Como materiais, o mármore, o granito, o bronze e a madeira. Como formas, volumes e vazios, com luzes e sombras, e uma geometria algumas vezes abstrata. Nas suas superfícies lisas, formas compactas, em límpidos espaços criados pelos cortes, eliminações e sínteses, acarreta uma tensão entre tradição e modernidade, e fazem das esculturas de Evandro Carneiro “um instrumento de busca da beleza”, como disse o crítico Marcus Lontra Costa, ou nas palavras da escritora Lélia Coelho Frota “um escultor que tem a consciência da mão e a entrega ao inconsciente do instante, ativo em plena pós-modernidade, e que através do motivo aparentemente tão simples e milenar do corpo, fala de Eros como um ritual de passagem que remete às origens da vida”.
Composta de 26 esculturas em granito, bronze e mármore de Carrara, com dimensões variadas e tendo o corpo humano como principal temática, o título da mostra é ‘Universo Feminino. A exposição traz no catálogo textos de Frederico Morais, Myriam Fraga, Lélia Coelho Frota e Wilson Coutinho.
Um universo densamente feminino / Frederico Morais
Na obra de Evandro, a presença da mulher é avassaladora. Esculpidas em mármore ou granito, modeladas em gesso ou bronze, as mulheres reinam absolutas. Elas aparecem sentadas, arqueadas, de perfil, em repouso, classicamente apolíneas ou dionisiacamente barrocas, maternais, mas também lânguidas e fogosas, deixando-se consumir em marmóreas labaredas. Ás vezes, são apenas torsos, reclinados, desfilantes, empilhados, como índices numéricos. Ou cabeças, com “fundidos cabelos”, cacheados, trançados, de perfil clássico, helicoidais, ou que se fragmentam, ainda mais, em ancas graciosas e seios que se multiplicam onírica e magritianamente sobre o corpo. Mulheres: japonesas, africanas, tigresas, sabinas, tanagras, siamesas, eva-serpente, eco clamando por narciso, vênus dacostianas, de formas calipígias. Enfim, mulheres que não reluta chamar pelos nomes – danielle, marcella, melania, sirena, anne, patrícia. Neste universo densamente feminino, o homem é pouco mais que um apêndice, ainda que desfrutando de poder e força física: generais, centuriões, guardiões de algum obscuro templo, narciso – que, surdo aos apelos de eco, contempla sua própria imagem no espelho d´água -, heliastas reunidos ao nascer do sol, e apolo e dédalo, e ícaro, e midas, e netuno, inexoravelmente presos a seus destinos de seres mitológicos. Escultor de estirpe clássica, Evandro aqui também cumpre o destino que já havia sido traçado por Jorge de Lima em conferência que pronunciou na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1935: buscar “o mais alto plano poético, que é uno, invariável, adstrito aos grandes temas, pois somente estes podem originar obras duradouras”.
Corpo feminino como ritual de passagem / Lélia Coelho Frota
Mantém-se entre nós, como de resto no mundo inteiro, o espaço restrito para a escultura, que Luis Marques já observara no Brasil pós-20, ao escrever sobre Brecheret: “o de uma sociedade avara de monumentos, dos quais essa arte depende.”
