Cidade
Salvador, Bahia
Nascimento
1979
Perfil
Pintor

Anderson AC, 1979 – Salvador, Bahia, vive e trabalha em Salvador.

Em seus projetos, o artista parte de algum objeto antigo em busca da construção de séries de trabalhos; são os objetos/portais, fios condutores que criam relações entre passado e presente, permitindo ao artista abordar questões históricas, não apenas a partir de uma mera e simples escolha, mas de questões impostas pelo destino, o que cria uma real ligação entre arte e vida, constituindo a ideia de que nada está solto no universo: tudo está ligado. O Artista tem na sua trajetória a participação no coletivo de grafite 071 crew, que realizou várias intervenções urbanas na cidade nos anos 2000. A partir de 2007 começou a se apresentar mostras coletivas, com destaque para a Original Vandal Style, única exposição do coletivo, além das mostras  03 Pontes na II Trienal de Luanda, a mostra Arte Lusófona Contemporânea no Memorial da América Latina em São Paulo, Afetos Roubados no Tempo, no Centro Cultural da Caixa, em Salvador e Muros, coletiva que reuniu 11 grafiteiros baianos na galeria do Ferrão no Pelourinho também em Salvador. Realizou residência artística em locais relacionados com suas origens, primeiro em Luanda, Angola, durante a II Trienal, que teve como temas as Geografias Emocionas – Arte e Afetos, e depois em Évora, Portugal, onde realizou sua primeira exposição individual. Realizou ainda mostras individuais em São Paulo, Galeria Sosso, e em Strasburgo, França, na galeria do Conselho da Europa. Sua penúltima exposição individual foi a primeira em Salvador, e se chamou O diário de bordo ou O livro dos dias, no ACBEU (Associação Cultural Brasil-Estados Unidos), em 2017. Em 2019 Anderson apresentou a mostra , Pintura Muralista, num dos pilares da resistência artística visual da arte negra no Brasil, o Museu Afro-Brasil em São Paulo.

Segundo Emanuel Araujo, curador e director do  Museu, “Anderson AC é um artista baiano proeminente com uma potente produção marcada pela pintura grossa e expressionista, e a relação entre murais urbanos e a consciência sobre as contradições de um mundo cheio de diferenças sociais, e estranhezas religiosas. 

Anderson AC é um dos novos nomes da arte baiana a integrar o acervo da Paulo Darzé Galeria. Seu trabalho utiliza de diversas linguagens como a pintura, o grafite, a colagem, a arte postal, o vídeo, a fotografia digital, a literatura, o uso de imagens e documentos familiares, vestígios, deslocamentos, documentos, relatos e imagens, memórias e registros pelos quais se desdobra numa constante intervenção artística para a criação das composições estéticas que servem de suporte para seus trabalhos, onde cria, desenha, cola, pinta, fotografa, interfere; onde questiona e discute processos, como um espaço de concepção, reflexão e desenvolvimento destas ideias; onde revela um conceito elaborado de vivência através da memória e da sobreposição de linguagens artísticas, na qual o caráter itinerante do processo de documentação dos fatos cotidianos cria o espaço de experimentação através de um diálogo entre arte e vida, de um cotidiano transformado em arte.

Expondo regularmente em festivais, bienais, trienais e mostras coletivas significativas, esteve na 7ª edição do SP-Arte, no pavilhão Bienal, Ibirapuera São Paulo, Anderson AC nasceu em Salvador, Bahia, 1979, onde vive e trabalha. Tem na sua trajetória a participação no coletivo de grafite 071crew, que realizou várias intervenções urbanas na cidade. A partir de 2007 começou a se apresentar mostras coletivas, com destaque para a exposição 3 Pontes na II Trienal de Luanda, a mostra Arte Lusófona Contemporânea no Memorial da América Latina em São Paulo, Afetos Roubados no Tempo, no Centro Cultural da Caixa, em Salvador e Muros, coletiva que reuniu 11 grafiteiros baianos na galeria do Ferrão no Pelourinho também em Salvador. Realizou uma residência artística em dois locais relacionados com suas origens, primeiro em Luanda, Angola, durante a II Trienal, que teve como temas as Geografias Emocionas – Arte e Afetos, e depois em Évora, Portugal, onde realizou sua primeira exposição individual. As outras duas foram realizadas em São Paulo, Galeria Sosso, e em Strasburgo, França, na galeria do Conselho da Europa. Sua última exposição individual foi a primeira em Salvador, e se chamou O diário de bordo ou O livro dos dias, no ACBEU (Associação Cultural Brasil-Estados Unidos), em 2017.

