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Pablo Atchugarry

Opening
17 de July de 2015

Schedule
19h

Exhibition
18 de July a 22 de August

Um mestre. Esta é a palavra síntese da crítica internacional sobre as esculturas do uruguaio Pablo Atchugarry. Esta é a sua primeira exposição na Bahia e a primeira em galeria no Brasil, numa mostra reunindo dezoito trabalhos, em dimensões e materiais variados, tendo como curadores Gilberto Habib Oliveira e Maria Lucia Montes, e trazendo no livro-catálogo texto de apresentação do crítico e professor da FAUUSP Agnaldo Farias.

Pablo Atchugarry nasceu no Uruguai, Montevideo, em 1954. Vive e trabalha em Lecco, Itália, e Manantiales, Uruguai. Realizou exposições em Londres, Nova York, Miami, Montevideo, Buenos Aires, Paris, Panamá, New Orleans, San Francisco, Madrid, Colônia, Frankfurt, Maastricht, Amsterdam, Bruges, Brussel, Ghent, Zurique, Basel, Abu Dhabi, Milão, Veneza, Turim, Estocolmo, Seul, Hong Kong, entre outras.

O prédio de concreto partido em volumes prismáticos e desencontrados que Paulo Mendes da Rocha projetou para ser o Museu Brasileiro da Escultura, parcialmente enterrado nas sombras que ele produz ao avançar em níveis subterrâneos às ruas em cujo cruzamento a instituição está encravada, ilumina-se com a exposição de Pablo Atchugarry, mestre escultor que num ponto se diferencia dos nossos escultores: o interesse em demonstrar a fecundidade do mármore, a pertinência em explorá-lo persistentemente ainda hoje, num mundo cuja substância perde espaço para as imagens. Suas obras – que nessa exposição, sobretudo na área externa do museu, também inclui obras realizadas em metal e madeira -, tanto as maiores quanto as menores, projetam-se para o alto como chamas e troncos subitamente estancados, contrapondo-se a penumbra e à materialidade do concreto, e também ao pé direito baixo dos amplos ambientes produzidos pelas paredes ortogonais.
O concreto das paredes do Mube, como é corrente entre os mais dignos exemplares da arquitetura moderna brasileira, traz a marca das formas de madeira. Parafraseando o poeta João Cabral de Melo Neto em O ferrageiro de Carmona, o concreto liquefeito, como o ferro fundido do poema, “é sem luta / é só derramá-lo na forma. / Não há nele a queda de braço / e o cara a cara de uma forja.” Curiosa coincidência receber as esculturas de mestre Atchugarry, grande parte delas nascida do confronto das mãos com pedra e madeira, da doma do material, do enfrentamento entre as mãos armadas com martelos, serras e cinzéis. Escavar, escarificar, cortar, gravar, talhar, cinzelar, perfurar, desgastar são alguns dos verbos empregados na rotina do artista, elenco que se amplia com a presença de esculturas em metal, evocadoras de outras ações, instrumentos e procedimentos.

Concentrando-se sobre as obras realizadas em mármore, por motivos que serão esclarecidos a seguir, vale pensar no modo como o artista opera face a um material atravessado pelo peso da tradição, cuja pureza, tenha ele a brancura característica dos blocos que ele vai buscar nas minas de Carrara, preto, como é possível encontrar na Bélgica, ou mesmo o imprevisto tom rosado do mármore português. O ataque a todos eles dá-se pela abertura de fendas, frestas e fissuras, uma vontade de liberação das sombras, da escuridão que o material guarda em seu interior, dos quais se apreende alguns rumores sob a forma das nódoas suaves que atravessam as superfícies cuidadosamente polidas, a coda de um processo que começa violento mas que vai findando com suavidade, passando do desgaste empreendido pelo esmeril, a areação, o emprego de abrasivos sutis, aplicados com o apuro de carícias.

