Ìyàmì
Texto: Thaís Darzé e Ayrson Heráclito
Iyàmi, palavra da língua iorubá, que em sua tradução significa “Minha Mãe”, literalmente ìya/mãe e mi/minha. Consequentemente, Ìyá mi se torna Ìyàmì. Símbolo ancestral feminino, mãe ancestral, representação coletiva das divindades ancestrais femininas, entidade mítica, mãe primordial, matriz primeira de onde advém toda a criação material do mundo, ela é a criadora da existência e o ventre de todas as origens.
O atual trabalho de Nadia Taquary investiga tradições, métodos e práticas afro-brasileiras, a partir da história do povo negro no Brasil e deste legado ancestral debruça suas pesquisas sobre a joalheria crioula e os adornos corporais africanos. Assim como esses adereços, as obras da artista estão impregnadas de sentido e de insígnias, e cada uma de suas obras são narrativas completas, através das formas, símbolos, cores e materiais escolhidos.
Tendo como ponto de partida a ourivesaria colonial, usada por mulheres forras e libertas no Brasil, entre os séculos XVIII e XIX, Nadia resgata a memória desses adornos, que são emblemas vivos de continuidade, de rejeição à condição de mercadoria, e de resistência da cultura negra. Suas primeiras esculturas agigantavam os famosos “balangandãs”, símbolos gritantes de liberdade, de ascensão social e econômica, insígnias de estratégias para compra de alforrias, formam um conjunto de crenças e carregam histórias de protagonismo negro feminino.
Nessa mostra que tem como título Íyàmì, Nadia aprofunda sua pesquisa no poder ancestral feminino, com um mergulho denso nessa energia potente e geradora de toda forma vida. O vídeo “Ìyàmìs – Casa Branca[1]” tem papel fundamental e norteador conceitual dessa exposição, a partir do primeiro encontro da artista com esse documentário em 2017, o que nos faz ver que esse projeto vem sendo gestado há quatro anos.
Ao observar as obras recentes de Nadia Taquary, podemos notar o feminino extrapolado, em forma, gesto e conteúdo. Essa força está presente em várias configurações de diferentes dimensões de suas obras. Mas é importante pontuar que ela aparece com frequência significativa ao longo de toda sua trajetória. Diante desse caminho, essa exposição extrapola a importância dessa presença para a abordagem crítica sobre o corpo da obra da artista.
Nascida em Salvador, em 1967, Nadia cresceu e viveu a maior parte de sua infância em Valença, cidade do recôncavo baiano, local repleto de manifestações das religiões de seus ancestrais. Fruto de um casamento inter-racial, de pai afro-indígena e mãe branca, a artista não tem memórias maternas, ela perdeu sua mãe aos seis anos de idade e foi criada, formada e educada por seu pai. Foi através dele seu primeiro contato com joalheria crioula. Ele costumava presenteá-la com alguns exemplares desde a infância. Anos mais tarde Nadia retorna a Salvador, se graduou em Letras, e pós-graduou-se em Educação, Estética, Semiótica e Cultura pela UFBA.
A presença do feminino, ou a energia da ìyàmìs, já aparece desde o início de suas obras, e essa presença varia de um detalhe nas suas esculturas, até o elemento central. Elas podem ser complemento do tema principal, sugerindo um ofício ancestral feminino ou podem ser o tema principal, como, por exemplo, no “Mundo/Ifá[2]”, a grande cabaça da existência, onde, simbolicamente, estão contidos os elementos usados na criação e que devem ser mantidos no mais absoluto sigilo, tão relevante é o poder que confere.
A cabaça encontra-se no centro de um tabuleiro de Ifá, senhor de todos os destinos. A grande cabaça da existência, o Igbadu, ressurge nessa mostra na forma da grande instalação “Insondável mistério”, que aqui se transforma na grande cabaça útero da vida, “perdendo sangue, gerando filhos e alimentos, poder de genitália, segredo da vida e da morte[3]”.
A instalação “Insondável mistério” é composta por milhares de miçangas que saem do teto e tocam o chão, formando uma imensa cortina de contas na cor vermelha. O público deve entrar na cabaça para se reconectar com a energia criadora do cosmo, do universo, do mundo, e dos seres humanos. É um convite a compreender e a sentir esse grande útero que gerou toda forma de vida. A cortina de miçangas formada por milhões de contas representa os muitos indivíduos da coletividade, além de fazer referência aos ilequês ou fios de conta utilizados pelo povo de santo. A cor vermelha representa a sangria, a menstruação, o poder de gestação da mulher, que é o mesmo poder de gestação da terra.
