Arquiteto por formação, o seu trabalho plástico-visual integra várias áreas do conhecimento, numa investigação permanente sobre as áreas das ciências exatas e biológicas, abarcando ainda referências literárias, artísticas, filosóficas e científicas, incluindo nesta pesquisa a arqueologia, a paleontologia, a psicanálise, a zoologia, a medicina, utilizando com esta diversidade um acúmulo imenso de materiais, onde objetos comuns – fios, vidros, lã, feltro, ossos, agulhas e muito mais – são transformados por seu uso e relação para invenção e construção de um universo instigante e fantástico entre o real e o imaginário. Por esta criação vem a exibir uma obra que se tornou um projeto estético, de marca pessoal e singular por seus desenhos, esculturas, instalações, performances, vídeos, e fotos, se tornando um inventor e construtor de imagens com o seu trabalho.
Tunga (Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão) nasceu em Palmares, Pernambuco, em 8 de fevereiro de 1952. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1974, onde concluiu o curso de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Santa Úrsula. Em 1987, Arthur Omar realizou o vídeo O Nervo de Prata, sobre sua obra. Com muitas premiações, entre outras, temos: Brasília de Artes Plásticas, em 1990; Prêmio Mário Pedrosa, em 1991, da Associação Brasileira de Críticos de Arte pela obra Preliminares do Palíndromo Incesto; Trienal Latino-Americana, de 1986, de arte sobre papel, Buenos Aires, Argentina; 1997, Aquisição do Museu de Arte Moderna da Bahia; tendo sido indicado para os prêmios Hugo Boss Award, Guggenheim Museum, Nova York, e Artes Mundi Preize, em Wales, Inglaterra. Com mostras em vários países, obras em coleções nacionais e internacionais, participou, entre outras, das bienais de Veneza, São Paulo, Havana, e da Documenta de Kassel, Alemanha. Seus trabalhos estão em acervos permanentes de museus como o Guggenheim, de Veneza, Itália, ou numa galeria dedicada à sua obra no Instituto Inhotim. Foi o primeiro artista contemporâneo e o primeiro brasileiro a ter uma obra exposta no Museu do Louvre, em Paris, França. Faleceu no Rio de Janeiro em 6 de junho de 2016.
A sua obra possui uma relação com o mundo através de fontes artísticas, literárias, científicas. Como é feita esta integração dentro dos limites da visualidade?
A tarefa do poeta, do artista no mundo hoje, acredito ser carregar sensibilidades dispersas nos mais diversos saberes que a sociedade produz. Ele é uma espécie de olho clínico geral do mundo, apontando possíveis formações do espírito.
A sua obra integra desenhos, esculturas, instalações, performances, vídeos, fotos, e disto uma relação com o mundo, para criação e visualização. Como são selecionados ou escolhidos alguns destes caminhos ou vários deles para sua realização/execução? Há um projeto?
Existe um projeto sim, um programa. Todo artista deve ter o seu programa. Uma via o trata de modo mais consciente, outra mais instintiva. Elucidar expressando este programa é a construção da obra. Será nela que o programa se dá, se esclarece. Compreender este programa, me parece, será trazê-lo à consciência podendo nele operar a navegação das mais diversas linguagens sem perder o rumo. Como um clínico geral, é necessário olhar o corpo inteiro e as inter-relações das partes, dos órgãos. Suponha que este corpo se manifeste por palavras, cores, sons, sabores, formas, temperaturas, odores… Congregar as linguagens lidando com estes sentidos, reconstruindo um corpo possível, será uma das metas deste projeto.
Da relação com o mundo para sua feitura, a sua obra passa depois também a ter uma dimensão interativa com o “espectador”. Tornado participante, o “espectador” é solicitado a não ter mais uma apreensão estática, mas uma expressão de relação?
