Abertura das exposições:
“O Éden pagão” terá a sua amostra no Museu de Arte da Bahia no dia 30 de julho às 18h.
Longe de ser uma exaltação à vulgaridade ou uma exibição gratuita da nudez, as composições fotográficas e os objetos da mostra “O Éden pagão” questionam a moralidade, o conservadorismo e os tabus vigentes no meio social em que estamos imersos.
Sobre o artista
Fábio Magalhães nasceu em Tanque Novo, Bahia, em 1982. Vive e trabalha em Salvador. Ao longo da carreira, realizou exposições individuais, a primeira em 2008, na Galeria de Arte da Aliança Francesa, em Salvador. Na sequência, “Jogos de significados” (2009), na Galeria do Conselho; “O grande corpo” (2011), Prêmio Matilde Mattos/FUNCEB, na Galeria do Conselho, ambas em Salvador; “e Retratos íntimos” (2013), na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro. Foi selecionado para o projeto Rumos Itaú Cultural 2011/2013. Entre as mostras coletivas estão: “Convite à viagem” – Rumos Artes Visuais, Itaú Cultural, em São Paulo; “O fio do abismo” – Rumos Artes Visuais, em Belém (PA); “Territórios”, Sala Funarte, em Recife (PE); “Espelho refletido”, Centro Cultural Helio Oiticica, no Rio de Janeiro (RJ); “Paraconsistente”, no ICBA, em Salvador (BA); 60º Salão de Abril, em Fortaleza (CE); 63º Salão Paranaense, em Curitiba (PR); XV Salão da Bahia, em Salvador (BA); e I Bienal do Triângulo, em Uberlândia (MG), entre outras. Entre os prêmios que recebeu, destacam-se: Prêmio Funarte Arte Contemporânea – Sala Nordeste; Prêmio Aquisição e Prêmio Júri Popular no I Salão Semear de Arte Contemporânea, em Aracaju (SE); Prêmio Fundação Cultural do Estado, em Vitória da Conquista (BA), e Menção Especial em Jequié (BA).
“A cada dia que entro no meu espaço de produção artística, reafirma-se em mim que a Arte nos dá a capacidade de imaginar e interagir criticamente com o mundo em que vivemos.” Fábio Magalhães
“O Éden pagão”, Alejandra Muñoz
A ideia de Éden remete a um contexto paradisíaco, em que o hedonismo emana do convívio pacífico, a tranquilidade emerge do controle dos imprevistos e a harmonia decorre de comportamentos domesticados. Concupiscência, lascívia, animalidade, cio, paixão e libertinagem não fazem parte da gramática tradicional de qualquer Éden religioso. Todavia, a adjetivação “pagão” engloba toda e qualquer dimensão não cristã. Então, é possível um Éden às avessas sem pensar necessariamente o inferno como oposição categórica? Qual seria o lugar para a violência das pulsões humanas sem conotação de pecado?
Esta exposição é uma instância de tensionamento entre uma ideia de paraíso terrenal idílico e a inesquivável realidade da nossa natureza humana, frequentemente cerceada pela moral religiosa. A arte de Fábio Magalhães nos oferece um local de perfeita felicidade, um Éden coerente com todo nosso arcabouço de virtudes e defeitos enquanto humanos. Sem juízo moral, sem lógica de punição, sem alternativa de redenção pelos nossos desejos reprimidos. As fisionomias das criaturas desse Éden passivamente atiçam os impulsos energéticos internos que direcionam nossos comportamentos preestabelecidos. E por que não? De modo metafórico, a exposição reivindica o direito às nossas pulsões, e não um justiçamento dos instintos. A retórica fetichista da maioria das peças nos impele a um retorno à animalidade supostamente perdida no processo dito civilizatório.
A modo de bestiário erótico, estes brinquedos remetem remotamente a diversos repertórios de seres híbridos das artes visuais, desde aquelas minúsculas alegorias nos móveis de “O casal Arnolfini” (1434), de Jan van Eyck, e as personagens do “Jardim das delícias” (1515), de Hieronymus Bosch, até as paisagens infernais de Lucas Cranach, o Velho, e algumas das visões oníricas dos “Caprichos” (1799), de Francisco de Goya. Entretanto, as criaturas aqui presentes, de texturas e materiais reconhecíveis, conjugam a simplicidade de uma aparência lúdica infantil com complexas alusões ao inconsciente freudiano. Há o deslocamento de uma realidade biológica possível, a construção do estranhamento de uma experiência perceptiva e, ao mesmo tempo, uma provocação estática e estética na interseccionalidade desses seres. Sem raça, sem gênero, sem classe social, sem credo, eles existem ante nossos olhos. Há, além disso, o paradoxo do olhar fotográfico que estabelece uma relação entre essas figuras cegas, serenas e inquietantes em suas latências, e nós, voyeurs involuntários.
O conjunto de pelúcias se inscreve nas diversas sagas do imaginário surrealista, desde o “Cortejo de Orfeu” (1911), de Guillaume Apollinaire, ilustrado por Raoul Dufy; passando pelos lânguidos personagens de Leonora Carrington; a série do “Minotauro” (1928-1937), de Picasso; as melancólicas figuras de Remedios Varo e as metamorfoses de “Uma semana de bondade” (1933), de Max Ernst; até o “Esquilo” (1969), de Meret Oppenheim. “O Éden pagão” lembra também uma plêiade de monstruosidades híbridas do cinema mais recente, desde o assustador ser tentacular de “Possession” (1981), de Andrzej Zulawski, à pequena mandrágora de “O Labirinto do Fauno” (2006), de Guillermo del Toro. Todavia, nos objetos instalativos do artista baiano, fragmentos famosos da literatura erótica explicitam e reforçam a intrincada genealogia deste Éden pagão.
A retórica dos opostos que atravessa as obras não instaura necessariamente uma equação entre contrários. Desde muito antes do espargimento da teoria queer, sabemos que falos e vulvas são órgãos que não definem gêneros comportamentais masculinos e femininos. Então, as identidades biológicas e o binarismo heteronormativo são empurrados aqui para o limbo das imprecisões. Os trípticos constituem bons exercícios de ambiguidade das potencialidades eróticas combinatórias confrontadas com as interdições do desejo reprimido. Em algumas peças, os valores morais contraditórios dos pequenos corpos peludos e suas possibilidades hedonistas beiram a injúria imagética.
O elenco de Fábio Magalhães dialoga com diversas referências brasileiras, como os seres híbridos de Marcelo Grassmann; os “Bichos” (1960), de Lygia Clark; o “Bestiário” (1986-1991), de Caetano de Almeida; a requintada mitologia nordestina de Gilvan Samico; os universos fantásticos de Luiz Hermano; e os prazeres solitários dos personagens da baiana Ana Verana, colega contemporânea do artista. Enquanto objetos desejados, no sentido lacaniano, os pequenos seres desafiam as prescrições comportamentais e provocam nossa natureza desviante. Qualquer discurso explicativo das práticas desejantes parece balançar ante a materialização e a concretude desses seres-objetos desejados. “O Éden pagão” oferece um confronto de submissão e opressão não entre indivíduos, mas entre objetos sensuais e fluxos libidinais.
Então, entregue-se a essa constelação imaginária. Aprecie ludicamente as obras, sem culpa cristã e sem medo de um diagnóstico de patologia psíquica. Não há divã no Éden.