A Paulo Darzé Galeria estará de 3 a 7 de abril, na SPArte, Feira Internacional de Arte Moderna e Contemporânea de São Paulo, apresentando uma mostra com esculturas em madeira de Agnaldo Manoel dos Santos, no Pavilhão da Bienal, Parque do Ibirapuera, no stand G4, com 30 esculturas, tendo no catálogo a edição de um texto sobre artista escrito por Clarival do Prado Valladares, onde se pode ler sobre este escultor:
“O fato de seus trabalhos lembrarem ídolos africanos, por atributos denotativos, não implica na afirmação de ser arte africana. A escultura de Agnaldo Manoel dos Santos é apenas escultura brasileira. Ocorre, todavia, de nossa parte, certa dificuldade em identificá-la como tal porque quase toda aquela que é feita aqui demanda do gosto e dos anseios alienígenas. Poucas vezes me permito indicar escultura brasileira genuína, inclusive sobre o acervo religioso, a não ser em determinados exemplos de artistas primitivos. Para ser brasileira tem que ser representativa das motivações místicas que formam a genuinidade do nosso povo e o tipo de cultura que expressa”.
“Sob este aspecto é que Agnaldo Manoel dos Santos merece ser estudado. Sua obra de arte provém da amálgama dos valores artísticos aqui implantados pelos portugueses e africanos e aqui desenvolvidos em pleno sincretismo, como fenômeno paralelo da prodigiosa miscigenação que somos nós e que preservamos. Após indicar a miscigenação como esteio da realidade brasileira, pode-se indicar mais claramente a grande e definitiva qualidade artística de Agnaldo: o sincretismo. Sua temática é uma resultante dessa simbiose cultural que confere, no lavor primitivo, a presença de motivações e atributos diferentes. No seu exemplo a obra traduz o que ele era espiritualmente: o catecismo católico filtrando o animismo africano”.
Trajetória
Agnaldo Manoel dos Santos nasceu em 1926 na Ilha de Itaparica e faleceu em Salvador em 1962, aos 35 anos. Antes de ser artista, ainda na Ilha, trabalhou como lenhador e fabricante de cal. O primeiro contato com o mundo artístico foi quando contratado como ajudante e aprendiz no ateliê do artista Mario Cravo Jr., onde teve acesso aos materiais e técnicas usados pelo artista, assim como às fontes de inspiração da arte africana.
Agnaldo iniciou-se na escultura em madeira incentivado, além de Mário, pelos críticos Wilson Rocha e José Valladares, o fotógrafo Pierre Verger, e os aristas Lênio Braga e Jenner Augusto. A obra de Agnaldo é essencialmente produzida em madeira, com peças de grande variedade temática, da religiosidade afro-brasileira aos temas católicos. Agnaldo possuía um estilo único e característico, criando um estilo próprio.
Em 1957 participou da IV Bienal de São Paulo, ano em que montou sua primeira individual, na Petit Galerie, Rio de Janeiro. Em 1959 e 1961, participou do Salão Nacional de Arte Moderna. Sua obra integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ) e de diversos outros museus brasileiros. Em 1987, sua obra esteve presente na mostra Brésil Arts Populaires (Paris – França).
TEXTO DO CATÁLOGO
Clarival do Prado Valladares sobre Agnaldo dos Santos
Originalmente escrita pelo professor, crítico e historiador da arte Clarival do Prado Valladares para a Série Estudos, nº 2 do Centro de Estudo Afro-Orientais – CEAO, da Universidade Federal da Bahia – UFBa., em 1963, e reproduzida pelas mesmas Instituições na revista Afro-Ásia, nº 14, 1983, sob o título AGNALDO MANOEL DOS SANTOS – Origem e Revelação de um Escultor Primitivo.
Ao realizar, agora, em 2019, uma exposição em homenagem a este escultor baiano, a Paulo Darzé Galeria reproduz no catálogo da mostra o referido texto, escrito por um dos maiores estudiosos da arte brasileira, que o conheceu e vivenciou a sua arte, legando a todos nós neste escrito uma basilar fonte, um testemunho para o conhecimento preciso da arte e da vida de Agnaldo dos Santos.
A melhor maneira para se entender um artista primitivo é aquela de conhecê-lo em sua procedência, em suas motivações e na contingência que o faz manifestar-se artisticamente.
No caso do baiano Agnaldo Manoel dos Santos, o escultor primitivo e contemporâneo de mérito amplamente reconhecido, acreditamos ter sido possível um melhor entendimento de sua obra após conhecermos o local e o ambiente de sua origem, a história de sua infância e adolescência, seus infortúnios e venturas, seus anseios e sua conduta.
