Utilizando formas de expressão do interior da Bahia que o fascinam, como a memória de desenhos em paredes de casas abandonadas, seu trabalho reporta-se ao pulsar de uma curiosidade da infância, abarcando temáticas onde a sexualidade, a religião, a cultura, a vida social se tornam processos para um presente que se materializa no desenho, na pintura, em objetos e instalações. É um grafismo que revela, num primeiro plano, uma poética de redescoberta de espaços, de reinvenção de formas, por meio dos modos de abordá-las, como resultado de sua pesquisa de materiais, estes repletos de lembranças do Recôncavo Baiano, onde viveu, pelo trabalho realizado com o contato direto com a tela, o papel, a madeira, ou pelo olhar que convida a que todos vejam as “coisas do mundo” com “agressividade de ser e de ocupar a imensidão da insatisfação”.
Maxim Malhado nasceu em Ibicaraí, Bahia, em 15 de janeiro de 1967. Mora em Massarandupió, Bahia. Tendo começado a expor a partir de 1995, foi premiado sete vezes nos Salões Regionais da Bahia, e, em 2001, recebeu o Prêmio Aquisição no VIII Salão do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foi selecionado no Itaú Cultural – Rumos Visuais 2001-2003, e em 2004 participou da 26ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Entre suas exposições: Salão Nacional de Goiás; Salão Nacional de Arte do Pará; Salão Nacional de Curitiba, Paraná. Sua obra está nos seguintes acervos: Galeria ACBEU, Salvador, Bahia; Projeto Salvador Porto e Mar – Codeba; Centro Cultural Danneman, São Félix, Bahia; Instituto Cultural Brasil-Alemanha/ICBA, Salvador, Bahia; Museu de Arte Moderna da Bahia. Recentemente participou da Bienal de Montevidéu, Uruguai.
Como você identifica no seu trabalho, seja desenho, pintura, objetos, instalações, a questão da espacialidade?
Como numa “mudança” de casa, num “deslocamento”, como fazer cisternas para achar água no nada. São essas questões dentre outras da física que me atraem em primeiro instante. O volume, a massa, a massa dos objetos, a questão de ocupar e desocupar um espaço, o meu espaço e o do outro, e o silêncio que está no entorno — o vazio que é e o que fica — interior e exterior. Em segundo, respondo lembrando uma exposição que fiz em 1994, em Sítio Novo, que chamava “São João sem João, ai de mim sem João, sem Pedro e sem José, São João sem vocês, seu Flaviano, eu quero uma bomba de 0,50 e de quebra um bolinho pra velar meu espírito”. O espectador entrava no espaço às escuras, munido apenas com uma lanterna feita com lata de leite, que teria que ser repartida com pelo menos mais três pessoas. Lá dentro tinha desenhos, objetos, instalações, tudo muito gráfico, talvez tenha sido aí meu primeiro contato com essa questão da espacialidade. De lá para cá vem se transformando de acordo principalmente com o próprio espaço. Tinha algo também ligado com as questões religiosas e sexuais que desenvolveria mais futuramente.
Este é o ponto principal da sua obra?
É um dos pontos principais da minha obra: essa suave agressividade de ser e de ocupar a imensidão da insatisfação.
E nesta descoberta, como se dá o ritmo, a organização formal por sua disposição, a harmonia das linhas e objetos, dentro deste espaço da obra? Essa harmonia não vem pronta, busco algo como os pedreiros, os carpinteiros, os mestres de obras. Encontrar soluções para algo que ainda não tem, virando as coisas aos avessos, dentro de uma necessidade que é real. As formas são construídas para observação. O ritmo e a harmonia se dão pela insistência, pela vontade e pela disciplina, buscando um prumo entre as linhas e entre os objetos.
É um trabalho que propõe eminentemente a descoberta do espaço?