Olhar já é participar! Sentir o gosto de um tempero também. O que na arte atual nos foi oferecido é uma integração maior com aquilo proposto pelo artista. O artista se coloca como o comandante de um barco onde ele também é passageiro como o público. O caminho, a rota de uma obra é tragada pela habilidade do comandante em navegar junto aos tripulantes, saber levar o barco a “mares nunca dantes navegados”. Para isto, é fundamental a integração com o público neste programa; a obra deve, portanto, convidar este público à viagem proposta.
Com esta relação, qual o limite na sua obra entre o virtual e o real?
É o limite neural, até onde podemos ir…
Chama a atenção nos seus trabalhos o uso de materiais, a diversidade deles, e entre estes também a luz – uso de infravermelho, ultravioleta – como material. Esta materialidade da luz nos dá uma leveza. Pode discorrer sobre a escolha, a utilização, como é realizada esta pesquisa, e como isto se irradia na sua criação? O que é a justaposição de materiais na sua criação?
A ideia mesmo de “material” de trabalho, material de construção, nos faz pensar numa arquitetura, e um arquiteto eficiente leva em conta a aurora e o ocaso, os ventos, calmarias, bordas, implantações, fixação e deslocamentos… Tudo é passível de tornar-se material de construção. Será a atenção a isto o fator de criação da densidade e complexidade de uma obra. O que você menciona como leveza é talvez a diversidade de entradas que a obra propõe.
Um dado que também ressalta na sua obra é o espaço, o diálogo que é feito entre massa e volume, fundo e figura, e, principalmente, o que é concretizado pelo vazio. Como vê o espaço na sua obra? E, neste, a relação entre corporidade e vazio?
Tudo me parece ser corpo, não há vazio no meu modo de ver, há densidades: sutis, transparentes, etéreas ou carregadas, saturadas, pesadas etc.
Sua obra possui uma sofisticação formal. Isto é antecedido de um projeto gráfico? Aliás, o que é o projeto gráfico para a realização da sua obra?
Gráfico é o desenho. Poucas obras nascem do desenho, embora seja um instrumento, uma ferramenta de aprimoramento e construção das peças. Nascem mais de uma bruma, que se expressa em um ou outro sentido com mais intensidade. A repercussão desta bruma em mim é que vai privilegiar a formalização neste ou naquele meio. Poderia ser uma canção se minhas aptidões musicais fossem mais acuradas. Se este for o caso, posso contar com colaboradores músicos, que vão me guiar na construção da canção desejada.
Um dos críticos que acompanham a sua obra afirma que você considera a escultura como um conjunto de formas e figuras enigmáticas, cuja estratégia e proporções fabulosas integram o espectador e causam transtorno em sua percepção habitual de próximo e distante, dentro e fora, cheio e vazio. Esta fala acima é um dos caminhos ou objetivos de sua arte?
Sim.
Na sua relação com as artes, as ciências e a literatura, saltam aos olhos a presença da psicologia, o interesse pelo inconsciente, pelo sonho, para a feitura do trabalho. Isto pode se estender à biologia. Estes estudos servem até que ponto para o desenvolvimento de sua obra?
Hermenêuticas diversas me interessam. Mostrar, criar um fato e suas versões. Contar com a versão dos fatos dos outros e de outros fatos suscitados pelo criado. Nisto consiste a psicanálise, teoria literária, a etimologia, até a odontologia cria versões para fatos que contribuem para adensar uma visão poética do mundo. Usar estas versões de modo “perverso” é coisa da poesia.
Ao escolher seus materiais, você se apropria deles, retira sua natureza e, com o “contágio” entre eles, nasce o trabalho. Esta justaposição de materiais, levando que a origem será modificada, pode também ser traduzida para o espectador? A obra deflagrando por seu universo um novo mundo para este? E ainda nesta pergunta: esta modificação deve acarretar também uma mudança do simbólico? Criar um simbólico? Uma visão nova? Sua obra exige uma visão nova para poder vê-la?
Construir junto ao espectador uma poética que seja minha e dele, podendo resgatar, nos processos primários, um mundo em transformação, um mundo por nós transformável.
(entrevista / março de 2008)