1) Há na sua obra uma intervenção artística como ponto de partida e a esta se juntam fatos cotidianos, entre outros, documentos, imagens, memórias, registros. Esta apropriação torna-se um conceito, uma forma de elaboração, um processo de criação?

Um processo de criação. Apesar de hoje a fotografia ser o ponto inicial da minha produção. É o modo de fixar não apenas através do meu olhar o instante, através deste registro momentos cotidianos nas cidades que visito, registrando momentos que posteriormente ilustram ou direcionam o espectador a uma questão específica. Ao apropriar-me destes registros, busco relacionar essa confluência à memória, ao transitório, à brevidade do instante na vida, instante que de certa forma é fixada no tempo pelas lentes da câmera.

2) Ao estabelecer a integração destas diversas linguagens como a pintura, o grafite, a colagem, a arte postal, o vídeo, a fotografia digital, a literatura, e o uso de imagens e documentos familiares na criação de suas obras, você considera este processo uma permanentemente busca da experimentação?

Vejo como isso o resultado de vivências, de experiência com diversos meios, um processo real de integração técnica entre desenho, colagem, fotografia, manipulação digital de imagens, a própria pintura de background – sempre com intervenções em tinta Spray como uma carga estético-relacional. Acredito que isso é mais um percurso processual do que puramente experimental.

3) Esta experimentação se produz primordialmente num diálogo cotidiano entre arte e vida? Ou há outras pontes?

Num diálogo entre arte e vida, com certeza. O que é experienciado necessita de tempo para ser fruído totalmente pela mente do fruidor. A construção de uma linguagem artística leva tempo, é uma luta cotidiana, demora até o momento de atravessar a ponte que o leva até o confronto [atelier] privado x público [galeria]. Toda ponte leva a um caminho, e a experiência vêm da experimentação das vivências, mas a eleição dos meios mais adequados, mais convenientes ao propósito de desenvolvimento de uma linguagem. Apesar de surgir do experimental, é definido e fixado cotidianamente, como ponte para se chegar ao caminho do não experimental, da linguagem definida.

4) Você disse sobre sua arte: “Nele crio, desenho, colo, pinto, e reúno vestígios de experiências dos lugares pelos quais passei, e das pessoas com as quais convivi, a qual vi e fotografei, como um acesso documental à memória, por onde abrigo ideias que geram novas ideias, e ideias que geram novos trabalhos, como um espaço de concepção, reflexão e desenvolvimento destas ideias. São obras da minha vivência em cidades como Salvador, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, Natal, Luanda-Angola, Lisboa, Porto e Montemor-o-Novo, em Portugal”. Este é o percurso de formulação de sua criação estética? Ou um percurso? É a composição estética que utiliza como suporte para a pintura e outros trabalhos?

Uma ressalva. Este percurso se refere ao projeto [O diário de bordo ou O livro dos dias] desenvolvido entre 2007 e 2017. É nele que coleto vestígio de vivências nas viagens pelas citadas cidades: guardanapos, bilhetes de cinema, museu, trens e metros, tudo serve de registros de instantes, que aliados às imagens feitas na cidades, norteia de que maneira interfiro naquela imagem, naquele instante. Assim, diversas intervenções foram feitas no próprio livro, desde recortes e colagens à ilustrações em aquarela e nanquim. Essas intervenções dão origem a outros trabalhos como os de pinturas em grandes dimensões e os grafites, resultando na construção de um percurso.

5) Há uma temática na sua pesquisa atual relacionada com sua história pessoal e a de sua família. Descendente de portugueses e africanos, em um intervalo de cinco anos você perdeu seus pais e irmão, este último em uma trágica situação. Sua arte, que traz fatos, busca resgatar a memória de seus antepassados e rebater o sentimento de perda e de dor? A referência visual de suas obras incorpora fotografias antigas da família e objetos ligados ao seu passado, a sua memória. A força de sua arte precisa desta emoção? Da emoção da memória?