Os mestres da antiguidade trabalhavam sobre o mármore com a finalidade de garantir durabilidade as construções, objetos ou imagens, estas arrancadas do interior da matéria. Sua imensa variação de densidades foi, desde tempo remotos, compreendida como matéria de serventia múltipla, aplicada a construções sem maiores detalhes até aquelas a serem esquadrinhadas pelos olhos, ponta dos dedos e palma das mãos. E, especialmente para estes trabalhos mais bem acabados, interessava o comportamento sutil da epiderme do material, a miríade de desenhos irregulares confeccionados pela natureza pelas formidáveis movimentações tectônicas provocadora de esmagamentos e fusões, em condições de pressão e temperatura absolutamente singulares. A memória desses processos, comuns em rochas metamórficas como o mármore, expressa-se nos grafismos espraiados e diáfanos como as ondas que desaparecem na beira da praia; traços ariscos como raios ou leituras de encefalogramas; embaraçados como garatujas de crianças.

Impressiona a segurança e inventividade com que Pablo Atchugarry lida com esses aspectos, quais sejam, a espessura histórica da escultura, quaisquer que sejam elas, mas com destaque ao mármore e às suas qualidades internas, compondo um feixe de questões que ele amplia transpondo-o para o âmbito da madeira e do metal. Considerando o quanto nós, brasileiros, somos pouco afeitos ao legado deixado pelo mármore, uma nova exposição desse artista em nosso país, sete anos após sua primeira e significativa mostra, reveste-se de uma importância singular.

No Brasil, a entrada em cena do Concretismo e sua consabida aversão ao caráter manual do trabalho artístico, claramente expresso no manifestoRuptura, de 1952, seu prolongamento através do NeoConcretismo, em verdade um desdobramento algo traumático e, quase em seguida, nos primeiros da década de 1960, a incorporação do objeto em versões mais ou menos alinhadas ao dadaísmo, terminou abafando toda uma tradição escultórica de grande lastro conceitual. No que se refere a essa tradição, nosso contexto, por circunstâncias particulares que não cabe comentar aqui, favoreceu o florescimento de artistas ligados à abstração geométrica, como Amilcar de Castro e Franz Weismann, Lygia Clark dos Bichos, entre outros. Claro está que outros filiados a correntes expressivas, como Xico Stockinger, Nicolas Vlavianos, Felícia Leirner e Abelardo da Hora, mantiveram-se fortemente ativos embora sua contribuição não tenha sido tão incisiva quanto a dos seus colegas. O ponto em comum entre quase todos eles, a exceção corre por conta de da Hora, era o uso de ferro, madeira e outros materiais. Quanto ao mármore, o único a cultivá-lo com requintes de artesão foi Sergio Camargo, presença seminal em nosso meio e cuja poética enraizada na abstração geométrica de extração Op, foi o elo de ligação para aqueles, como José Resende e Tunga, que, posteriormente, estreitariam relações com a Arte Povera.

O trabalho com a pedra, mediado pela mão, foi deixado de lado, situação estranha para um país como o nosso, que teve o privilégio de produzir o escultor Aleijadinho, artista maior da América Colonial, nosso mais importante artista até meados do século XX.

Por tudo isso é que se pode dizer que já não era sem tempo uma nova exposição de Pablo Atchugarry, a importância de sua lição sobre a arte como um exercício capaz de demonstrar a inesgotabilidade de qualquer meio, qualquer que seja ele, mesmo a pedra, sobretudo a pedra, sobretudo o mármore, de eleição ancestral: fertilidade profunda e enigmática, a provar a fertilidade igualmente profunda e enigmática da mente e gesto humanos. Segundo o ângulo poético do mestre uruguaio, a pendulação entre figura e geometria não é algo que se coloca, algo cuja pertinência esteja em discussão. Em seu lugar, Pablo Atchugarry propõe a síntese entre ambos, os caminhos da mão bifurcados entre a obediência à mente e às idiossincrasias da matéria, as lições que ela generosamente oferece a quem lhe ousa enfrentar.

