“Trilha de ossos”, Tereza de arruda
A exposição “Trilha dos ossos”, de Fábio Magalhães, apresentada na Paulo Darzé Galeria, traz parte e sua produção artística dos últimos dois anos. Ela é composta por uma trilogia demarcada por início, meio e fim, visualizando uma cronologia existencial em três atos: “O passado indelével”, “O caos do agora” e, por fim, “O amanhã distante”. Tem-se aí uma análise de questões atuais, sustentadas por alicerces do passado irreversível e do futuro um tanto quanto imprevisível.
A perspectiva de Fábio Magalhães é construída a partir de sua vivência pessoal e do contexto que o norteia, tendo as relações humanas, as condições psíquicas e o imaginário pessoal como pontos de partida de sua investigação. Seu foco, contudo, se distancia claramente dos parâmetros convencionais do antropocentrismo, que coloca os seres humanos no centro do universo de forma soberana. Hoje, a reavaliação crítica dessa perspectiva – presente na representatividade de Fábio Magalhães – é essencial para enfrentarmos os desafios contemporâneos, diante das crises ambientais, políticas, éticas e sociais. A transição para uma visão mais holística e inclusiva, que reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos, e a sua interdependência, é crucial para uma mudança de paradigma a caminho de uma sociedade mais equitativa.
Em uma narrativa sócio-político-cultural, nota-se na produção atual de Fábio Magalhães como a era da pós-globalização – políticas mais focadas na autonomia e na autossuficiência nacional – pode influenciar, mas sem necessariamente eliminar, a relevância e a urgência de abordar temas globais – desafios persistentes que afetam toda a humanidade –, tendo que assumir medidas colaborativas e multilaterais, como tratados internacionais, em busca de soluções mundiais. Segundo o artista: “A cada dia que entro no meu espaço de produção artística, reafirma-se em mim que a Arte nos dá a capacidade de imaginar e interagir criticamente com o mundo em que vivemos; isso exige constantes reflexões sobre os valores, hábitos e escolhas que norteiam nosso cotidiano”.
Sendo proveniente do estado da Bahia e vivendo em Salvador, onde graduou-se em Artes Visuais, em 2007, Fábio Magalhães tem seu cotidiano imerso no histórico nacional, enraizado no berço colonial da primeira capital brasileira, em vigência entre 1549 e 1763. Cidade que foi o centro político, econômico e cultural da colônia, que detém os vestígios deste passado encravados em si até a atualidade, Salvador é indiscutivelmente um símbolo de resistência, cultura e patrimônio, sendo um ponto de referência crucial para entender a complexa história e a evolução do Brasil. Hoje nos deparamos com o processo tardio de reparo histórico-cultural de âmbito nacional e mundial, a fim de enfrentarmos o desafio de propiciar um futuro justo e igualitário, resultado da combinação de reconhecimento histórico, compensação, restituição, reforma institucional e cultural. Eis aí o contexto no qual surgem as obras da exposição “Trilha dos ossos”. É neste emaranhado histórico que Fábio Magalhães imerge a elucidar verdades veladas.
Nesta produção inédita, o artista, conhecido primordialmente por sua pintura sobre tela, extrapola os parâmetros usuais e expande a representatividade além do espaço bidimensional do suporte convencional. Surgem objetos e instalações compostos de elementos alusivos a um trabalho arqueológico a resgatar e recompor partes individuais para a compreensão de um todo. Nesse processo de produção, a percepção do tempo é presente, intrínseca e visível, pois representa a linearidade temporal, necessária para moldar a compreensão do passado, presente e futuro, desafio que a tríade concebida para “Trilha dos ossos” propõe.
Em “O passado indelével”, o artista apresenta as obras: “Onde o passado não pode mais permanecer soterrado”, “Berço civilizatório”, “Travessias de tempos”, “Destilador de almas” e “Existir é também memória”. Réplicas de vestígios humanos, como crânios e ossadas, são inseridas em contextos diversos, a denunciar atrocidades do passado colonial e recente, imersos em um conjunto de padrões estéticos, formados por pedra portuguesa, presente no ornamento e imaginário da herança estética colonial, resguardados em invólucros supostamente aconchegantes, como berços em diálogo com relíquias barrocas de madeira, a construir um suposto percurso de passagem como um elemento de conexão de caminhos rompidos, inseridos em ovos, na simbologia de vidas perdidas, ou mesmo como oferendas sobre taças de madeira a resguardar memórias de desaparecidos.
Já em “O caos do agora” são apresentados os trabalhos “Leito das existências”, “Pulsão rubra”, “Sobre pregar dores na alma”, “Silêncio dos sinos”, “Ceifa de consciências” e “Da natureza dos vazios”. Segue-se neste contexto uma série de dualidades da vida atual, com ênfase em conceitos psicanalíticos que representam forças opostas da existência humana. Eros e Tânatos simbolizados por ovos e crânios, ambivalência imagética da combinação de energias femininas e masculinas, independente mente do seu gênero; perceptividade de dores profundas da alma, concretizadas por pregos transparentes de vidro, a sustentar partes do corpo, um rito ao luto através do silêncio, dedicado à ausência ou irrelevância de uma perda, renovação e crescimento, como caminho à liberdade de pensamento e fortalecimento de consciência contra meios opressores, ou ainda autenticidade e emancipação como alternativas de resistência em um mundo díspar entre vida e morte.
E, por fim, em “O amanhã distante”, Fábio Magalhães reúne o conjunto de obras “A ciranda”, “Braços dados que te trouxeram até aqui”, “A trilha ou Quando se perde o verniz dourado da vida” e “Achados arqueológicos de um futuro distante”. Novamente, partes isoladas do corpo simbolizam sua totalidade em questões existenciais de subsistência em um futuro incerto. Fêmures e úmeros se unem aleatoriamente em um ato de sustentabilidade mútua. Úmeros interligados fazem menção aos antepassados como relíquias hereditárias e infindáveis, desgaste e perda da pátina original, como a evidenciar a finitude inevitável do corpo, premeditando a transcendência imaterial, ou um epílogo, no qual a ausência é representada pela falta de três partes do corpo humano, levando à análise e reflexão do abismo que é a existência humana e sua jornada díspar e ímpar.
Esta totalidade de obras e abordagens é apresentada de forma sensorial, através da combinação de materialidade meticulosamente selecionada pelo artista para sua concepção. Produtos industriais, como barras e correntes de metal, se unem a tecidos aconchegantes, em construções elegantes, a abrigar preciosidades confeccionadas em caráter hiper-realista, característica das obras usuais de pintura de Fábio Magalhães. Ele, por sua vez, se apresenta em sintonia com sua produção atual, a conceber uma complexa imersão que transcende a mera observação da vida real abrindo caminho para novas realidades emergenciais. Esse contexto me remete ao artista francês Robert Filliou, o qual proclamou da seguinte forma sua visão de que a arte e a vida estão intrinsecamente conectadas e predestinadas a se superarem: “A arte é o que faz a vida ser mais interessante do que a arte”.