Abertura da exposição
A mostra “Arranjos” será inaugurada no dia de 22 de julho, terça-feira , às 19h, e ficará disponível para visitação até o dia 23 de agosto, na Rua Dr. Chrysippo de Aguiar, 8, Corredor da Vitória.
Na exposição “Arranjos”, Bernardo Conceição nos convida a pensar a concepção etimológica da palavra arranjo, tomando as vivências do seu cotidiano manifestadas em sua produção artística. Os deslocamentos produzidos pelo artista, nesse balaio de cores e sabores, ativam sentidos que expandem nossos encontros com abundâncias e amores.
Os arranjos podem ser compreendidos como uma constituição de elementos que se organizam a partir dos acordos, combinados e contratos. Ditos e não ditos. Finitos e infinitos. Elementares na configuração social do povo brasileiro, eles se expressam nas mais distintas dinâmicas e diferentes formas. Bernardo Conceição nos convida a pensar a concepção etimológica da palavra “arranjo”, tomando as vivências do seu cotidiano manifestadas em sua produção artística. Os deslocamentos produzidos pelo artista, nesse balaio de cores e sabores, ativam sentidos que expandem nossos encontros com abundâncias e amores.
Mergulhados na herança negra, na diáspora, os traços que se figuram nas suas obras revelam um mar de memórias e apresentam contornos simbólicos daquilo que é cura e alimento, afeto e conhecimento, amor e sustento. Característica marcante de sua produção, o artista explora a amplitude da poética da negrura mediada por uma temporalidade do agora, que, em seus versos em cores, aponta traços de um Brasil de fato. Ao compor linhas guias expressivas representadas nas peles negras, incorpora nos elementos pictóricos o retrato de um povo que é marcado por atos de cuidado e amor, que advêm da terra, do sol, do mar. Persistente em explorar códigos desde a repetição, estrutura atos dialógicos em formato de convite para se ver o que não se pode olhar de uma só vez. Essa tática determina retornar à presença negra que se conecta e conflui em vibrantes contextos sob as nossas cabeças e corações. As histórias contadas pelo povo negro brasileiro apresentam modos de vida em detrimento do cânone racista que parece insistir sobre nossos corpos e vidas. Contra os terrores da intolerância religiosa aplicados e acentuados na contemporaneidade, as religiões de matrizes africanas na diáspora, nessa terra pindorâmica chamada Brasil, têm sido resistentes. No candomblé, umbanda, jurema, entre outras manifestações da religiosidade negra e diaspórica, inquices, voduns e orixás entidades de nações bantos, jejes e iorubás introduzem no mundo formas outras, olhares outros, a partir da afirmação da presença viva e pujante de uma afrorreligiosidade na cultura brasileira. Confirmado no Ilê Axé Odé Yeyê Ibomin, que é regido pela senhora dos rios, cachoeiras e águas doces, protetora da fertilidade e maternidade, da sedução e do amor, e pelo protetor da natureza e dos animais, compositor da fartura, abundância e prosperidade, quem possui sabedoria e astúcia no jogo, uma certeira e única flecha, encontra nesse espaço de afeto e cuidado as novas coisas que sempre acontecem.