Na realidade, tudo isso que você fala norteou meus trabalhos entre os anos de 2008 e 2012. Nesse tempo, a referência visual de minhas obras incorporou fotografias antigas da família e objetos ligados ao meu passado, à minha memória familiar. A última mostra em que apresentei trabalhos explicitamente ligados à família foi a Paraconsistente, em comemoração aos 50 anos do ICBA na Bahia, em 2012. O sentimento que me fez trazer essas fotografias para o meu trabalho de pintura configurava uma espécie de renascimento no mundo, um reexistir sem aquele núcleo. Era apenas eu e o mundo. Meu trabalho revelou essa transformação, porque eu já não era a mesma pessoa. Eu era uma pessoa em busca de Liberdade, uma liberdade que só o fazer arte me daria. Mas essas obras carregam os vestígios de memória mais sutis, e igualmente densos, e importantes.

Por exemplo, o meu pai era gráfico, trabalhou por mais de 15 anos na gráfica de um Banco baiano que faliu nos anos 90, constantemente trazia materiais artísticos para mim, revistas e impressos as quais eu fazia diversas colagens e desenhos. Conversávamos sobre papel e suas gramaturas, texturas, modos de impressão de gravação, reprodutibilidade. Eu ficava impressionado quando visitava a gráfica, sua dinâmica, sua velocidade, o processo de montar as fontes tipográficas. Tudo isso sempre me atraiu e acredito que em certo modo incorporei seus conhecimentos gráficos e por isso elegi uma estética mais gráfica na minha obra. Por ter uma vivência urbana própria desde o inicio dos anos 90 ligada ao skate, a pichação, e, posteriormente, ao grafite, apropriando-me do aspecto do stencil, técnica que me permite a transposição das imagens dos seus núcleos originais para as paredes das cidades.

Da minha mãe cito a família, que me trouxe o gosto pela cultura, pela memória, a oralidade, a casa cheia de livros, desde sempre, os contos de Sherazade e as Mil e Uma Noites, as visitas aos Museus e Teatros desde muito cedo com minhas tias, e as ruas, estádios, praças, feiras e bairros com meus tios. Minha mãe era uma sertaneja de família rica que perdeu os bens ao longo de sua infância. Sua juventude foi dura, mas nunca se apartou da vivência cultural que herdou da família, fazendo questão de transmitir a mim e ao meu irmão toda a bagagem cultural que possuía. Mas o que restou mesmo foi as historias sobre a família e sua singularidade; a memória e as histórias de seus antepassados, além de um acervo de documentos hereditários, correspondências, fotos, bilhetes, postais. Acervo esse, que posteriormente tornaram-se substrato dessa fase da minha obra que se desmembra no interesse pelo passado, pela memória, e que se dá a partir também dessas experiências contidas na minha história, e não por uma busca de uma emoção que se relaciona à perda e à dor.

Esta emoção que surge após a morte dos meus familiares e que se desdobra na pintura das imagens de algumas pessoas da minha família, se configura mais como celebração da existência, do tempo, celebração da vida, dos trajetos e cruzamentos de memória, interligando passado e presente como algo contínuo. Lembro que na viagem a Portugal vivi um diálogo que ressignificou esteticamente e conceitualmente minha produção ligada à memória familiar – me disseram que todas as palavras que iniciam com AL na língua portuguesa são de origem Árabe, e que este Al era referente ao artigo A, na língua árabe. A partir de 2013, iniciei a serie de aves, aonde desde então venho pintando diversos pássaros, tecendo uma trama árabe, uma referência à ressignificação do sobrenome Alves, o sobrenome da minha família maternal, e à minha relação estética com a memória familiar e, consequentemente, com a primeira e segunda infância, com as brincadeiras nos quintais, os contos de Sherazade e as Mil e Uma Noites que, por diversos momentos, embalou minha imaginação e criatividade. Por ocasião, deixo aqui a metáfora traduzida por ela em seu as mil e uma noites: “a liberdade se conquista com o exercício da criatividade”.

