Cabeças, homens flutuando, árvores, cifrões, carros, ramos de louro. Elementos simbólicos. Eles são recorrentes no trabalho Crendo que nas fronteiras estão limites muito cruéis, onde executa nesta sua série de pinturas em acrílica, desenhos de forma intuitiva, buscando um processo de “semitranse”, como o próprio artista define, ao realizar sem nenhum esboço prévio as figuras que vão se formando e as narrativas que vão surgindo desta sua linguagem de sonhos, criando um universo onírico e revelando informações codificadas pelo seu subconsciente. Geralmente, tais narrativas preenchem formas maiores, muitas vezes grandes cabeças ou molduras, que contêm e aprisionam pequenas fábulas. Nessa mesma série, desafia a técnica da pintura. Busca sua forma no avesso. Ao invés de depositar matéria para criar as figuras, faz um processo inverso. Primeiro cobre toda a superfície com tinta e, em seguida, trabalha com a remoção, para revelar as figuras que vão surgindo de forma inesperada, como se algo fosse sendo desvendado pelo inconsciente. Entre um trabalho e outro, mergulha no trabalho de suas cores. Ele considera essa série um descanso, um respiro, a não necessidade de ser tão profundo, de poder planar na superfície, na estética, na busca para um novo design ou se preocupar com o belo. Através das cores ele se permite esquecer as frustrações contemporâneas, se desconecta da pressão que torna a vida nas cidades modernas uma imperiosa condenação ao trabalho (muito), ao ganhar dinheiro (muito), ao obter sucesso (o que será que isto pode ser?), elementos que vivenciam o que se denomina profissional em detrimento do contato humano, a presença que, ao deixar de existir, produz o vazio espiritual. O Brasil, e nele a Bahia, é apenas um dos seis diferentes países em que já viveu, e o português é apenas mais uma das seis línguas que o artista fala. Com tantas referências históricas, geográficas e linguísticas, e diferentes culturas assimiladas, em seus sotaques, hábitos, virtudes e vícios que o cotidiano expõe a cada um de nós, Almo em sua arte questiona sua identidade, suas cidades, seus dias, e se faz estrangeiro por ter tornado o mundo sua casa, sua pele e sua cidadania, e na sua arte o seu salvo-conduto para explorar os mistérios que atravessam, seja como símbolos ou sonhos ou marcas da vida de cada um de nós.
Almo, Jorge Alberto Murilo, nasceu em Honduras, foi criado nas Filipinas. Vivendo no Brasil, Salvador, Bahia, desde 1999, hoje vive em São Paulo. Como formação acadêmica graduou-se em Desenho Industrial, concluído em 1997, no Instituto Europeu de Design, Milão, Itália. Tem formação incompleta em Arquitetura, pela Università di Firenze, Facoltà di Architettura e Politecnico di Milano. Em coletivas temos: 1993 – Edades Art Gallery, Davao, Filipinas; 1994 – Yap Gallery of Contemporary Art, Manila, Filipinas; 1995 – Yap Gallery of Contemporary Art, Manila, Filipinas; 1997 – Galeria Tortona, Milão, Itália; 1998 – San Fedele, Milão, Itália; 1999 – Galeria Tortona, Milão, Itália; 2002 – Galeria do Ebec, VI Mercado Cultural de Salvador, Bahia; 2003 – Projeto Ambiências, Sala de Arte do Baiano de Tênis, Salvador, Bahia; 2004 – Bienal Naïfs do Brasil, São Paulo, São Paulo; 2005 – Salão Regional de Artes Plásticas, Centro Cultural Adonias Filho, Itabuna, Bahia; 2006 – Galerie Zin, Delémont, Suíça; 2007 – Galeria do Goethe Institut, Salvador, Bahia; 2007 – La Villa Bayard, Sierre, Suíça; 2007 – Le Scandale, Genebra, Suíça; 2008 – Galerie Zin, Delémont, Suíça; 2009 -Galerie Zin, Delémont, Suíça. Individuais: 2007 -“Proximidades”, Galeria ACBEU, Salvador, Bahia – Prêmio Braskem Cultura e Arte; 2007 – “Proximitée”, Galerie Paul Bovée, Delémont, Suíça; 2008 – “Almo”, Hôtel de Ville, Fribourg, Suíça; 2009 – “10 X 20”, Galeria ACBEU, Salvador, Bahia; Paulo Darzé Galeria, Salvador, Bahia. Prêmios: 2005 – Primeiro lugar no Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia, Centro Cultural Adonias Filho, Itabuna, Bahia; 2006 – Prêmio Braskem Cultura e Arte, categoria Artes Plásticas.