Nesse arranjo afrodiaspórico que é a composição de uma oferta ao mundo, Bernardo, que é filho do senhor das folhas e ervas, guardião dos mistérios e dos encantamentos, e da senhora dos ventos e tempestades, nos alimenta com suas obras expressivas, identidades daquilo que se vive em um cotidiano de uma pessoa de terreiro, enquanto movimento de cura, força e coragem. O artista transmuta em cores, gestos e contornos as energias e os encantamentos que nasceram com ele. Lança o convite para se viver o que acontece de outra forma, para entender o mundo e para sair do nublado. Os Ìtans, nos arranjos dispostos pelo artista, na composição dessa exposição, contam narrativas que nos possibilitam apreender dinâmicas de um mundo outro que pouco experimentamos, mas que aqui saboreamos ao compreender que nossas peles, ontem alvas, não são mais a barata carne negra do mercado. No perene exercício do convite à contemplação, daquilo que grita em nós, o percurso para o qual Bernardo Conceição nos chama à atenção está nos detalhes daquilo que ele afirma na poética do encontro. A fartura das seletas folhas, flores, frutas, enquanto mantos sobre a pele negra nos trabalhos “Manto de Providência”, “Genuinamente meu”, “Feira de quarta”, “Vivo do que tenho”, “Semear o chão” e “Tudo que preciso para parar de chorar”, expressa um conjunto de vetores sobre os quais o artista vem se debruçando em sua pesquisa, que é a representação das pessoas negras e brasileiras sendo alimentadas pela abundância, e não mais pela escassez.
As composições “De mães diferentes” e “Para não cair sozinha” revelam o mais natural aprendizado da herança diaspórica: o ato coletivo do amor e do afeto, para permanecer de pé. “O sol e o amanhecer” e “Para não se afogar, mergulhe” dimensionam olhares e não olhares, que, manifestados em um tempo conduzido por tempos de respiro, expressam a dimensão do zelar, do cuidar e do acolher. “Pássaro Bonito”, “A imagem das nuvens no vento”, “Sentindo a luz do sol”, “Quem vê pensa que é raso”, “Costurando com luz a escuridão”, “Oyá de Shirley”, “Histórias do mar”, “Livre ninguém pode me segurar”, “Duas cabeças” e “Para fazer milagre” são, como as demais obras, um convite ao lugar de ser, pertencer e entregar ao mundo uma historiografia daquilo que sempre esteve dentro de si: os arranjos para uma nova vida e um novo viver. As dinâmicas simbólicas que encontramos em suas expressões visuais revelam encontro com a pluralidade daquilo que somos enquanto pessoas negras, pois negro é lindo! Conforme sinaliza outro poeta da arte, Jorge Ben Jor, diante das nossas características e essencialidades, nós, pessoas negras, constituímos a maior parte da população brasileira e, na constituição desse conjunto de obras sedimentadas do artista, observamos a nossa tão plural beleza. Temos verificado no decorrer da construção das visualidades no Brasil arranjos de uma ampla difusão da produção artística negro-brasileira, porque pessoas negras são artistas.
O Museu de Arte Negra, movimentado por Abdias Nascimento; A Mão Afro-Brasileira: significado da contribuição artística e histórica, organizada por Emanoel Araujo; Histórias Afro-Atlânticas, desenvolvida por Hélio Menezes, Ayrson Heráclito, Lilia Moritz Schwarcz e Adriano Pedrosa; Dos Brasis: arte e pensamento negro, dimensionada por Igor Simões, Lorraine Mendes e Marcelo Campos, proposta por Deri Andrade; Afro-Brasilidade, condicionada por Paulo Herkenhoff e João Vitor Guimarães, entre outros trabalhos, sejam coletivos ou individuais, revelam intencionalidades poéticas e políticas que têm sido produzidas ao longo do tempo pelas mãos de pessoas negras. Envoltos em arranjos de frutas, folhagens, espelhos e linhas guias de vida, atravessados por dinâmicas simbólicas e referências sincréticas, o que se propõe nesse universo de práticas de encontros com nossos signos e sentidos dinamiza movimentos para olhar para os rostos e corpos dos negros brasileiros. Nesse percurso, o sentimento de esperança que o artista compartilha para as nossas cabeças e corações, com abundâncias e amores, são os arranjos, para comermos e nos alimentarmos de vida. “Arranjos” é mais uma composição nesse universo de formulações que têm sido fundamentadas no campo das artes visuais. “Arranjos” é uma pesquisa centrada na elaboração de gestos, adornos e representações do torna-se negro cotidianamente, com irmandade e prosperidade. “Arranjos” é um portal em que opostos que se atraem e iguais se aproximam. Aqui, os arranjos são uma oferenda, uma partilha de comensalidades de Bernardo Conceição ao mundo.