6) A exposição Álbum de família foi a primeira individual, em São Paulo. Você nasceu, vive e trabalha em Salvador, estudou Artes Visuais na Universidade Federal da Bahia, porem sempre diz que é do autodidatismo e das ruas de onde vem boa parte de sua criação. Que ela se inicia nas ruas, através do grafite. Contudo, você também está em galerias, faz mostras em galerias, e, atualmente, transita a sua obra mesclando a pintura, a fotografia, à instalação, e utilizando de técnicas hibridas de impressão e colagem, aliando passado e hoje. Como elabora este trânsito?

Acredito que de maneira natural, sempre estive na rua, sempre brinquei muito na rua, de bicicleta, de skate, bola, gude, arraia [pipa]. Cresci em uma rua onde aconteciam apresentações de grupos ligados ao movimento punk; cresci vendo as intervenções visuais, os grafites e os eventos que eles organizavam, passando a observar a cidade desde cedo – os muros e suas inscrições e os espaços públicos. Sempre persegui a máxima dos Punks do “faça vc mesmo mesmo”. Trabalhei no mercado modelo como ajudante de atelhador. Atrelado a essa atividade, participei das oficinas do Mam-BA, fiz aulas de escultura em Madeira com Zú Campos, desenho com Isa Moniz, história da arte com Almandrade, e, posteriormente, ingressei em Belas Artes. Mas, em determinados momentos nos deparamos com questões emocionais que mudam os nossos rumos, o modo de ver o mundo, a direção que se toma. E, após o assassinato do meu único irmão, em 2008, fui levado, enquanto artista, a produzir em um rumo diferente da trajetória prioritariamente urbana, a qual vivia desde 1991, e que era ligada ao skate, a pichação, e, posteriormente, ao grafite e a outras intervenções da street art que vinha realizando desde 2003. Esse rumo diferente seria o momento quando saio das ruas e começo a produzir no ateliê (2008), o que tornou minha produção mais intimista, refletindo a necessidade de sair das ruas, me recolher e mergulhar no processo de entendimento da minha relação com o mundo sem aquelas pessoas já idas.

Desse modo, em 2008, mergulho na minha memória familiar, e isso resultou no desenvolvimento de uma série de trabalhos com documentos antigos e fotos da minha família. Inicialmente trabalhei com a tipografia, e projetos específicos com molduras de títulos antigos, aliados à fotografia de membros falecidos da minha família, para criar composições visuais que resultaram em pôsteres, e uma pintura dos meus avós realizada com stencil, exibida no altar da Sala do Capítulo, do Convento de S. Francisco em Montemor-o-Novo, Portugal. Nessa ocasião, tais trabalhos foram apresentados na exposição individual A Busca, que fez parte do projeto de residência artística itinerante em Portugal, em 2010, mesmo ano que participei de residência artística na exposição 03 Pontes na II Trienal de Luanda, onde realizei murais com stencil e grafites na Cidade de Luanda. Esses dois projetos junto com a exposição Álbum de família me levaram a exaustão do tema, e em 2013, decidi trabalhar exclusivamente no DB (Diário de Bordo).

Esses projetos me fizeram acessar memórias esquecidas, não apenas familiares, mas da minha infância, do inicio da adolescência, das brincadeiras na rua, das descobertas nas ruas, do universo que girava em torno do skate, da pichação, das vivências com o movimento Punk nos anos 90 e como essas vivências alimentaram e construíram esse autodidatismo que cito. O trânsito dá-se dessas vivências e da participação de encontros, palestras e conversas com nomes representativos do universo artístico brasileiro, tais como Lisette Lagnado, Charles Watson, Ana Pato, Agnaldo Farias, Marcelo Rezende, Fernando Oliva, Ayrson Heráclito, Daniel Senise, Renata Lucas, Josué Matos, Cristiana Tejo, Moacir dos Anjos e Almandrade, o que me fez olhar minha produção com distanciamento e imparcialidade, me auxiliando na construção desta trilha.

7) Sua última mostra foi na Galeria Acbeu, em Salvador, com o título O diário de bordo ou O livro dos dias. Foi sua quarta exposição individual e a primeira em Salvador. A mostra teve como origem um Projeto realizado após encontrar nas ruas de Salvador uma agenda. Discorra um pouco mais sobre o processo deste trabalho, o encontro da agenda e o que o isto serviu como base ou possibilidade para a criação e efetivação das obras que surgem deste “acaso”?

