de cor, e objetos. Como foram escolhidas as obras que estarão na exposição, que apresenta seu trabalho de forma reunida para o público baiano?
Quis mostrar o que estou fazendo agora, o que há de mais contemporâneo em meu trabalho. São todos inéditos pensados e produzidos especialmente para serem vistos como se fosse um livro de poesias. Cada obra é um poema ou se reporta a um estado poético. Há algumas séries que se desdobram e que se metamorfoseiam em outras. Tudo foi feito com o tempo e a antecedência necessários. Foi um processo de decantação lento. Tanto que as obras já estão há dois meses na galeria. Os pequenos desenhos a grafite fazem parte de cadernos de anotações, assim como as aquarelas engastadas em um livro. Procuro levar meu material de aquarela pelo mundo e, sempre que posso ou tenho vontade, trabalho. Ao mesmo tempo, esta parte da exposição ajudará a revelar um pouco meu processo criativo.
Os objetos, a mostra tem alguns deles. Fale um pouco sobre estas pinturas. Não são esculturas, são pinturas tridimensionais. Atrevo-me a dar esta opinião. Dito isto, como é feita a escolha das formas, a densidade da cor, esta pintura sobre madeira queimada?
Você tem razão. Não são esculturas, são pinturas. Têm grande valor afetivo para mim, assim como minha produção em aquarela. Aliás, gostaria de frisar que não hierarquizo nenhum tipo de médium, pintura, aquarela e gravura, que também faço. Alguns destes objetos são pedaços de madeira achados em caminhadas no meu sítio de Teresópolis, nas praias nordestinas ou na beira do rio Sena. Outros são projetados com suas formas específicas. É um trabalho que desenvolvo há muitos anos. Às vezes ficam anos no ateliê, numa prateleira até que resolvo interferir. A madeira queimada não deixa de ser uma metáfora da própria pintura, pois o carvão é também um pigmento. Procurei nesta primeira exposição individual na Bahia mostrar as possibilidades do meu trabalho e meu envolvimento com a pintura. É assim que sou no ateliê. Uma exposição pública nunca deixará de ser a extensão do que acontece em segredo no ateliê de um artista.