O que sente no seu trabalho como herança da cultura hondurenha?
Eu nasci e morei em Honduras por um ano. Eu não tenho muitas memórias do meu país natal, porém acredito que a minha descendência, de um lado europeia e de outro indígena, maia, influencie o meu desenho. É possível.
Há quantos anos começou a fazer o percurso que o fez sair de Honduras e o levou a viver na Costa Rica, Filipinas, Itália e Brasil?
Em 1973, com um ano de idade, fui morar na Costa Rica e permaneci com a minha família até 1976, quando o meu pai teve a oportunidade de morar nas Filipinas. Chegamos durante a ditadura do presidente Ferdinand Marcos. Eu morei na cidade de Davao, no extremo sul do país, por oito anos, e, em 1984, me mudei para a capital, Manila. Em 1991 fui estudar Arquitetura em Florença, Itália. Mudei-me para Milão em 1993 para estudar Desenho Industrial. Em 1997 me formei e, por um breve período após a minha formatura, fui trabalhar nas Filipinas como consultor em design. Logo em seguida, voltei para Milão depois de ser um dos selecionados para fazer parte do primeiro estúdio de design avançado do grupo Fiat. Em 1999, com um forte desejo de criar no Brasil, decidi deixar a Europa e me aventurar na cidade de Salvador.
A Itália é o que o leva para as artes plásticas, mais precisamente Milão. Parece que isto tem vinte anos. O que o motivou neste momento para as artes plásticas? E o que fez como estudos ou pesquisas para iniciar? Há algum artista, através de sua obra, que o influenciou neste momento para esta decisão?
Eu sempre gostei de desenhar, era impossível que eu passasse mais de dez minutos sem esboçar algo, e desenhava até no ar! Na realidade, as artes plásticas me acompanham desde que eu tenho memória. Nas Filipinas a professora de inglês de minha mãe, por exemplo, é artista plástica. Além de colecionar as obras da artista/professora, a minha casa sempre teve uma mistura interessante de objetos decorativos e de arte. Isso tudo me influenciou demais.
O país onde vivia tem mais de oitenta dialetos, uma língua nacional e ainda falam inglês! Eu ouvia e falava cinco idiomas por dia e tinha colegas de origem espanhola, chinesa, norte-americana, centro-americana etc. E para melhorar ainda mais a mistura, eu vinha com a minha família para o Brasil todos os anos de férias, e, no caminho, parávamos pelo Japão, França, Estados Unidos, e fui saboreando todas as diferenças sociais e culturais.
Quando me mudei para estudar na Itália, eu tive a oportunidade de viajar com mais regularidade, e me fascinava a experiência de um dia sair de Frankfurt e no outro chegar a Hong Kong. As mudanças eram chocantes, comecei a entender por que as pessoas usam o termo “choque cultural”. E isso também me influenciou bastante. O meu traço e estilo sempre mudaram dependendo de onde eu me encontrava.
Milão foi uma grande surpresa para mim. Muitos me questionaram por que deixei uma cidade tão bela como Florença por uma cidade industrial e cinza como Milão. Acontece que fui muito bem recebido pela cidade. Milão não é uma cidade óbvia, é uma cidade para ser descoberta e eu gosto muito disso. Eu sou um observador. O curso de Desenho Industrial me ensinou a pesquisar, e soube aproveitar muito bem tudo o que me circundava. A atenção ao detalhe é algo que sinto que devo ao italiano e aos orientais.