A rua sempre me deu muitos presentes. Sempre encontrei suportes, materiais que assim que via na rua os levava comigo, obras do acaso, e assim também foi com O diário de bordo ou O livro dos dias, projeto desenvolvido numa agenda de 1979 [coincidentemente o ano do meu nascimento] encontrada nas ruas de Salvador em 2007, e transformada em livro de artista. Nele coleto vestígio de vivências nas viagens pelas citadas cidades: guardanapos, bilhetes de cinema, museu, trens e metrôs, tudo serve de registro de instantes, os quais, aliados às imagens feitas nas cidades, norteia de que forma interfiro naquela imagem. Assim, nessa agenda transformada em livro de artista realizei diversas intervenções, desde recortes a ilustração em aquarela, nanquim, algumas colagens, que resultam em outros trabalhos como pinturas em grandes dimensões e grafites. Este é o percurso de encontro com o acaso, e o desdobramento do acaso na minha obra.

8) O diário de bordo ou O livro dos dias é uma obra artística baseada no conceito de criação a partir do deslocamento e registros encontrados no citado livro-objeto e seus recortes, desenhos, pinturas e intervenções artísticas, sendo estes o ponto inicial para a elaboração de citada mostra. Com isto você questiona e discute processos interligados à memória, deslocamento e circulação, e carrega consigo conceitos de memória e deslocamento. Onde você situa estes trabalhos? Trabalhos de ruptura?

Sim, ruptura, mas não apenas ruptura, transição também. Ruptura com lapsos de memórias do passado e de transição, entre presente e futuro. A função destes trabalhos é o de construir novos diálogos com a memória atual, que se torna a memória passada em algum momento.

9) Você tem um projeto que apresentou no Club das Artes do Conselho da Europa, (inglês: Council of Europe, francês: Conseil de l’Europe) organização internacional fundada a 5 de Maio de 1949, a mais antiga instituição europeia em funcionamento. Os seus propósitos neste projeto são a defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social na Europa. O que é este trabalho? Como você situa seu envolvimento em questões humanas e sociais, não só como cidadão, mas através de sua arte? O alcance dela?

A defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social na Europa são propósitos do Conselho da Europa, organização internacional ligada aos direitos, mais antiga da Europa em funcionamento. Acho sempre difícil prever o alcance do trabalho. Acho que depois que ele sai do atelier, toma seus próprios caminhos.

No caso da individual apresentada em Estrasburgo, França, na Agora Galerie, pertencente ao Club das Artes do Conseil de L’Europe, no titulo em francês para O diário de bordo ou o Livro dos dias (Le journal de borde ou Le livre de jours) , situei a produção como um olhar para a memória do presente, através de um olhar para infância e para a juventude. Este presente formativo da personalidade, momento presente que se tornará futuro ao passar do tempo. Vislumbro isso como uma forma de plasmar um presente mais lúdico para jovens que estão a mercê de caminhos mais densos e inseguros.

Este conceito foi adotado apos a transferência definitiva do meu atelier para a região do Beiru, no Cabula, região de periferia de Salvador. Ao adquirir o imóvel onde hoje funciona o meu atelier, as pessoas imaginariam que naquele espaço surgiria qualquer coisa, uma farmácia, uma igreja, um salão de beleza, um mercadinho, qualquer coisa, menos um atelier de pintura. Ao iniciar a produção, me impressionava sempre que abria as portas do atelier, o fato de muitos jovens e crianças, que apesar de ficarem fascinadas pelas cores e o processo criativo, não entendiam porque eu pintava, não entendia aquilo com trabalho, não entendia a importância da arte para a formação do ser humano. A única alternativa que muitos destes jovens veem é a vida do crime e as suas ofertas rápidas e mortais, o desejo de tornar-se jogador de futebol, ou dançarina de um dos diversos grupos de pagode da cidade. Deste modo, realizar a série de obras que seria exposta no Conseil de L’Europe, sob a supervisão destes jovens, naquele ambiente, foi uma espécie de despertar para muitos deles, mostrando que existem outras possibilidades de existência, em ambientes mais amigáveis, mais justos, possível, mesmo que o mundo a nossa volta tente nos mostrar o contrário.

10) Há uma temática recorrente em seus trabalhos? Ou esta não causa diferença, buscando na linguagem o propósito maior de sua arte? O que é ser um artista visual hoje, em Salvador, e, por extensão, no Brasil?