Encontramos em muitas das obras de Nadia a recorrência de elementos conceituais, estéticos e simbólicos relacionados aos orixás femininos, que são a representação coletiva das grandes mães ancestrais. Esses elementos formam uma complexa matriz de referências simbólicas recorrentes no corpo da obra da artista.
Assim, podemos nos remeter a “Puxada de rede” (2013), instalação composta por um barco, que faz alusão ao “atlântico negro[4]”, esse espaço transnacional de construção cultural, e rememora a dura travessia enfrentada pelos povos escravizados há séculos atrás. A embarcação nesse oceano diaspórico é acompanhada de uma imensa rede carregando 60 peixes de prata, sendo suas escamas como pedaços do corpo materno, que acompanham seus filhos na mais difícil travessia, garantindo a manutenção da vida no novo mundo. Os peixes reaparecem, ainda que esporadicamente, em diversas outras obras de Nadia, como por exemplo, na “Oxum” e na “Iemanjá”, ambas as esculturas da série “Dinkas Orixás”.
Já em “Mulher peixe” (2021) e “Mulher pássaro” (2021), encontramos uma espécie de demarcação simbólica coletiva de Ìyàmi.
Mulher, ser mutante, princípio dinâmico, gestação, metamorfose. Pássaros ou peixes, sereia, criatura fabulosa, metade peixe, metade pássaro, habitando penhascos solitários, pairando sobre rios e mares. Transmutação, da sereia pássaro mulher, emerge a sereia peixe mulher, plumas e escamas, parte de um todo, cada uma é uma ao lado de todas, com todas, unas, plurais, e heterogêneas. Os muitos eus da coletividade, os indivíduos em multidão. Mulher peixe pássaro, corpo materno escamado de semente, plumagem da vida, corpo fecundado, apaziguado, multiplicando porções, exemplares pessoais da mesma espécie, proporcionando a continuidade genérica da existência, antes e depois, e no sempre aqui e agora[5].
Portanto, os elementos peixe e pássaro estão diretamente conectados com a representação simbólica das Iyà Agbás.
A vida em comunidade na cultura iorubá depende de várias sociedades, frequentemente secretas, a Sociedade Gèlèdè é uma delas, o que permite a esse grupo prestar homenagem a Ìyàmì. A origem de seu culto é na região de Ketu, e a sua função primordial é saudar Ìyá Nlá (a grande mãe) e suas discípulas terrestres, as poderosas Àjés[6].
Ìyami Àjé é conhecida também por muitos nomes de louvor, Ìyá mi Òsóróngà, Iyà Agbá, Àw?n Ìyá Wa (Nossas Mães), ?l?y? (dona do Pássaro Sagrado), Ìyá?lá, Àw?n Àgbàlagbà (As Sábias e Formidáveis Anciães), Anciães da Noite, as “Deusas da Sociedade”, Ayé (Terra), Yewáj?bí (A Mãe de Todos os Òrì?à e Todas as Coisas Vivas).
Segundo Juana Elbein, a sociedade Gèlèdè existiu no Brasil e sua última sacerdotisa suprema foi Omonike, que tinha o nome católico de Maria Júlia Figueiredo. Com sua morte cessaram-se as celebrações dos festivais anuais[7]. Mas, ainda assim, seu culto permanece em segredo nas mais antigas comunidades-terreiros brasileiras.
São milhões as brasileiras negras, segmento em dilatação, espraiando durante cinco séculos, multiplicam-se e labutam de sol a sol, enfrentam e superam dramáticas condições de existência material a pressão exercida por um sistema político, etnocêntrico e autoritário. Escrava, camponesa, operária, libertaria. Cinco séculos de árdua batalha, de geração a geração[8].
Nesse contexto, a obra de Nadia preserva, propaga e reverbera o poder mítico herdado de suas mães ancestrais. Para a confecção de suas esculturas a artista conta com a participação de uma rede de mulheres, majoritariamente negras, que labutam dia a dia, fiando contas de miçanga sem parar. É dessa forma que essas mulheres ganham seus sustentos para criarem seus filhos, para alimentarem a casa, resistindo e mantendo viva a cultura e as tradições que atravessaram os efeitos corrosivos do atlântico.
Muitos também são os itans/mitos que surgem em torno da divindade Ìyàmì. Um deles narra a razão da orixá Oxum ser considerada sua representante coletiva maior. Um Odú de Ifá conta que os orixás masculinos tentaram criar o mundo, mas falharam, e foi somente quando incluíram Oxum que o mundo pôde ser formado. Por essa razão, a exposição apresenta um conjunto de obras da série “Dinkas Orixás”, todas dedicadas a Oxum e as suas múltiplas qualidades.
