Logo chama a atenção em seus trabalhos as suas formas, os volumes, os espaços, os movimentos, e a escolha dos materiais. Há na sua arte uma busca incessante de uma precisão técnica por meio de uma pesquisa incisiva e paciente, através de uma linguagem contemporânea de tratar a matéria. Ao mesmo tempo, é uma arte que tem como chão a sua terra, saberes e fazeres de sua gente, o que faz tornar-se um tradutor do sentimento de universalidade do mundo que vive na sua aldeia, portas do sertão baiano. Estas são marcas de uma obra onde o desejo de expressão ultrapassa a infância e a vivência de um homem do campo, como é a sua realidade na cidade natal, de vaqueiros e suas roupas de couro, das boiadas, dos utensílios e ferramentas indispensáveis ao dia a dia, expostos na feira semanal, passando pelo homem, agora urbano, estudante e, depois, professor de arte, com acesso à informação, à curiosidade, ao estímulo e ao estudo do que há de mais atual nos grandes centros do mundo através não só das técnicas e materiais, mas de sua inventividade em marcar o aqui e agora. Estas duas vertentes não se chocam, pois, em sua obra, unida por signos e símbolos do Nordeste, o homem está diante do seu habitat, de seu entorno de sertão, ao lado do homem do mar que a capital lhe acrescentou, na sua navegação por portos que o levam aos quatro cantos do mundo. Levando nesta viagem a sua cidade, a sua gente em seu cotidiano, como referência, como investigação, como paciência – o seu fazer é solitário tanto quanto a sua fala é silenciosa, deixando se vir abertamente na arte que realiza – a aventura pessoal de uma linguagem que expressa sua visão de mundo, o mundo de hoje. A sua arte é seu gesto, sua caligrafia, sua escrita, sua voz, seu grito, e o seu modo de estar e ser no mundo. E isto o deixa exposto à visitação pública ao carregar com ela todos nós, admiradores, e se deixa existir como expressão por aquilo que nomeamos arte.
Florival Oliveira nasceu em Riachão do Jacuípe, Bahia, onde vive, hoje dividindo o espaço com Salvador, Bahia, em 18 de agosto de 1953. Iniciou a sua carreira em 1976. Sua obra está representada nos acervos do Museu de Arte Moderna da Bahia; Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana; ACBEU Salvador; Biblioteca da Universidade da Bahia; Museu Regional de Feira de Santana.
Você nasceu em Riachão de Jacuípe, cidade no interior da Bahia, porta para o sertão. O que há de sua cidade, de sua gente, de sua infância como campo de referência ou de investigação na sua arte? Mas, ciente de você residir em Riachão, qual a tradução exata na sua obra de sua terra natal?
“Vejo-me dentro de um caldeirão fervente em ebulição”. A minha cidade fica à beira de um rio que é afluente do Paraguaçu, formando o vale do Jacuípe. Neste espaço, forjou uma vida entrelaçada com a macambira, a palmatória, a gerema etc. Rasteiro como teiú, o couro foi a vestimenta que lutou contra as intempéries, fez gado, curral, aboio e ferrão, marca de um quinto da produção. Administrando uma economia, chega-se ao barroco tardio de influências mouras, neoclássica e eclética. A modernidade é algo que adentra pela porta do sertão; o Museu do Sertão com o seu acervo de pintores ingleses e retrato de mulata de Di Cavalcanti ficaram marcados na minha memória em 1960. Revistas e livros da biblioteca Machado de Assis, acervo particular, e o ritual de todos os dias pegar o jornal ao meio-dia vindo da Bahia, que é como se chamava a cidade do Salvador, a capital, com as notícias da construção de Brasília (Lucio Costa e Oscar Niemeyer). Na escolha pelo lugar, questões de sensibilidade: o ar e o chão, “seco e quente no verão, seco e frio no inverno, e muita salinidade no chão”. É um bom lugar para morar. Gosto da paisagem contrastante, seco esturricante e verde veronese, vejo o mar na minha frente e a brisa constante do nascente para o poente. As ferramentas de trabalho foram reveladoras e como aprendiz o olhar ficou em primeiro plano, quase não dando permissão para falar. Uma grande escola a céu aberto. O artista manifesta desejo absoluto, entrega constante, e um andar sempre. Como são pequenas as minhas pernas, escolhi aqui para ficar.
Você entra na arte baiana num momento de intensa relação dos jovens artistas com a pintura, mas você escolhe a gravura. Como foi trabalhar nesta “contramão” e após a Bahia ter vindo de uma plêiade de gravadores?
