O visível em sua dualidade de ver e olhar diante de uma superexposição e uma pluralidade de meios e linguagens, dos mais variados caminhos, fornece material para esta arte que se inicia pela composição da cena (ou será a compra destes materiais?), o ato fotográfico, a pintura a óleo. Com ele, a reflexão, a análise, a crítica, num processo para que a obra neste trânsito até o espectador se ponha numa tensão vinda em seu começo do imaginário pessoal do artista em sua encenação, até se materializar como pintura, onde diante da superfície em suas imagens realistas a pergunta se revele: “o que é a realidade?”, “o que é o real?”. Diante desta pintura, discute-se o visível ou a distorção do visível, onde se faz precisa esta frase do artista: “Eu gosto da pintura que ao primeiro olhar se parece com a foto, mas nos próximos segundos isso logo se desfaz, e a pintura se revela. Dessa maneira, vou criando o contorno do real dentro da minha obra, como uma espécie de realidade paralela, essa zona de fronteira entre a pintura e a fotografia. Na minha pintura, a realidade é reinventada, manipulada; é uma realidade subvertida. Eu não uso imagens preexistentes – eu crio imagens para que essa imagem se torne pintura. A construção do real dentro da minha obra, eu a quero como uma espécie de realidade paralela, essa zona de fronteira entre a pintura e a fotografia”.
Fábio Magalhães nasceu em Tanque Novo, Bahia, em 1982. Vive e trabalha em Salvador. Ao longo da carreira, realizou exposições individuais, a primeira em 2008, na Galeria de Arte da Aliança Francesa, em Salvador. Na sequência, Jogos de Significados (2009), na Galeria do Conselho, O Grande Corpo (2011), Prêmio Matilde Mattos/FUNCEB, na Galeria do Conselho, ambas em Salvador; e Retratos Íntimos (2013), na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro. Foi selecionado para o projeto Rumos Itaú Cultural 2011/2013. Entre as mostras coletivas estão: Convite à Viagem – Rumos Artes Visuais, Itaú Cultural, em São Paulo; O Fio do Abismo – Rumos Artes Visuais, em Belém (PA); Territórios, Sala Funarte, em Recife (PE); Espelho Refletido, Centro Cultural Helio Oiticica, no Rio de Janeiro (RJ); Paraconsistente, no ICBA, em Salvador (BA); 60º Salão de Abril, em Fortaleza (CE); 63º Salão Paranaense, em Curitiba (PR); XV Salão da Bahia, em Salvador (BA); e I Bienal do Triângulo, em Uberlândia (MG), entre outras. Entre os prêmios que recebeu, destaque para Prêmio Funarte Arte Contemporânea – Sala Nordeste; Prêmio Aquisição e Prêmio Júri Popular no I Salão Semear de Arte Contemporânea, em Aracaju (SE); Prêmio Fundação Cultural do Estado, em Vitória da Conquista (BA), e Menção Especial em Jequié (BA).
Em seu trabalho, há um processo anterior ao trabalho que vemos. Desde um esboço, ou pelo menos um deflagrar mental, passando pelo açougue, na compra de carne e vísceras para consumo humano, a instalação ou uma performance em sua encenação dirigida para o ato de construção de uma imagem através do embalsamar com plástico (uma outra carne?), chega-se à fotografia, e desta à pintura em grandes telas. Todo este caminho faz parte da obra. Mas só vemos a tela. O que pode nos dizer sobre este percurso, a sua relevância e seu esconderijo na obra feita como pintura?
Na minha obra existe uma espécie de achatamento dessas etapas. Por isso apresento como etapa final uma imagem em óleo sobre tela. Os procedimentos anteriores, como encenação, fotografia, entre outros recursos utilizados, são mecanismos que surgem a partir de uma ideia construída por mim. Nesse sentido, essas etapas ficam condensadas, não sendo necessária sua descrição separadamente. Pretendo com isso apresentar imagens que possam alcançar significações quando vistas pelo outro.