O artista que me influenciou através de sua obra foi Gustav Klimt. Foi magnífico! Eu fiquei maravilhado com o frescor que os trabalhos comunicavam, apesar de terem mais de oitenta anos de idade! Eu me encantei com o seu uso do ouro, dos ornamentos, das cores! O seu estilo foi uma revelação.
Quando foi realizada a sua primeira exposição e onde?
A minha primeira exposição foi realizada na única galeria de arte da cidade de Davao, nas Filipinas. Um artista amigo da família me convidou para uma exposição coletiva, em 1993.
São dez anos de Bahia. Neste período veio a ganhar prêmios e realizou exposições. Pode falar sobre isto?
Foi aqui na Bahia onde comecei a me dedicar e a levar mais a sério o meu trabalho. Comecei a desejar expor. Fui convidado para expor durante o Mercado Cultural. Eu também fiz uma exposição que me deu a oportunidade de mostrar os estilos diversos do meu trabalho no antigo Baiano de Tênis, mas confesso que tinha ficado decepcionado e frustrado com a falta de oportunidades para expor o meu trabalho. O Salão Regional de Artes Plásticas me foi uma grande oportunidade, primeiro pela forma entusiasmada que os meus trabalhos foram recebidos, o curador selecionou todos os trabalhos que mandei, e depois porque terminei ganhando o prêmio principal. O salão ainda me deu a oportunidade de conhecer outros artistas consagrados e isso me deu um novo estímulo a continuar trabalhando.
Outra consequência do salão foi que alguns visitantes suíços viram o meu trabalho e me propuseram uma exposição. Dois anos depois, fui fazer uma exposição individual a convite da prefeitura da cidade de Delémont, capital da região das Juras, na Suíça. Eu também fui um dos vencedores do Prêmio Braskem Cultura e Arte em 1996, que, além de ser um dos mais prestigiosos, me permitiu realizar uma exposição completa e individual, sem restrições financeiras. Pintei o espaço de preto, usei backlights, apliquei adesivos nas vitrines da galeria. Foi um grande aprendizado e uma ótima oportunidade para promover e desenvolver o meu trabalho. Em seguida, participei de algumas coletivas em Salvador e no exterior. Em 2009, resolvi comemorar os meus dez anos na Bahia expondo trabalhos mais recentes e inéditos.
Hoje, como cidade, gente e cultura, a Bahia está incorporada em seu trabalho de que forma? Cor? Tema? Pesquisa? Estudos? O quê?
A Bahia se incorpora ao meu trabalho de todas as formas. Tudo ao meu redor me influencia: a pobreza, a riqueza, a violência, a injustiça, a beleza do mar, da natureza que nos resta, a exuberância do céu, a mistura dos habitantes, os sons e ruídos da cidade, tudo termina afetando o resultado do meu trabalho.
O dia-a-dia termina se comunicando no meu trabalho, seja em forma de texto, seja como imagens de situações. Eu me desabafo nos meus desenhos. A Bahia me encanta e me desencanta simultaneamente, isso termina me dando intermináveis temas para ilustrar.
Quais artistas são de sua predileção hoje?
Os que me vêm à mente neste momento são: Takashi Murakami, Ang Kiukok, Caetano de Almeida, Richard Serra, Lucian Freud, Francis Bacon, David Hockney, Jean-Michel Basquiat, Tarsila do Amaral, Vik Muniz, Edward Hopper, Tunga, Andy Warhol, Beatriz Milhazes, Sophie Calle, Cindy Sherman, Elizabeth Peyton, Maurizio Cattelan, Anish Kapoor, Chris Ofili, Bruce Nauman, Cildo Meireles, Paul McCarthy, Jeff Koons, Chuck Close, Nam June Paik, Robert Rauschenberg, Gerhard Richter, Helio Oiticica, entre outros.
Seu trabalho tem como base um desenho minucioso e bem elaborado. É do desenho que parte toda a sua criação artística? Ou de uma temática?