Por isso é bom ver confirmada no trabalho de Evandro Carneiro a vocação para a escultura que, interrompida durante vinte e um anos – desde a sua formação precoce aos 14 anos de idade, com Ivan Serpa e Ione Saldanha, continuada na tradição acadêmica com uma aspiração ao desenho clássico na antiguidade – é retomada agora com a coragem de quem já viu o melhor do que se fez em arte e resolve enfrentar os seus antecessores fortes, como coloca Harold Bloom para o jovem poeta, ao falar da angústia da influência que todo artista experimenta ao abordar a questão da criação, o mergulho revelador do passado, ou melhor, no já feito, é o desafio pulsante no dualismo tradição/modernidade, o enfrentamento vivo do enigma daquelas forças de que falava Klee, que nos fazem “um com o universo”. Essa é a porta estreita pela qual deva passar todo criador, para dali trazer, projetando-a à frente, a experiência dos predecessores acrescida da sua…
… Evandro Carneiro não foge à pedraria do caminho da criação e enfrenta e ama – na busca e nos resultados da sua expressão pela escultura – antecessores fortes, como Maillol, Boccioni, Brancusi, o próprio Bracheret, pintores como Rego Monteiro e Wilfredo Lam, os mestres do nu japonês e das grandes tradições tribais africanas. Os aspectos arcaicos do tribal vão atraí-lo cada vez mais, nessa longa e sentida representação da arquetipia do corpo feminino. Inicia-se em 91 a sua série de composições longilíneas, de aspecto totêmico, com o predomínio de curvas torsas, e superfícies tão polidas e tratadas como o artefato que cai do céu no filme ‘2001 do kubrick. A serena sensualidade anterior presente no seu trabalho, sempre contida pelo limite do arquétipo, e que coexiste com o domínio da técnica, vai aos poucos se transmudando em colunas inquietantes, orgânicas, já agora quase sacralizantes, totêmicas mesmo, na sondagem de um eros/mulher abissal, hermético, primevo: o eros da fonte da vida, com se vê nas sirenas em bronze (1992) e granito (1992), e na extraordinária ‘femina’ (1992), para arquearem-se mais ainda nas bailarinas e ameaçadoras formas de enigma (1992).
Estamos diante de um escultor que tem a consciência da mão e da entrega ao inconsciente do instante, ativo em plena pós-modernidade, e que através do motivo aparentemente tão simples e milenar do corpo, fala do Eros como um ritual de passagem que remete às origens da vida.
Materiais: mármore, granito, bronze, madeira. Na exploração dos materiais e da matéria, suas esculturas são formas que, por seus volumes e vazios, luzes e sombras, de uma geometria algumas vezes abstrata nas suas superfícies lisas, compactas, de límpidos espaços criados pelos cortes, eliminações, sínteses, acarreta uma tensão entre tradição e modernidade. Fruto de uma formação que privilegia o domínio da técnica para com isso poder efetivar uma precisa execução. Buscou no aprendizado e numa formação metódica, através do ensinamento da história das artes e do estudo dos grandes mestres, na admiração pelos gregos, pelos renascentistas, e o que ele próprio diz: “Aí a viagem é total” – assemblages de Picasso, trabalhos de Brancusi, Henry Moore, Calder, o polonês Igor Mitoraj, ou os brasileiros Brecheret, Bruno Giorgi, Maria Martins, Ceschiatti, Mary Vieira. Suas esculturas primam percorrer neste caminho por um equilíbrio, por uma harmonia, pela sobriedade, principalmente pela falta de ornamentos. Em quase todas elas, há a predominância da figura humana como temática, especialmente a feminina, onde pode ser vista a sua sensualidade e o seu erotismo.
Evandro Carneiro nasceu no município de Visconde do Rio Branco, Minas Gerais, em 1946. Vive no Rio de Janeiro. Estudou na Escola Nacional de Belas Artes e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Desde 1987 vem realizando individuais de sua obra, tendo executado trabalhos públicos em grandes dimensões no Rio de Janeiro e São Paulo, e sua obra integra os seguintes acervos: Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro; Museu das Esculturas do Parque Catacumba, Rio de Janeiro; Parque de Esculturas, Recife, Pernambuco; Centro Empresarial BarraShopping, Rio de Janeiro; e Museu de Belas Artes, Santiago do Chile.
1) “Queria ser um artista de formação clássica”. Esta é uma afirmação dada como sua, e dela podemos extrair uma primeira pergunta: o que é determinado na sua fala como clássico?
Clássico, como o termo sugere, indica aprendizado e formação metódicos, obra equilibrada e harmônica, com sensível predominância da forma sobre o conteúdo, sem excessos de ornamentação, primando pela sobriedade.
2) Clássico, então, indica uma formação com domínio da técnica, saber o aprendizado, dominar a execução através dos ensinamentos que a história da arte e os mestres proporcionam pelo estudo?
Isto tudo o que você diz na sua pergunta, mais uma grande tranquilidade de não ter que explodir e reinventar o mundo cada vez que fosse apenas desenhar para meu prazer.
3) Seguir este clássico indicava um caminho a seguir?
Não havia esta predeterminação, apenas uma necessidade de aprender a fazer, mas são coisas que percebi hoje, na época fluía naturalmente.