Sim, como se estivesse diante do mundo pela primeira vez, como se fosse aprender a desenhar, pois não basta apenas observar as coisas, é necessário muito mais que isso. Em alguns instantes é preciso mesmo estar livre, sem um guia, livre inclusive do presente. Só aí, com o tempo que os objetos criam curvas, adquirem hábitos e costumes, descobrem jeitos dentro do espaço.
A descoberta deste espaço leva a uma redefinição de significados?
Como disse, a depender de como nos prostramos diante da obra, ou do espaço instalado a mesma, a depender do sentido o qual olhamos, a depender do instante do espectador, do que ele traz como ferramenta e referência do mundo, diante disso, surgem inúmeras leituras e significados.
E neste espaço redescoberto, o que você traz como reinvenção das formas e de significados, que vêm a ser a sua arte, o que é que estas carregam de uma memória que você traz do interior da Bahia?
A mim atrai muito, por exemplo, a forma como os donos de padarias a lenha no interior da Bahia armazenam suas madeiras na frente de seus estabelecimentos, ocupando o espaço da rua, do estacionamento dos carros, interditando a passagem dos transeuntes naquele lugar. Observo esse comportamento e tenho registrado fotograficamente durante anos, e pude realizar parte desse projeto em 2003, no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA-Salvador), com o título Amassando a Massa, onde construí um cubo que fazia referência à casa, com uma única porta, por onde não se podia nem entrar e nem sair daquele espaço, ou seja, um lugar completamente interditado com gravetos até a porta. Em seguida pude realizar, em 2003, numa exposição com curadoria de Waldir Barreto e Agnaldo Farias, sobre o desenho no espaço, uma montanha de madeira. Esse formato foi o que mais se aproximou do gesto popular. Antes pude construir outras instalações dentro dessa pesquisa, que remetessem de alguma forma a esse universo e levantassem outras questões do impedimento, como foi o caso da Mata-Burro, também realizada em Brasília. E em 2004, junto com Ieda Oliveira, realizamos uma mostra que levou exatamente o título Impedimentos, onde apresentei um trabalho chamado “Tá todo mundo desejando ser um animal, mas a maldade não deixa”, no qual cada espectador que chegava à exposição recebia uma forquilha de madeira igual às usadas em animais a fim de impedi-los de pularem a cerca.
Esta condição de origem, a história dela, como está traduzida na sua arte?
Em 1995 realizei uma mostra em Sítio Novo, chamada Nas Canções do Rádio, onde o espectador, ao entrar no espaço, tinha a sensação de estar numa gaiola, numa armadilha, ou ainda num curral. Em seguida levei essa mesma exposição para Feira de Santana, sendo que lá aumentei um pouco mais a quantidade de obras, devido ao tamanho do lugar. Então, na entrada do centro de cultura, construí uma passagem pela qual, somente por ela, as pessoas deveriam passar. Era uma espécie de curral, uma cerca. Motivo esse que a diretora quis impedir a instalação da obra. Se não fosse a interferência do artista Juraci Dórea, não teria executado esse trabalho. São esses os elementos que de alguma forma trago no meu trabalho até hoje. Sua origem, sua história, o que permeia seu universo, principalmente o aspecto formal, trazendo de sua fonte confrontos com questões contemporâneas.
Esta memória do interior é sua forma de expressão como tema de sua obra?
Sim, a fonte parte daí. É minha memória. Nasci no sul da Bahia, fui criado no Recôncavo Baiano, e trago todas essas passagens. Por outro lado, acredito em não questões que se encerram por lá mesmo. Ganharam e ganham visibilidade em outros cantos também. Há uma comunicação, um diálogo, uma troca de experiências com outros mundos e outras expressões.
Há um tema determinado sendo visto na sua obra? Um tema religioso, social, sexual, cultural?
Além destes, tem ainda o universo da construção, da construção da casa, dos canteiros de obras. Desperta meu olhar a técnica utilizada para se tirar o esquadro (algumas madeiras fincadas no chão, presas com um náilon, rodeando o espaço, traçando um desenho maravilhoso no ar), depois tem o nível (com apenas uma mangueira plástica e água dentro dela), para em seguida levantar as paredes, aí entra o “prumo”. São também elementos que desdobro e me aproprio desse universo.