É do desenho que parte toda a minha criação artística. Mesmo no caso de uma temática como as minhas cabeças, existe a silhueta; no interior o desenho controla todo o percurso e conteúdo.
Com o desenho, seu trabalho ganha uma composição e adquire símbolos e signos muito próprios. Pode falar um pouco sobre estes? De onde surgem estes símbolos e signos que povoam as cabeças?
Os símbolos e signos que povoam as cabeças surgem do cotidiano, da nossa sociedade do consumo. Dos objetos que nos circundam, e que desejamos e acreditamos serem necessários. São objetos que ocupam gavetas, geladeiras, estantes, escritórios, praças e estradas que afetam o nosso dia a dia. São objetos que nos tornam mais felizes ou tristes e que vão se acumulando enquanto nós chegamos e partimos. Os símbolos e signos também não deixam de ser homenagens à nossa genialidade. Da forma que nos comunicamos através de língua falada, da beleza da escrita e do seu som. Eu homenageio a manufatura, o design belo dos objetos através dos meus desenhos.
Com o desenho, os símbolos e signos, você chega a resoluções técnicas de fundo e de figura, num jogo de abstração no primeiro e de formas geométricas ou humanas no segundo. Como se estabelece este equilíbrio? Que recursos você utiliza para efetivar este contraste? Quais as resoluções técnicas fundamentais para estabelecer sua pintura?
O equilíbrio vai se estabelecendo com o passar do tempo. As camadas de tinta, as texturas que se formam e o vazio que permanece em alguns espaços determinam o caminho na evolução do meu trabalho. Eu também estabeleci alguns ícones que termino repetindo nos meus trabalhos, como a cadeira, os números, as letras e as silhuetas. Alguns trabalhos meus, e não importa a dimensão, levam até dois anos para ser concluídos. Eu uso os recursos da diversão, da pesquisa no uso dos materiais e de respeito total ao tempo necessário para uma obra ser concluída. Eu preciso estar com muitos objetos ao meu redor para estabelecer a minha pintura. Eu também gosto de trabalhar em mais de um trabalho, e chego a trabalhar até em cinco obras simultaneamente. Termina sendo um desafio divertido, o que é fundamental no meu trabalho.
Chegamos ao uso das cores. Há nos seus trabalhos muitos em preto e branco. Por sinal, muito bem realizados. É uma predileção trabalhar no P&B? Ou a cor também estabelece o desafio do trabalho?
Os trabalhos coloridos são, sem dúvida, muito mais dinâmicos na sua realização. Mas no caso das obras em preto e branco, que são de ritmo muito mais lento, existe sempre a surpresa dos elementos que vão se materializando, e não tenho uma predileção nos meus trabalhos. Depende muito da minha vontade, e do material que estou usando naquele momento.
Todo o seu trabalho, seja em tela ou em papel, é feito em acrílica? O que mais é incorporado como elementos para que ele exista, além da tinta, se temos alguma incorporação ou referências neste suporte?
Todo o meu trabalho é feito em acrílica. Eu tenho o hábito de acumular objetos, principalmente os que eu sinto que podem ser acomodados pelas minhas obras. São pequenos espelhos, cristais, metais, adesivos, transfers, medalhas, peças antigas etc. Eu tenho mania por objetos que brilham e tenho que me cuidar para não levar para casa os cacos de vidro que encontro pela estrada!
Como sente seu trabalho no estágio em que ele se encontra? Que caminho sente estar percorrendo após dez anos de Bahia, dois prêmios, exposições, e uma crítica bem favorável?
Eu quero realizar mais exposições, e ampliar a minha rede de contatos no Brasil e no exterior. Os prêmios me dão força e segurança para continuar produzindo.
Por que a assinatura do seu trabalho tem como nome Almo?
O meu nome completo é Jorge Alberto Morillo Doria. Aconselhado por uma numeróloga chinesa, passei a assinar Almo, que são as primeiras duas letras de Alberto e Morillo.
(Entrevista / janeiro 2010)