LEONARDO MORAES
Rio de Janeiro, 21/05/2025
Bernardo Conceição: entrevista a Claudius Portugal
1) Há na sua obra uma intervenção artística, uma maneira de enxergar o mundo, como ponto de partida através de fatos cotidianos, para uma forma de elaboração, um processo de criação?
Sim, a minha arte para além de autobiográfica ela é fruto de pesquisa, de observação, da maneira como sou criado por essa cidade (Salvador), e a forma como eu observo essa mão afetiva da comunidade que construí aqui e que me educa e me constrói também.
2) Discorra sobre o processo de seu trabalho, o que serve como base ou possibilidade para a criação? Você considera seu processo uma permanentemente busca da experimentação?
Meu processo de trabalho é construído por diferentes nascentes, eu diria. Sou autodidata. A minha primeira aquarela foi aos 6 anos de idade e de lá para cá vem se transformando e amadurecendo junto com a pessoa e o artista que venho me transformando. Falando sobre o processo técnico ele é bem fluido. Eu tenho 26 anos. São 20 anos trabalhando e me especializando em pintura. Então eu já penso com um filtro artístico, vejo um sentimento um momento da cidade que quero produzir, e automaticamente esquematizo como isso seria na tela. Filosoficamente falando eu acho que meu processo é uma permanente busca pelo amor e pela experimentação de representação de diferentes formas de afeto. Pelo menos, é o que acredito atualmente, que o meu trabalho é uma extensa documentação e pesquisa de como amar em território brasileiro. Se enxergar amando no Brasil.
3) Há uma temática recorrente em seus trabalhos? Ou esta não causa diferença, buscando na linguagem o propósito maior de sua arte? Há em sua temática o fazer de uma arte relacionada com sua história pessoal? Há uma temática na sua obra atual ou anterior relacionada com sua história pessoal? Arte é vida? É um diálogo cotidiano entre arte e vida? Ou há outras pontes? Ainda na temática: Há uma forte presença humana, produzindo uma pintura expressiva, ao trazer a figura, em sua angústia e seu cotidiano, a uma posição central?
A temática que norteia o meu universo criativo com certeza é a da identidade brasileira. Muito me intriga esse rosto genuinamente brasileiro, nascido dessa mistura de etnias, amores e violências, uma equação na qual debruço o meu trabalho para experimentar e representar. A minha produção artística está totalmente atrelada a minha vida, ao que acredito querer ver do mundo, como um jovem negro e gay, esse lugar afetivo sempre foi algo a ser preenchido, e que o processo de pintura e construção artística me possibilitou explicar da minha maneira ao mundo. Muitas das minhas obras refletem momentos específicos que vivenciei, às vezes não na primeira pessoa, mas como observador, pesquisador da vida e das formas de se relacionar. A figura humana na minha arte tem uma posição central, justamente por serem os objetos de pesquisa do meu trabalho. Acho que a minha maior ambição enquanto artista é descobrir e registrar o que é ser brasileiro a partir das pessoas que constroem esse país, documentando os seus saberes. Acredito que a vida seja arte.
4) Sua arte busca no registro do cotidiano pessoal uma referência visual? A força de sua arte precisa desta emoção? Da emoção da memória? Da emoção do cotidiano?
Acho que um pouco de cada, sou uma pessoa negra, o que me constrói são as memórias de meus ancestrais. Eu sou um projeto de idealizações de liberdade e amor. A minha arte, assim como eu, é uma extensão disso, das emoções do cotidiano.
5) Desdobrando a pergunta anterior. Como se realizam estas imagens? Sua elaboração provém de uma intervenção artística sobre imagens da realidade, registro de fatos cotidianos, ou uma imersão na memória? É desta experimentação em linguagens e técnicas que se produz primordialmente um diálogo cotidiano entre arte e vida? Ou há outras pontes para chegarmos à sua arte? A sua pintura é a maneira de lidar com o que faz tentar entender o mundo, de ver o real?