Mas seja qual for o tema, vemos na sua obra um trabalho eminentemente gráfico. Como se relaciona com esta opinião?
Às vezes, quando não tinha estilete, e naquele tempo ainda não tinha mesmo, pelo menos não tinha acesso, era a gilete ou a faca que utilizávamos para fazer a ponta dos lápis, e, na falta de qualquer um desses objetos, era nos dentes ou nas paredes que fazíamos. Desde então, meu olhar era atraído pelas manchas pretas que ficavam nas paredes, pelos riscos, pelos buracos feitos muitas vezes a unha, os desenhos feitos a carvão. Em certo momento do meu percurso, desenvolvi uma pesquisa, fazendo um paralelo entre o que chamei de grafismo rural versus grafismo urbano. Em 1995, participei do meu primeiro salão, em Feira de Santana, realizado pela Fundação Cultural do Estado. Apresentei três desenhos puramente gráficos, feitos com pastel seco, pastel óleo e grafite, e com eles recebi o primeiro reconhecimento, sendo premiado como destaque especial do júri. Então, seja qual for o tema ou técnica utilizada para realizar uma obra, essa coisa gráfica é sempre muito forte.
Também há na sua obra a pesquisa da madeira, criando objetos, e uma pintura em tela feita em óleo, e uma pintura em papel que é colada em placas. Dá para falar um pouco sobre cada um destes momentos?
Sobre a madeira, já há bastante tempo desenvolvo obras utilizando esse material, construindo objetos, esculturas, instalações. Desenvolvo, desde 2005, uma série de objetos que o princípio de elaboração tem como pesquisa o prumo. As pinturas sobre tela a óleo e acrílica, assim como as pinturas sobre papel em técnica mista, estão na maioria das vezes no universo da construção, na casa e seus espaços, nos equipamentos e objetos que servem na sua construção e também nos que servem como “enfeite”, bem como os objetos utilitários, (paneleiros, filtros d’água, das dispensas, das gavetas e dos cantos). Há também outras questões que podem ser vistas nas pinturas, algo como a questão sexual, principalmente nas com suporte em papel.
Nos seus objetos e nas suas instalações, sinto existir uma procura da experiência física do espectador, o que não deixa também de ser uma questão do espaço na obra. Como vê esta minha sensação?
Com certeza, gosto de construir nos objetos, procurando uma forma que de algum jeito o objeto saia da parede, que, além de ocupar o seu espaço, ele também invada o do outro, que o espectador se redimensione dentro daquele espaço, desenvolvendo o olhar à “atenção” e ao “cuidado”, para que de alguma forma, desperte o olhar para as coisas do mundo.
Como você identifica o ponto de partida para a criação de sua arte? O que o impulsiona? Como é o seu processo de trabalho? Que estímulo deflagra a criação de sua obra?
O trabalho. Como falei anteriormente, a respeito da disciplina, o contato com aqueles materiais de alguma forma abre um espaço interno, que de certa maneira facilita a elaboração de ideias. É na insistência que as coisas fluem. Não é na espera. É no trabalho contínuo, é na certeza do gosto do preto sobre o branco, e exatamente por isso que até os “acasos” surgem. Se não tiver esse convívio, até a alma se ausenta. A certeza do querer, da vontade, antes de qualquer coisa, o estímulo surge pela necessidade da ideia se tornar coisa. O processo de trabalho acontece me tornando íntimo das coisas, das que de algum jeito apontam para mim, o que chega sempre diz respeito àquele universo, porém recheado de novidades e segredos, que novamente requerem cuidado e estudo, para depois solucionar a melhor forma/maneira de instalar a obra. Às vezes, nada disso é preciso. Outras, o trabalho por si só acontece. E, outras, onde não tem mais necessidade alguma.
(entrevista / abril de 2009)