Pedra, madeira e metal, o artista prefere as esculturas verticais, escolha que revela o gosto por um caminho clássico dado que a opção por esse vetor tem o corpo humano como referência direta. A ideia de que somos seres verticais situados entre o chão e o céu tendo por carga nosso próprio peso, a força da gravidade que tudo atrai, a começar por nossos ossos, esclarece-se já no pilar arquitetônico, talvez nas cariátides, as figuras femininas que sustentam a cobertura do Erecteión, o pequeno templo próximo do Partenón. É certo que essas colunas são literais na referência a figura humana, o que quase nunca acontece em arquitetura dado que nela o comum é referir-se a si própria. Já em escultura, assim como na tradição do retrato pictórico, canonicamente compostos em campos retangulares verticais, a persistente recorrência de figuras humanas de pé não deixa espaço para dúvidas. Assim, mesmo quando Atchugarry propõe esculturas aparentemente abstratas, elas, por serem verticais, estabelecem uma relação de especularidade com que se coloca frente a elas. O corpo da obra contra o corpo do espectador.

Como parte de sua estratégia de construção de equivalências entre seres tão distintos, à nossa ousada verticalidade, à nossa insubordinação contra o apelo da terra para que voltemos a ela, atitude responsável pelos nossos tropismos vacilantes, deslocamentos contínuos, sintomas de nossa instabilidade física e espiritual, da nossa nostalgia constitutiva, como elogio a esse atrevimento, dizia, o artista extrai a pedra do chão, coloca-a de pé para romper sua massa compacta, propô-la como forma mais ou menos aberta, semelhantes a chamas bruxuleantes ou troncos retorcidos de árvores, duas manifestações vitais plasmadas em modo calmo e que ele transpõe para o metal e a madeira.

Em coerência com a gama de possibilidades que atravessa nossos espíritos tão contraditórios, o artista realiza esculturas majestosas, hieráticas, simétricas, peças totêmicas coesas, grávidas de certeza e decisão. Há também uma extensa família daquelas compostas por partes que se vão desprendendo, e aqui as esculturas metálicas se sobressaem, como pétalas que se desabrocham ao passo em que se elevam, chamas que se resolvem em línguas serpentinadas. Por fim, e para não se estender mais no levantamento de uma poética que se desenvolve em múltiplas direções, cumpre salientar as esculturas que se resolvem em soluções plácidas, corpos recostados, trespassados por outros vetores que não só o vertical.

Para a consecução de todas essas possibilidades, o artista parte do enfrentamento da presença enfática da pedra e da madeira sob a luz, abrindo-lhes linhas de sombra. Parece responder aos bosquejos, às cicatrizes desenhadas pelos movimentos tectônicos acima mencionados ou aos ecos do crescimento que a vida vegetal registra nos corpos e que roçam a superfície desses materiais como os rastros efêmeros deixados pelos peixes quando sobem em busca de alimentos ou atraídos pela claridade. O artista reage a dureza da pedra e da madeira, a dureza ao modo como a luz incide sobre eles, rasgando-lhes abismos sucessivos, estreitos e insondáveis, fazendo minar, especialmente na superfície do mármore branco a misteriosa escuridão que o habita. Em relação ao mármore, cumpre salientar que o uso do preto belga não anula o exercício, antes o agudiza, posto que a densa escuridão de sua pele acentua-se nas valas longilíneas que cortam fundo sua carne. O preto da pedra absorve a luz ao mesmo tempo em que ameaça transbordar sobre ela um preto ainda mais profundo, a fresta que atrai nosso olhar na busca vã de seu limite. O recurso a esses vincos no mármore português, com sua tonalidade rosada própria aos corpos juvenis, turva seu otimismo, prenuncia os acontecimentos que os espera.

O conhecimento íntimo dessas matérias permite a Pablo Atchugarry que ele as amoleça, obriga seus músculos a se distensionarem, repousem em poses lassas. Sob seus instrumentos os cortes transformam-se em dobras, planos inchados, próximos e semelhantes mas nunca iguais. Pedra e madeira são perfurados, interrompidos, organizados em torno dos vazios que lhes são abertos. O mármore e a madeira respiram e a geometria, semeada nos dois, com sua exatidão quebrada pela resistência de ambos aos ataques da mão, respira igualmente.

Agnaldo Farias
FAUUSP

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