Descreva estas etapas, não como etapas ditas acima, mas como processo sensorial para que obtenha a sua pintura.
As etapas de produção da minha obra são definidas a partir de estratégias criadas para construções sensitivas que emergem de histórias vividas ou vivenciadas em nosso cotidiano. Isto se difere, por exemplo, dos processos sensoriais presentes na obra de Lygia Clark e do Oiticica. Meu processo criativo é desenhado por uma tríade que identifico por três momentos: encenação, ato fotográfico e pintura. Entre um e outro momento, existem qualidades visuais e significados que são transformados e ressignificados. Algumas sutilezas, por sua vez, estão presentes na dimensão, nos valores cromáticos, na espacialidade da composição, entre outros elementos que tornam visível o que podemos sentir ao ver uma imagem.
Neste processo sensorial, procura obter com suas obras metáforas de um imaginário pessoal? Qual seria ele?
Quando recorro ao meu imaginário para criar o que poderíamos chamar de metáforas de um corpo-imagem, acredito tratar de estratégias que uso para aproximar o universo particular e o senso comum da natureza humana. Ao apresentar essas imagens em pintura, pretendo chamar a atenção para as ações, muitas vezes incompreensíveis, que o homem vem se deparando em várias partes do mundo, estejam elas próximas, distantes, ou em estado virtual.
Seu trabalho parte de algo concreto, a figura, mas chega a distorções desta realidade. É um trabalho da figura e não figurativo com esta sua realidade inventada, manipulada, subvertida? É sua esta frase: “Eu não uso imagens preexistentes – eu crio imagens para que essa imagem se torne pintura”.
Meu trabalho parte de uma imagem idealizada, pensada para existir em pintura, por isso uso esta frase para afirmar que crio cenas para que as mesmas se tornem pinturas. Estas cenas são construídas com elementos reais, como o sangue, por exemplo, pois necessito observar a “vermelhidade” do vermelho para agir como pintor. A pulsão dessa cor me conduz quando aplico a tinta sobre a tela.
Há neste processo também a utilização de fotografias de partes do seu próprio corpo na cena que constrói. Aliás, seu corpo é um elemento fundamental para a dramaticidade das cenas. Vida e obra, obra e vida se constituem um só corpo para você?
O uso do meu corpo, em algumas cenas, se dá por estratégias técnicas, não se trata de uma referência autobiográfica. Penso num corpo-imagem, uma espécie de avatar, onde o observador possa atravessar essas imagens e refletir sobre as relações existenciais: homem-animal, vida-morte, civilização-barbárie, ordem-caos, entre outros.
Posteriormente, as imagens fotografadas chegam à pintura. São retirados ou acrescentados elementos, e num feito que, mesmo com toda a técnica, está distante de ser uma reprodução da realidade. A técnica é impecável, traços, cores, volumes, espacialidade. O que de emoção e de sentimento possui esta última parte em suas imagens recriadas? Ou seriam criadas? De subjetivo e simbólico? Anteriormente temos a carne e o corpo, com você na imagem. Isto se constitui uma memória do corpo?
Todas as etapas são importantes para minha obra; contudo, o ato de pintar é o momento que realizo escolhas que são próprias do fazer pintura realista, são escolhas meticulosas e calculadas. Cada camada de cor adicionada à tela é conduzida por observações que requerem atenção constante. Assim, as imagens vão sendo criadas. A subjetividade surge do encontro da imagem apresentada e aquele que a vê, uma obra que se abre para múltiplas interpretações a partir da memória individual e da alteridade.
O corpo é uma obsessão? Ou um desejo? Um suporte? Ou a sua desconstrução é que permite com suas partes exibidas a construção de sua poética?
As imagens que pinto são ideias que surgem para a criação de um corpo-imagem; talvez se possa dizer que se trata de um replicar da natureza humana. Nas composições pintadas, acrescento elementos que poderiam ser de um corpo, mas com essas ações proponho uma subversão daquilo que entendemos como o “ser” e seu corpo. As pinturas para mim são como lugares para devaneios em imagens, mais que um suporte.