O meu inconsciente lavado por um estado de êxtase foi determinante. Sei que tinha algo a resolver e muito difícil pelo sufoco da vida solitária. Desprendido das questões materiais, vindo de momentos de incertezas e restrições, teria que organizar uma linha de ação. Vieram-me o cinema, o teatro, a fotografia, a gravura, e neste período era necessário fazer algo para que pudéssemos avançar. Qualquer coisa é possível de gerar conceito e ser linguagem. Vi na leitura de Paulo Freire com a didática, no roteiro de pinhão de motor, com o super 8, no teatro com Oxente Gente Cordel, e na semana experimental de arte a relação com o neoconstrutivismo (Helio Oiticica, Lygia Clark), um posicionamento político e o pensamento aberto a todas as possibilidades de ação. Um aprendizado técnico acontece: folha de madeira compensada apodrecida na parede do galpão da escola e um desenho. Recortei nestas placas soltas do entremeio a matriz da xilogravura. Foi esta a ação inserida no universo da gravura, finalizando o meu curso de Licenciatura em Desenho e Plástica pela EBA/UFBA em 1980.
Também, ainda nesta escolha, a gravura ia de encontro a um mercado que se insinuava naquele momento, o que não deixava de torná-lo “diferente” dos demais. A sua arte, com essa escolha, está desde sempre determinada apenas por viabilizar a sua expressão, a expressão de sua linguagem, sua aventura pessoal? O detrimento deste “mercado” seria como não trair a sua vocação?
A responsabilidade, o contexto e a escolha por determinados suportes inserem-me no universo do pensamento plástico visual, “as oficinas”, o suficiente para entender estas duas relações, mercado e linguagem.
Também como “contramão”, qual a razão de você realizar poucas exposições, exibir de menos os seus trabalhos, não se mostrar mais apesar de ter uma obra tão significativa? Temperamento? Características do trabalho? Visão pessoal sobre mostras de arte? Só fazer quando possui algo bem significativo dentro da obra?
Várias exposições foram feitas em coletivos e individuais, o que perpassam aí trinta anos de trabalho interruptos. E veja você que haveria de ter algo que fosse norteador enquanto fomentador para um número cada vez maior de pessoas com interesse para as artes plásticas e visuais. Vi aí a necessidade de trabalhar para a formação de um público e um espaço para que artistas tivessem possibilidades de desenvolver a sua linguagem ampliando os cursos livres e espaço de produção. O trabalho, resultado da minha pesquisa, foi todo ele mostrado na cidade do Salvador.
Vejo seu trabalho tratando essencialmente de problemas de linguagem da arte, formas, volumes, espaços, movimentos, materiais, a busca de uma precisão técnica através de uma pesquisa incisiva e paciente por esses terrenos. Como vê essa leitura sobre a sua obra?
São as ferramentas que tenho nas mãos. As questões teóricas servem para dar uma orientada, não tenho preocupação, e, sim, prazer. As referências históricas estão nos livros. O percurso da arte para mim é livre como a água das grotas que percorre os rios levando para o mar os sais da terra.
Como é deflagrado dentro de você o seu processo de criação, uma imagem, um material, um gesto, uma palavra?
O olhar dos movimentos rítmicos, um atleta, um dançarino, a música (percussão), faço essa relação com o tridimensional. O som para mim tem a ver com a pintura, com a poética da cor. É um gesto, uma escrita, caligrafia, o Oriente dentro do Ocidente, Kandinsky, Duchamp, Brancusi, Rodchenko, Max Bill, Jesus Souto, Torres Garcia, Rubem Valentin, Agnaldo dos Santos, Mario Cravo Júnior e muitos outros importantes artistas que vislumbram em minha cabeça. Assim como a fotografia e o cinema de animação têm favorecido para uma leitura do contemporâneo, garimpando nos resíduos fagulhas de realidades, a exemplo do jornal, dos objetos utilitários e descartáveis, junções estas de formas e agrupamentos de elementos sequenciados (madeira).
Junto à sua obra nas artes visuais, você é professor e coordenador das oficinas do Museu de Arte Moderna da Bahia, e há uma geração mais nova passando por este caminho. Fale um pouco sobre esta atividade docente e este contato como os mais jovens.
São de utilidade pública, prestam serviços à sociedade. É um espaço diferenciado do contexto, livre e gratuito, assim como todo ensino público. Portanto, devem ser preservados e dotados de condições necessárias ao bom funcionamento. É gratificante por existir nas relações e nas interações, processos laboratoriais de trocas, e espaço aberto sem divisões e inter-relacionamento das atividades específicas. Observa-se a existência de um trânsito interno que circula por todos os processos com escolhas independentes em graus e níveis de conteúdos. O aluno é o artista e o artista é o professor.
(entrevista agosto/2007)