Beatriz Franco é artista plástica e fotógrafa. Sobre sua obra já foi escrito que ao estabelecer uma relação entre o real e o imaginário – desejos e limites -, e que utilizando diferentes técnicas, incorporada por desenhos, objetos, palavras, novas mídias, suas fotografias apresentam um olhar inquisidor e contemplativo sobre elementos do cotidiano, as incontáveis dualidades do existir.
Quando do lançamento do livro – A Fotografia na Bahia – 1839-2006 – Rubens Fernandes escreveu: “Na produção desse período predomina, com força incomum, a fotografia documental colada no referente, em busca de flagrar o cotidiano, a fé e a religiosidade do povo baiano, as festas populares e a exuberância da paisagem natural. As raras exceções são os trabalhos de Mario Cravo Neto, as fusões de Edgar Oliva, as panorâmicas de David Glad, as pequenas narrativas de Beatriz Franco e o estranhamento das cores incomuns de Hirosuke Kitamura.”
Na sua exposição, em 2008, na galeria Mônica Filgueiras, o fotógrafo e artista plástico Carlos Fédon escreveu: “Fiquei muito impressionado com o que vi e senti. Ali estava, numa montagem etérea, um pequeno e ao mesmo tempo denso conjunto de fotografias, equilibrado pela obra em vídeo, desnudando um quadro de afetos e preocupações elegantemente dispostos (ênfase nos dipticos e na escala intimista), mas eivados da dureza de um tempo inesperado (proporcional à sua travessia pessoal, ser feminino e amoroso), no entanto sem abrir mão da poesia e força vital (tonalidades, desenho das formas, códigos visuais) declarados em paralelo nos títulos quase cifrados (omitidos nas paredes, mas recuperados na lista de obras). Fossem outras as circunstâncias uma pequena publicação (incluindo o vídeo: I cannot keep the night from coming) seria bem vinda para preservar e difundir seu precioso trabalho, por certo suave e cortante como indica o próprio título. Ao refletir sobre minha visita fui reler Fernando Pessoa, e ocorreu-me transcrever um pequeno trecho: “Com um olhar / Que, sem o poder ver, Sei [?] que é sem ar / De olhar a valer.”
Claudio Neri Psicanalista Italiano (Sobre a exposição CalaFrio de Beatriz Franco, 2008)
Teu pai está a cinco braças;
Dos seus ossos nascem corais;
Dos seus olhos, pérolas;
Nada nele desvanece;
Tudo nele se transforma drasticamente
Em algo esplêndido e estranho*
O tempo e o mar operam uma extraordinária transformação: ossos se tornam corais, olhos se transformam em pérolas. Beatriz Franco tenta alguma coisa diferente: ela aproxima, num instante, capilares que sangram e um fragmento de céu. A nossa condição é Standing in the spaces na vibração de sentimentos e pensamentos que podem ficar próximos, mas não integrados.
Os dois pequenos olhos – cinza pérola e vermelho sangue –, contradizendo a si mesmos, me falaram de maneira sabia e um pouco engraçada: “A vida de todos os dias teve seu último poeta em James Joyce. Tem um valor e uma beleza fora de moda e difícil de conhecer. Sentimos muito, mas você foi longe demais, venha mais perto”.**
Só me pareceu possível olhar para as quatro imagens de Ovos que não deitei de uma maneira: atravessando-as da primeira à quarta e, então, novamente, da quarta à primeira por um velocíssimo raio de luz de um sentimento. Em palavras, este sentimento vibrante e musical poderia ser expresso dizendo-se que a vida é sempre docíssima e sutil. Das imagens atravessadas começaram a surgir no ar em volta pensamentos e sensações: rejeição e medo; sedução e mistério; espanto pela crueldade de uma vida privada e íntima tão violentamente exposta; admiração. A beleza das cores rosa e cinza e pérola que, ao se fundirem, chegam ao branco, um ritmo lento de respeito, espera e esperança.
* Trecho de A Tempestade de Willian Shakespeare
** Trecho de Joyce’s Ulysses: a talking cure? de Declan Kiberd
1) O seu primeiro prêmio foi por um projeto em que desenvolvia a técnica de desenhar-pintar sobre o filme fotográfico, após ampliar o negativo desta imagem. Como foi realizar esta exposição onde temos as suas duas vertentes e técnicas, a de artista plástica e a de fotógrafa?
Para mim não existe divisão entre a artista e a fotógrafa. O que existe é a possibilidade criativa que lança mão de uma determinada técnica num determinado momento. Aquele foi um período em que eu desenhei muito e, ao mesmo tempo, fotografava. Então experimentei diversos pigmentos sobre a película até encontrar a técnica para expressar o que eu desejava. Usei uma matriz de dimensões mínimas, que era o filme 35 mm para revelar nuances do traço de maneira ampliada. Foi um movimento solitário e muito prazeroso. Fazer uma exposição significa sempre o momento de compartilhar isso com outros.