Essas imagens nascem da minha vontade de registrar o mundo. Eu enxergo cada pessoa como um projeto de pesquisa. Na minha cabeça a vida nada mais é do que uma jornada de desenvolver ferramentas para viver e dentro desse viver existem os amores, as felicidades, as dores, as conquistas e as violências, tudo isso em confluência. Então essa história se arruma na minha cabeça e após o processo de escrita nascem do papel. A minha produção começa no texto e a minha cabeça arruma esse texto em imagens, então eu poderia dizer que na maioria das vezes as minhas obras nascem da necessidade de dar rosto e vida aos meus textos em outros suportes, são frames dos meus pensamentos.
6) Como você situa seu envolvimento em questões humanas e sociais, não só como cidadão, mas através de sua arte? O alcance dela?
Eu me vejo como um grande contribuinte nas questões sociais, principalmente no Brasil. Enxergo a minha arte como uma pesquisa potente de cura e disseminação de ferramentas para continuar amando num mundo violento. Sei que por si só a minha existência nesse mercado já é um grande discurso, mas sei que mais potente que a minha narrativa pessoal é o que o meu trabalho tem a dizer, a mostrar a esse país tão cheio de cicatrizes. Enxergo a notoriedade que o meu trabalho/pesquisa vem ganhando, como consequência disso. Essa dúvida sobre o que quer dizer “ser brasileiro” e “amar no Brasil” são questões que vão perdurar por muito tempo ainda, e a minha produção fica exatamente nisso: observar e representar ferramentas possíveis de existir amando nesse território
7) Quantas obras compõem esta mostra? Variadas técnicas? Alguma pesquisa o norteou sua produção nesta série?
São 20 obras que compõem essa exposição. Eu misturo algumas das técnicas que aperfeiçoei durante meus anos de estudo. Então vão conseguir observar aguadas em alguns detalhes, texturas pesadas de acrílicas entre outras. A pesquisa que norteia essa série é mais um braço desse grande projeto que desenvolvo a algum tempo, e que me debrucei sobre a palavra arranjo para criar uma relação entre as relações humanas entre o mundo e também com os próprios humanos, e isto partiu de observar a minha mãe de Santo, Odalice, e ver como ela vive de forma artística, como ela cria e fundamenta as coisas, às pessoas, o mundo. A forma que ela cria arranjos
8) E o momento Brasil? As circunstâncias de hoje nesta mostra?
Acredito que essa mostra tem muito a contribuir. Ela nasce após nove meses de observação missiva da comunidade em que há sete anos faço parte como filho de santo, o Ilê Axé Odé Yeyê Ibomin. Nela eu trago alguns fundamentos sobre afeto e prosperidade que adquiri e, mais precisamente, sobre como os arranjos são importantes para as relações humanas, em sentido figurado, como o de sintetizar a beleza da natureza, dos frutos, num projeto artístico entregue ao mar (um balaio, por exemplo,) como de forma literal, como nos arranjos entre as pessoas. Essas preocupações também são parecidas – como enfeitamos as relações humanas, dando a elas, corpo, dedicação, tempo, beleza…
9) O que é ser um artista visual hoje, em Salvador, e, por extensão, no Brasil?
É uma encruzilhada de sensações, ao mesmo tempo em que vivo o sonho de minha criança, a que aprendeu a pintar aos 6 anos. Mas hoje eu vivo os desafios do adulto que administra esse sonho em um cenário que, às vezes, me recebe de braços abertos, mas que em outras muitas me recebe dando as costas. Me sinto realizado com a minha trajetória e minhas produções enquanto artista e enquanto brasileiro. Então diria que ser artista visual no Brasil hoje é uma bala sabor tutti-frutti, às vezes, doce, na medida certa, e, às vezes, muito enjoada, mas seja o que for, é algo que minha criança sempre quis.