A temática é a nossa brevidade. A transitoriedade da vida. Acredito que minha obra é sobre o homem e sua brevidade, sobre a permanência simbólica do que existe e deixará de existir, é sobre o instante. E sobre ser artista, em qualquer lugar. Acredito que é ser honesto com sua visão de mundo, é ser representante de uma estética própria que ilustra o mundo à sua volta.

11) Neste momento está trabalhando com algo que já possa falar sobre ele, ou ainda é um processo embrionário?

Sim, estou trabalhando num novo projeto, e já posso falar dele. Esse projeto concidentemente trata sobre os acasos, e como estes acasos vêm norteando minha produção artística. Ele surgiu após o encontro com mais um livro, desta vez nas ruas de Paris, pelos arredores do 3º Arrondissement. Foi lá que avistei uma lata de lixo com alguns muitos livros, alguns muito antigos, do século XIX. Uma lata inteira de livros. Adoraria trazer toda aquela lata, mas a impossibilidade fez com que eu trouxesse apenas três comigo, pensando em continuar a trabalhar com eles para novos projetos de livros de artista. Destes três, um me chamou atenção por conter muitas anotações, cartões postais e manuscritos, o livro é o Obras Completas, 1872, do poeta francês Emily Deschamps, poeta romântico, irmão do também poeta Antoine Deschamps, que ao lado de Victor Hugo, fundou o periódico “La muse Francaise”, em 1824. Ele é ainda um dos 99 poetas que contribuíram para a antologia Poética “Parnassus Contempornâneo”, com oito poemas no primeiro livro (1866) e três no segundo (1871), antologia que nomeou o movimento literário “Parnasiano”. Foi inovador desde sua origem: o primeiro volume contém “As flores do mal” de Baudelaire, e as primeiras obras de Mallarmé e Verlaine, além de iniciar Arthur Rimbaud na poesia de seu tempo, e definir estes e outros poetas como les mudittes.

Inicialmente, questionei essa experiência devido à relação que a França tem com seu patrimônio. Mas o livro e seus manuscritos estavam em minhas mãos. Não havia o que questionar. Era um Fato. Passei a vê-lo como um presente do acaso, uma chave conceitual que me abria uma porta temporal muito mais densa que O diário de bordo, projeto que me permitiu acessar um mundo novo, ao mergulhar numa pesquisa que se iniciava no ano em que nasci. Estar ali na França, em Paris, encontrando outro livro, muito mais antigo que o do ano de 1979, me permite acessar uma memória muito mais densa e impessoal.

O livro instigou-me a pesquisar a época, sua tipografia e materiais, o contexto dos poetas ligado aos períodos romântico e parnasiano, que é um momento de transformação no modo de fazer arte. Nesse período, os artistas passam a valorizar a arte pela arte, e haviam começado a pintar fora de seus ateliers a fim de captar a passagem da luz. Existia uma preocupação com a luminosidade. Isso pode ser notado pelos trabalhos impressionistas que são da mesma época, época também em que a fotografia ganhava espaço como ferramenta de documentação e meio de expressão, sem falar nos estudos de cor e luz que resultaram no pontilhismo, da pintura divisionista, e ainda a relação dos poetas maudittes com o contexto urbano e a figura do Flâneur que surge nesse período nos poemas de Baudelaire.

Foi nesse período (primeira metade do século XIX), que Paris sofreu uma remodelação que interferiu nos hábitos da cidade, tornando-se a primeira cidade com iluminação noturna, o que interfere na vida da cidade, oferecendo também vida noturna a seus habitantes. Isso também influenciou outras capitais em diversas nações. Esse contexto tem me influenciado no sentido de revisitar uma memória que não é só minha, mas da urbanidade, e que não deixa de fazer parte indireta da minha existência, permitindo-me ainda refletir diretamente sobre os acasos na minha vida. É uma espécie do que eu chamo de efeito delay [eco] dessas repetições, tanto no sentido das perdas e dos encontros de objetos na cidade, que também é próprio do flanar, do transitar, e que vem fortalecendo minha pesquisa ligada à memória da cidade, das pessoas, e das pessoas que fazem a cidade, suas texturas, a escrita urbana, suas tipografias, os ambientes, a cor e a luz, os acasos, a Vida.

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