Estamos diante de uma pintura que cria uma espacialidade sem abdicar das referências originais de uma imagem preconcebida?
Penso o espaço pictórico como lugar de acontecimentos, um lugar sem regras, onde crio minhas próprias regras por meios de escolhas que surgem no ato da pintura ou nas proposições esboçadas anteriormente. Dessa maneira, imagens são redimensionadas e inseridas numa espacialidade pictórica.
Você fala de seu processo como “simulação do ato”. Estamos diante de uma ficção onde a simulação da “cena” vem a se dar e a se reproduzir questionando sobre a “representação”. Já foi dito como uma tendência significativa de “adulteração” da imagem e “desordenação” do real?
A simulação de uma cena para o ato fotográfico é um método que uso para materializar ideias pensadas para cada série, percorrendo caminhos técnicos até atingir seu estado de pintura. A pintura realista que apresento como resultado do meu processo criativo funciona como um elemento perturbador daquele que a vê.
Em 2014, Superfícies do Intangível traz o duplo nas imagens duplas. Um jogo de espelhos. Há uma afirmação sua de que seu trabalho fala do “irreal, das coisas que não se veem”. Pode falar sobre isto? De ser a imagem produzida antes e depois – no sentido de que, desde a fotografia até sua leitura posterior, a intervenção do autor é constante?
Quando falo do irreal no meu trabalho, estou querendo apresentar determinadas condições psíquicas que se fazem presentes no “ser”, e comum a todos nós. Assim, na série Superfície do Intangível, o espelhamento de um “Narciso cego” desvia para outros entendimentos sobre o duplo e jogos dos espelhos, pois, com a aproximação do seu duplo nas obras, anulo a tangente que determina o encontro entre imagem e reflexo.
Ao mesmo tempo em que a sua arte não “representa”, ela apresenta uma visão pessoal, subjetiva, do artista sobre o objeto retratado. Para alguns você é um pintor hiper-realista. Outros já acham que, em sua poética, está à procura de um fato visual. Como você se relaciona com estas definições? Definições que abarcam, desde a observação sobre seu apuro técnico até as condições subjetivas em sua pintura. Vê como possível definir sua pintura como reflexões pessoais sobre a arte e a atualidade, construída por esmerada técnica da cor, de metáforas e associações? Uma obra na sua imagem resultante de imagens para que a obra exista como visualidade?
Eu uso a técnica de pintura realista com o objetivo de criar uma perturbação visual na realidade. Fatos que nunca existiram, mas que são passíveis de serem vistos como reais ou possíveis interpretações associativas em cada um. A cor, a técnica e as imagens resultantes alcançam o Outro, e fazem ressurgir outras imagens arquivadas na memória de quem as ver.
Este cruzamento de etapas, para poder entender e se fazer entendido, sentir e ser sentido, não poderia também se transformar num work in progress de seu trabalho? Um outro trabalho para ser apresentado só ou conjuntamente com as telas? Uma videoarte?
Cada etapa do meu processo criativo é conduzida por uma ideia; contudo, os procedimentos adotados até aqui contribuem para novas descobertas que são condensadas numa única imagem: a pintura. Neste momento, a apresentação desta em pintura é minha principal maneira de expor a obra. No futuro poderão surgir outros projetos nos quais a pintura pode dar lugar a outros meios.
Desde 2011 você cria a construção de um real em si, dentro da obra, numa fronteira no primeiro momento entre a pintura e a fotografia, nas séries Superfícies do Intangível, Latências Atrozes, Fronteiras do Devoluto, O Grande Corpo, Retratos Íntimos. Em todas, temos a técnica, o processo, a fatura. O que os limites da percepção e de seu processo na arte estão a realizar agora?
Penso que o real não se cria, ele existe. Faço pintura para materializar ideias. Com isso, acredito que minha produção artística poderá contribuir para reflexões sobre as realidades existentes em cada um e aquelas que poderão ser ativadas pelo encontro com a obra.