Outro conjunto que faz parte dessa exposição é a instalação “Oriki”, composta por sete obras. Oriki significa saudar a cabeça, e é também verso, ou oração, que se canta para os orixás. Ori quer dizer cabeça e ki/saudar, e nas religiões de matriz africana é através do Ori que se dá a comunicação entre o mundo material e o espiritual. Nessa instalação, as cabeças produzidas por Nadia entoam os mais poderosos e femininos versos em louvor a Ìyàmì, reverenciando sua tamanha importância, geradora, mantenedora de vida entre as divindades e os homens. Por ser indispensável e necessária sua participação em absolutamente todos os rituais, passa a ser temida e evitada, por ser extraordinariamente poderosa.
Evocando simbolismo, ancestralidade, tradição e contemporaneidade, Nadia Taquary nos confronta com o saber ancestral vindo da África há cinco séculos, nos obrigando a questionar os cânones tradicionais do conhecimento. Para compreender sua obra e atingir as mais profundas camadas de entendimento é preciso um repertório que foi demonizado, silenciado e apagado pela brutalidade que foi o processo colonial brasileiro.
Essa mostra soa como uma homenagem de Nadia a todas as mulheres que vieram antes de nós, mães extraordinárias da história do Brasil que protagonizaram lutas, se organizando socialmente e politicamente, ascendeu economicamente, e reestruturaram seus cultos no Novo Mundo.
“Eu só sou, porque um dia elas foram[9]”.
Ayrson Heráclito e Thais Darzé
[1] Documentário Ìyàmìs – Casa Branca[1], tem texto de Orlando Senna, Juana Elbein dos Santos e Marco Aurélio Luz, narração de Ferreira Gullar, assessoria e participação especial de Deoscoredes M. dos Santos (Mestre Didi).
[2] Obra de 2012, em ferro, madeira, palha da costa e búzios.
[3] Trecho do documentário Ìyàmìs – Casa Branca, com texto de Orlando Senna, Juana Elbein dos Santos.
[4] Conceito apresentado pelo sociólogo britânico Paul Gilroy (1993)
[5] Trecho do documentário Ìyàmìs – Casa Branca, com texto de Orlando Senna, Juana Elbein dos Santos.
[6] Àjé é uma palavra yorubá que significa o poder biológico e espiritual das mulheres africanas e afrodescendentes que tem um potencial incontável, incluindo, entre outros, poderes de criação elementar, biológica e artística, de cura, de destruição, de desenvolvimento e fortificação espiritual e física e, organização política de empoderamento.
[7] Juan Elbein SANTOS, Os nagôs e a morte, p. 115
[8] Trecho do documentário Ìyàmìs – Casa Branca, com texto de Orlando Senna, Juana Elbein dos Santos.
[9] Citação da artista Nadia Taquary.
Qual o significado que você quis dar e o que isto determina na criação destes trabalhos e desta mostra? A grande mãe, o poder feminino, a feiticeira, o orixá?
Escolhi esse título após uma imersão no que é e representam as grandes mães ancestrais, as Ajés Ìyàmìs, e a necessidade de desconstrução de uma história imposta pelo colonialismo e patriarcado que nos impediu de acessar entendimentos que nos potencializasse enquanto poder feminino gerador do que desejar.
Neste meu trabalho trago o universo ligado as Ajés Ìyàmìs como penas, escamas, simbolizadores da coletividade em um só corpo, como a mulher pássaro e mulher peixe, a vir vermelho sangue, representando o fluxo menstrual, a contínua transformação, a própria vida, e a grande cabaça da existência, origem de onde o mundo e tudo que nele há passam a existir. As pencas são o poder de transmutar uma história cruel e gerar liberdade.
Sua arte vem revelando poéticas afro-brasileiras e discutem religiosidades, investiga os saberes e fazeres das tradições de joalharias crioulas, a história da população negra no país, as lutas raciais contemporâneas, entre outras. O que a levou a ter este tema como definidor desta série?
Elas são força e poder feminino criador. Em meus trabalhos, elas sempre estiveram presentes. Seja quando atualizo o balangadã no ventre, signo de pecúlio, força, resistência e união, até o que mais se verá nesta exposição. Trabalhar em coletividade pelo bem de todos e para todos. As pencas são o poder de transmutar uma história cruel e gerar liberdade. Isso é sobre a Ajé Ìyàmì. Isso é Ajé Ìyàmì.
Entrevista concedida de Nádia Taquary a Claudius Portugal.