Agnaldo nasceu em dezembro de 1926, num lugar chamado Fonte de Beber, do vilarejo da Gamboa, em Mar Grande, na face norte da Ilha de Itaparica. Seu pai era um acaboclado muito alto, chamava-se Ignácio, nascera em Santa Bárbara e mudara-se para a Ilha por ser roceiro e lenhador. Ignácio bebia muito, morreu “vomitando sangue” aos 45 anos. Teodora, mãe de Agnaldo, nascida na Ponta da Pataca, de Mar Grande, tinha a pele muito escura como a de sua avó, chamada Gertrude que era africana. Teve quatro filhos, o último Agnaldo, e morreu aos 38 anos de febre e tremedeira, dois anos após ficar viúva. O fim da vida de Teodora foi de muita pobreza e desgosto, sem pedir aos outros, criando os filhos com o que tirava da pequena roça, arrendada, de mandioca. Sempre teve vida trabalhosa, casou-se ainda criança, com dez anos de idade, e quando morreu, aos trinta e oito anos, se sentia cansada. Sua filha mais velha, Aidê, casou-se cedo e foi morar no São Francisco. Hoje tem oito filhos. Jovelina, a segunda, mora em Mar Grande, tem dez filhos, enviuvou e se casou de novo com um operário de olaria. Orlando continua na roça da Gamboa, é solteiro e bebe como o pai. Agnaldo viveu em Mar Grande até os 18 anos. Começou a trabalhar de ganho quando tinha 10 anos. Fez curso primário com Mestra Santinha, uma senhora mestiça e idosa que ensinava primeiras letras e contas aos meninos da Gamboa. Era uma escola particular, de chão batido, de banco sem carteira, tinha ao todo cerca de trinta alunos, que iam às aulas descalços, e os mais asseados, de tamancos. Custava dois cruzeiros por mês e usava castigo de pancadas de régua. No primeiro dia Agnaldo levou uma reguada que lhe fez um calombo na testa, só para aprender disciplina.
O primeiro trabalho de ganho de Agnaldo foi na propriedade do dentista Dr. Juvenal Galvão, na Penha, uma fazenda de coco, caieira e de pequena criação de vacas. Seu serviço era carregar caçuá de coco e conduzir alimária. Dos doze aos quinze anos trabalhou com o tio Batula numa caieira da Penha. Era trabalho completo de homem: cortar e carregar lenha do meio da Ilha para a praia (três a seis quilômetros), pinicar lenha em medida de meio palmo e arrumá-la em pilhas de queimar cal. O seu segundo afazer para um mesmo fim era tirar blocos de arenito calcário dos recifes na vazante, para depois cortá-los em tamanhos menores e regulares com machado cego. As caieiras de Mar Grande são de dois tipos: a de pedra e a de cascalho. Esta última exige equipamento e instalações apropriadas, custosas, aproveita o depósito superficial crustáceo das marés, misturando-o a pó de carvão e queimando-o por vinte e quatro horas em grandes fornos de fogo soprado. A caieira de pedra em que Agnaldo trabalhou, é a de um sistema muito engenhoso e extremamente rudimentar. É descoberta no tempo, em chão liso e queimado, onde se prepara um leito de doze palmos de lenha, sobre o qual se arrumam os blocos cortados de pedra calcária em grande paveias de até seis metros de altura, tendo o centro aberto num bueiro de fachos de folhas secas de coqueiro. A arrumação dos molhos é feita pelas mulheres que trazem as pedras em balaios.
Agnaldo nos disse que de todo o lavor, mais gostava de fazer o corte dos blocos com um machado de pedra. Assim se adestrou no que ele chama de corte cego. De acordo com as marés, suas atividades mudavam: nas vazantes de mudança de lua, o mar se afasta a mais de duzentos metros, os barcos ficam reclinados no seco e as pedras se descobrem para o corte. Nas marés-mortas, vazante incompleta, não adianta se tirar pedra de onde já se tirou. O homem de caieira vai para o mato lenhar. Desde menino se aprende a trabalhar no mato e na praia e é preciso conhecer todos os segredos. Os lenheiros da Ilha tiram madeira para diferentes fins: lenha de fabricar carvão, pau de mastros, galhos para cavername e tábuas para coberta e fundo de saveiros. Tudo isto Agnaldo lavrou. Com Ignácio e Teodora, seus pais, plantou mandioca, aipim, milho na época, aprendeu a cuidar de coqueiros, a conduzir jegue de carga, abrir cacimba, e a reparar casa de taipa de chão batido e de coberta de palha.