4) Esta opção, logo quando de sua entrada na Escola Nacional de Belas Artes, em 1964, coincide com todo um momento de efervescência cultural e de um domínio das vanguardas, do experimentalismo na arte. Não foi esta opção uma contramão no que estava sendo feito?
Naquele tempo eu buscava crescimento, o que em alguns é rápido, em outros é lento, e em muitos nunca acontece. Este é um processo individual. Aos dezoito anos, alguns fazem opções; a maioria, como eu, apenas estuda. E todo o momento é de vanguardas e experimentalismos, porém em arte as coisas não são obrigatoriamente simultâneas, tangidas pela busca do original. Morandi passou sua vida inteira pintando pequenas naturezas mortas, despretensiosas e belas. Era contemporâneo de Picasso, Duchamp, Kurt Schwitters, Francis Bacon e quantos mais houver. Um não invalida o outro. Todos são extraordinários em suas individualidades. Nenhum deles trabalhou competindo com o tempo. Arte é atemporal, em todos os aspectos.
5) Na sua trajetória houve uma parada de trabalho, com retomada em 1987, com uma exposição, e disto passou a realizar esculturas em bronze, mármore, granito, madeira, diversos materiais “nobres” neste segmento da arte, e variedade de temas, com certa ênfase na estatutária grega. Este apreço ou escolha temática tem uma razão de ser? Economia expressiva? Despojamento formal? Há um motivo específico para tal? Ou estas formas clássicas permitem uma execução que é necessária uma forte e sólida base técnica?
Tem minha grande identificação pela “economia expressiva” do “despojamento formal” pelo “motivo especifico” de ter “sólida base técnica” para utilizar “formas clássicas” em minha linguagem.
6) Hoje, passados quarenta anos, como sente ter dito esta frase, o que ela acarretou como definição para seu fazer artístico, opção estética, e como vê sua trajetória diante dela?
Esta frase confirma meu acerto. Após dezenove anos sem fazer esculturas ou um simples desenho sequer, retornei ao ofício sem maiores dificuldades, porque tinha régua e compasso.
7) Ao se falar em escultura “clássica”, logo vêm à mente os gregos, mas clássicos também os há na Renascença italiana e em outros períodos. Pode identificar na sua obra quais seriam então estes momentos clássicos que o influenciaram ou o influenciam até hoje? Ou, por outro caminho, quais os clássicos que tem como referência?
Admiro muito os gregos – tudo, dos cicládicos aos helênicos e clássicos e inclusive as pequeninas e frágeis tanagras; os retratos romanos, os renascentistas – aí a viagem é total: os Pisano, sobretudo Nicola e Giovanni “com suas cantorias”, Donatello e Verocchio. Estou fazendo, já há alguns anos, uma escultura que se chamará “Colleomelata”, que se baseia e, humildemente, junta duas das mais extraordinárias esculturas equestres renascentistas. O Colleone de Verocchio (Veneza) e o Gattamelata de Donatello (Pádua). Gianbologna, Luca della Robia, Cellini e, naturalmente, Michelangelo, que desconfio que fosse um E.T. Gosto muito do barroco Bernini e dos neoclássicos Canova, Rude e Carpeaux. De Rodin e Medardo Rosso, que conseguiu fazer, por incrível que pareça, esculturas impressionistas, coetâneas ao movimento francês, não no sentido da cor naturalmente, mas da leveza e evanescência. Picasso escultor, sobretudo por suas assemblages entre 1910 e 1915, que abriram um enorme portão para tudo o que se fez depois: Archipenko, Lipchitz, Giacometti, Boccioni, Duchamp, Duchamp-Villon. Brancusi e Henry Moore. Gosto muito também dos italianos Marino Marini e Giaccomo Manzu, e dos americanos Calder, David Smith e Louise Nevelson. Do espanhol Chillida e do polonês Igor Mitoraj, que vi dele uma grande exposição simultânea no Museo Archeologico e no Jardim de Boboli em Florença, que me deixou de queixo caído. Enfim gosto muito dos brasileiros: Brecheret, De Fiori, Bruno Giorgi, Maria Martins, Ceschiatti e Mary Vieira. Todos estes citados aí em cima para mim são grandes clássicos.
(entrevista / novembro de 2007)