A obra de Almir Lemos demonstra de maneira exemplar como as tradições são terrenos perenes, campo de constante negociação e permanente transformação. Oriundo de uma família de trabalhadores do barro, de Maragogipinho, distrito do município de Aratuípe, no Recôncavo Baiano, conhecido por sua centenária produção cerâmica, Lemos conheceu desde cedo todos os estágios do ofício — da coleta do barro até a queima, passando pela pisa dos “amassadores”, pelas mãos dos “empeladores” e pela habilidade dos mestres do torno. Cada etapa do trabalho constitui, portanto, um elo de uma longa cadeia de transmissão de conhecimentos adquiridos empiricamente. Acumulados e preservados no encontro da mão com a terra, esses saberes mantêm candente a vitalidade das práticas culturais afro-indígenas, asseguram a qualidade artesanal da peça e garantem a movimentação da economia local.
Das olarias e oficinas de Maragogipinho saem potes, moringas e quartinhas, copos, panelas e talhas — além de objetos decorativos, como o icônico boi-bilha — que percorrerão os cerca de 227 km que o separam de Salvador, onde são vendidos na Feira de São Joaquim. O processo criativo de Almir Lemos, no entanto, deriva e se desprende de toda a tradição da cidade: ao dispensar o torno, optando pela modelagem estática, e, sobretudo, ao renunciar ao forno, deixando que a peça seque naturalmente, suas obras adquirem texturas menos homogêneas e configurações menos conformadas aos padrões utilitários já estabelecidos e esperados pelos consumidores. Cada objeto adquire personalidade, singularidade e aspecto único, reorganizando a cadeia produtiva do artesanato praticado em Maragogipinho e introduzindo nessa tradição longeva uma forma original de ver, perceber e trabalhar o barro.
Terra Viva, primeira individual de Almir Lemos, apresenta um conjunto significativo de peças inéditas que nos permite vislumbrar, nas irregularidades e no multicolorido do barro cru, a força telúrica da matéria preservada pelo abandono do forno. Se, do ponto de vista técnico, a renúncia do fogo implica uma mudança importante no uso prático da peça, que resultará mais porosa e menos resistente à água, por exemplo, do ponto de vista hermenêutico esse gesto tem implicações mais profundas. Em diversas culturas, a queima da cerâmica, assim como o manejo do ferro, constitui a prova mais contundente (e ancestral) do mito do roubo do fogo, que narra o domínio do fogo primitivo, promovendo a passagem da natureza à cultura e catalisando o nascimento da técnica. Não por acaso, as artes do fogo, ligadas à cozinha e à cerâmica, são, em diversas culturas, investidas da noção de combate cósmico, para o qual o fogo roubado dos deuses e colocado à serviço dos humanos constitui um atenuante do perigo de deflagração do caos.
O ceramista e os produtos de sua indústria desempenhariam, portanto, um papel mediador entre as forças celestes e as forças terrestres, isto é, entre os deuses, detentores originais do fogo, e os humanos, que aprenderam o segredo de sua manipulação. A decisão artística de abandonar a queima da cerâmica significa, portanto, dissociar o trabalho com o barro dessa matriz mítica, associada à organização do conhecimento e ao domínio do homem sobre a natureza, para se vincular, por assim dizer, a uma outra tradição para a qual a relação entre humanidade e natureza não se estabelece pela disputa e pelo combate cósmico, mas, ao contrário, pela transferência de energia vital, o axé, e pelo encantamento das coisas existentes, o orixá.
A vitalidade inerente ao barro cru, preservado pelas mãos de Almir Lemos, provém da lama que Nanã, senhora das águas turvas, da lama e do lodo, fornece à Oxalá, criador de todas as coisas, para modelar o ser humano, sobre o qual ele bafeja seu hálito sagrado e lhe dá o sopro da vida. O barro de Lemos, depois de modelado, seca exposto ao sol e ao vento: nesse processo, a quentura, que pertence à Omolu, senhor da terra e da cura, se alia ao vento de Oyá, que comanda também as tempestades e os trovões. O saber da técnica se faz vivo através de Ogum, a tecnologia encarnada, a transformação aspectual da matéria, a lâmina afiada. Nada, porém, acontece sem a paciência, sem o tempo lento da espera, que é Iroko, a árvore sagrada que liga a terra profunda ao céu mais longínquo, a escada, o acesso de um estado da matéria a outro. Com o abandono do torno e do forno, é o tempo que se incumbe de irrigar de vida o barro, mantendo a terra próxima de suas origens, preservando suas moléculas e sua estrutura cristalina da inversão sílica que transforma, na alta temperatura, o barro em cerâmica. Assim, desviando da tradição de Maragogipinho, que produz utensílios cerâmicos utilizados sobretudo pelos terreiros de Salvador, Lemos reencontra a cultura dos terreiros ao devolver a prática da cerâmica às suas origens, preservando na própria matéria a presença viva do Orixá. As peças não apenas servem à prática religiosa, mas integram, elas próprias, o axé.
À operação complexa de se dissociar da historicidade da cerâmica peladispensa do torno e do fogo, recorrendo ao uso da matéria crua como reservatório do axé do barro, somam-se ainda suas invenções formais. De onde vêm essas formas? Nos recipientes tradicionais — moringas, porrões e talhas, por exemplo —, cada parte da peça atende à função a que o objeto é destinado na vida prática. Nesses casos, o elemento decorativo se manifesta, em geral, na pintura floral, realizada em caligrafia sinuosa, no contraste do branco sobre o fundo terracota, também tradicional na cidade. Ocorre que Lemos atribui às suas peças elementos zoomórficos, muitas vezes humanoides, no limiar entre o animal, o vegetal e o protozoário, como numa trapaça entre o microscópico e o agigantado, que nos chama atenção para outras manifestações da vida, para além daquelas que nossos olhos conseguem ver e nossa mente classificar. A natureza híbrida das obras produzidas pelo Lemos, mais do que ser a expressão da liberdade plástica de um artista pouco conformado aos padrões, traduz a zona de Apicum, brejo de água salgada, de solo arenoso entre o mangue e a terra firme, estado em que a forma não se define por completo, favorecendo a abundância da vida. Esse estado permanentemente transicional de suas quase figuras, nunca de todo utilitárias, nunca de todo decorativas, é reforçado, ainda, pelaadição de materiais complementares — palha, piaçava, contas —, que evocam algo elementar: ídolos pré-históricos, amuletos, esculturas erodidas pelo tempo, figuras imemoriais cuja origem parece evocar o que não conseguimos lembrar com clareza. Cada uma dessas peças constitui, portanto, um ser individual, subjetivo, cheio de personalidade, que amalgama, em sua materialidade, a energia vital do modo como foi produzido (sem prejuízo do calor) e da forma física que tomou.
Renato Menezes
Historiador da arte e curador