Ele não teve vocação para marinhagem. Não suportava navegar nas marés de inverno de vento sul e de arrebentação nas barras. O mar o atraia na base da confiança. Ajudava nas pescarias dos veranistas e mariscava de facho. Caminhava nas vazantes, perdidamente, sobre as pedras emersas, abauladas, escarpadas, afiadas, cobertas de limo e eriçadas de pinaúna. Na enchente, o mar cobre os recifes, chega aos portões e coqueiros. Agnaldo gostava de vê-lo de dia, radioso, e de noite, maciço. Das pescarias lembra-se de um peixe enorme, um canapu de quase duzentos quilos, fisgado à noite num anzol de armação e morto na madrugada, a bomba. Era um monstro, preto no fundo das águas, de cara de gente, de beiço grosso e de olhos para fora.
Aos doze anos, homem feito para o trabalho e já conhecendo mulher, foi levado para o serviço mais duro, que é o da queima da caieira, a noite toda, das seis as seis. Passa-se a noite inteira com uma pá de cabo comprido apanhando e repondo pedras desgarradas. E preciso camisa de manga comprida para não se queimar nos braços. O molho vira um braseiro, o calor seca a boca e ardem os olhos. De manhã o fogo decresce e se deixa esfriar por vinte e quatro horas. Então vem uma turma pisar. Depois se puxa com enxada camada por camada, fazendo-se uma beirada que se pila com cepo grande manobrado por dois homens. O produto calcinado, ainda quente e depois de pilado, recebe “puagem” de água doce e fresca para desencaroçar. A cal está pronta para ser vendida e embarcada. E transportada em “tinas”, caixas de 52 litros, na cabeça, até a borda do saveiro. O carrego com maré cheia é penoso. A onda desequilibra. A tina não pode se molhar, a água entra pela boca, sufoca.
Em cada um desses serviços Agnaldo trabalhou. Aos dezessete anos todos reconheciam sua autoridade no fabrico da cal-de-pedra. Seu primo Bonifácio, mais ambicioso, convidou-o para explorar, em sociedade, uma caieira de Barra Grande. Esta empresa durou um ano e meio. Embora Agnaldo dominasse todos os problemas técnicos da indústria dura e primitiva, desde a mata de onde tirar a lenha, do coqueiro de onde tirar a palha, do mar, e do fogo de onde tirar a cal, nada, nada adiantou. Quase morreu de trabalhar e as coisas correram mal. Ninguém lhe fiava um carro de lenha, nem lhe alugava um jegue. As despesas complicavam as contas, tudo subia. A malária que contraíra desde criança e que lhe dava febre e tremor durante meses, cada ano, parecia piorar com a angústia. Apegou-se aos seus santos, fez devoção, bateu atabaque nos terreiros da Ilha, rogando proteção, nada, nada. Tentou financiamento de seus compradores. Foi possível, mas teria que baixar o preço da cal enquanto o custo de tudo subia. Desesperou. Abandonou a caieira, sua parte, suas ferramentas e numa manhã de chuva dos meados de 1946 tomou um saveiro e veio embora para Salvador.
Para entender-se sua escultura primitiva é de interesse se conhecer quanta disciplinação e aventura lhe foram necessárias no seu longo e árduo curso de homem de caieira. Quanto lavor teve ele que fazer para aprender a tratar a matéria – o corte da lenha e o corte da pedra – e quanto fogo teve que manter para obter o seu produto – a cal – que para chegar ao barco ainda tinha o mar a sufocá-lo.
Ainda hoje suas peças mostram a rusticidade de origem, a trajetória na revelação de um artista.
***
Quando Agnaldo saltou do saveiro de Mar Grande, na rampa do mercado, foi logo caminhando em direção ao Mercado de Ouro, a fim de pedir emprego ao Sr. Simões, da Casa Magalhães, sogro do Dr. Hélio Fróes, para quem trabalhara uma vez numa fazenda de cocos, na Penha. Obteve trabalho de carregador de trapiche, onde permaneceu por oito meses. Era um serviço pesado e monótono, de ganho bastante para passar, e sem futuro.
Seu resíduo de educação primária, aquelas poucas letras e operações aprendidas com Mestra Santinha, permitiram-lhe um trabalho menos pesado de apontador-auxiliar, ora dirigindo a descarga das alvarengas para arrumar no trapiche as grandes pilhas de sacos e fardos, ora desfazendo estas no carregamento de caminhões e saveiros.