2) O que é a arte para você? Trabalho? Forma de expressão?
Para mim tudo é trabalho! Também se expressar é um trabalho. O problema é que, usualmente, quando se separam essas coisas, resta ao trabalho uma conexão imediata com a obrigação ou o desprazer. É, sem dúvida, um privilégio exercer uma forma de expressão criativa que se configura como trabalho e que chamamos de arte. Hoje penso que arte é uma forma de vida.
3) Seus temas projetam-se entre cenas duais, por exemplo, o real e o imaginário das imagens. Como é escolhido o tema que você passa a desenvolver? Há um projeto? Uma conceituação? Como constrói a sua temática? Há um tema principal na sua fotografia, ou apenas esta é feita para realização de séries?
Ao ler as perguntas tenho a sensação de responder com um único texto. Tal qual a maneira como vejo os desdobramentos do meu trabalho até aqui: um fio invisível parece conectar todas as coisas. Não me dedico a pensar sobre ele a priori. Permito que as imagens, as palavras, os objetos, os vídeos irrompam no percurso natural da minha vida. Só depois as conexões são feitas e isso passa a ter suma importância. As conexões parecem ser o grande privilégio do nosso cérebro e, para mim, grande fonte de satisfação. O que não quer dizer que não exista suor, há sim, sempre!
4) Qual o momento que você considera o seu início como fotógrafa, ou artista, profissional?
Acho difícil registrar um momento em que algo se determina. Comecei muito cedo a fotografar, ainda criança, com sete anos já tinha uma máquina, uma “xeretinha descartável” chamada “love”. Claro, por muitos anos eu nem pensava em profissão. Cursei Psicologia na universidade, curso que concluí, por compromisso, em 1999. Em muitos momentos foi difícil. A arte já fazia parte de mim. Diria que, se há um momento em que as coisas se definiram, foi em 1999.
5) A fotografia é uma questão visual da arte ou um domínio técnico?
As duas coisas. Porque não há como uma não dialogar com a outra no momento da execução. Ainda que o autor tenha sempre seu estilo e que use a técnica para expressar algo do seu estilo, a técnica também se impõe como linguagem.
6) Como é realizada a sua captação de imagens? Rua, estúdio. E o que esta busca reproduzir quando captada? E a incorporação de outros elementos conjuntamente? Que leitura você faz de suas fotos?
O dualismo é uma perspectiva da observação, desde o momento, ainda criança, no qual tive a consciência de que as coisas aconteciam simultaneamente: morte e vida. Hoje, para além do dualismo, penso na simultaneidade. Há um poema de T. S. Eliot chamado “Burnt Norton” que usei em um trabalho, e que gostaria de citar aqui um trecho: “… O tempo passado e o tempo futuro/ O que podia ter sido e o que foi/ Tendem para um só fim, que é sempre presente.” (“…Time past and time future/What might have been and what has been/ Point to one end, which is always present.”).
É complexo fazer uma leitura da própria produção, não acha? O que busco é criar algo que me acompanhe por uma fração de tempo.
7) Estamos diante da fotografia digital. Qual a sua relação com ela?
Absolutamente natural. Acho incrível o que os avanços tecnológicos têm trazido. Junto com ela há apenas mais trabalho para manter os arquivos e mais tempo dedicado a organizar. Também a sensação de que tudo pode desaparecer de uma hora para outra é maior!
8) Há distância entre o fotógrafo e a foto? Entre o artista e a sua expressão plástica?
Creio que, se há distância entre o artista e sua expressão plástica, o que aquela pessoa produz, então, para mim, não é arte.
9) Que influências você considera fundamentais para vir a ser a fotógrafa que você é?
Tudo que compõe o meu repertório inconsciente e os meus afetos me influenciam. Conscientemente. Sinto a palavra como a minha maior influência. Tenho verdadeiro amor pela palavra. Em impressos, em música, em cinema… Um amor estético, sobretudo. Acho surpreendente a força da palavra, tão desalinhada dos atos muitas vezes…
10) Como vê a cena nacional e internacional hoje para a fotografia, ou as artes plásticas como um todo?
Não separo a fotografia criativa das artes plásticas. Olho com ressalvas para uma certa “institucionalização” de muitos artistas; com isso me refiro às relações que estão se estabelecendo entre marchands, curadores, museus, colecionadores e artistas. Mas, sob essa perspectiva, creio que as coisas sempre foram mais ou menos como são agora, não?
O que vejo como uma mudança incrível é a chegada do mundo digital, a internet, e a TV via satélite. Hoje temos acesso a um volume inassimilável de ferramentas e informações, e, é claro, os trabalhos de arte também se incorporaram a esses veículos fantásticos, o que tem influenciado todo o processo do fazer artístico. O ser humano, no entanto, me parece o mesmo, mais aparelhado, é verdade.
(entrevista/março de 2010)