Agnaldo tinha ambições. O trapiche era apenas um primeiro tempo de fixação em Salvador, mas não queria ficar enterrado ali, visgado naquele chão gosmento de açúcar e de sebo de charque. Tomou o segundo emprego com o engenheiro Aderbal Menezes, num almoxarifado de obras, por quase um ano. Esta experiência não lhe desagradou. Ganhou muito conhecimento de materiais de construção. Gostou de ver o trabalho do ferro no concreto, a betoneira, o preparo da madeira plana para as colunas, vigas e lajes, a armação dos andaimes de caibros, arame, e grosas de pregos que só servem uma vez. Por falta de obras ficou parado seis meses, fazendo biscates. Ia conversar com seu amigo Valdomiro, engraxate no Porto da Barra que, quando folgava, passava-lhe a cadeira e o serviço por algumas horas. Ali mesmo no Porto da Barra, Agnaldo encontrou um outro ganho mais atraente: o de cortar lenha a machado, desembarcada dos saveiros, preparando-a em feixes para a feira de sábado. Era um trabalho mais de sua afeição, embora o ocupasse apenas num dia e numa noite de cada semana.
Foi naquele tempo em que estava a biscatear no Porto da Barra que surgiu a oportunidade decisiva de mudar toda a sua vida, descobrindo-se para atividade artística.
A cadeira de engraxate de Valdomiro ficava encostada à porta das obras paradas do cassino da Barra, onde o escultor Mario Cravo Júnior instalara estúdio, de volta dos Estados Unidos. Nos fins de 1947, após ter feito a cabeça de Ruy para o Fórum, Mario fez exposição de trabalhos e ao concluí-la chamou casualmente Agnaldo para tirar as peças do caminhão para o atelier. Agnaldo pediu emprego e Mario admitiu-o como zelador-vigia, dando-lhe roupas e facilidades. O cargo de vigia era necessário, porque o atelier, instalado na construção inacabada do cassino, não tinha janelas nem portas de segurança e eram muitas as ferramentas e materiais de valor.
Mario ensinou-o a cortar mármore, manejar a prensa de gravura e outros trabalhos. Em 1951, Mario Cravo começou a trabalhar em grandes troncos quando esculpiu as conhecidas peças de madeiras – Cangaceiro, Capoeira, Omulu, Berimbau, Iemanjá, etc. – e esta foi à oportunidade de Agnaldo revelar talento ao seu patrão e amigo, pois o ajudando no preparo dos toros, desbastando-os e ajeitando-os, pegou gosto de dar forma na madeira. Muitas vezes o mestre e o aprendiz trabalhavam da manhã à noite e Agnaldo virava no machado como nos tempos de caieira.
Em 1952, Mario Cravo mudou-se para o seu atual estúdio da Linha de Cima do Rio Vermelho. Agnaldo rememora que o seu protetor tanto lhe ajudava no passar, como no se sentir bem, principalmente porque mostrava interesse por seu trabalho. Mario chamava a atenção de amigos, elogiava o “corte” do preto, e o incentivava a fazer qualquer figura. Terzo Lombardi sugeriu a Agnaldo fazer cabeças, como as dos ex-votos do sertão.
Pierre Verger deixou sobre uma banca de trabalho um livro de fotografias de esculturas africanas que Agnaldo diz intitular-se Afro ou Africo. Este livro marcou definitivamente a sua alma. Aquelas figuras e máscaras do Africo eram suas conhecidas, ou antevistas, ou pelo menos eram pessoas que “a gente pensa ter conhecido antes”.
E antes ele as vira no mato, no mar, no fogo da caieira, no povo da ilha, nas histórias de Teodora sobre Gertrude, na cara do canapu, nas pedras emersas da vazante, nos homens carregando cal até o saveiro e na enchente à noite.
Quis fazer uma, mas se acanhou.
Lênio Braga, um amigo de Mario, começou a fazer um Oxê em madeira e não soube terminar. Agnaldo pediu licença e concluiu-a. Ficou muito crua. Deu pátina. Pincelou zarcão e depois a queimou. Antonio Rebouças viu-a e logo comprou. Jenner Augusto deu-lhe coragem para novos trabalhos. Mario exaltava seu aprendiz a José Valladares, a Carybé, Wilson Rocha, a todos. Numa nova ausência do patrão, Agnaldo fez várias cabeças, pequenas, vendendo-as imediatamente. Uma, Octávio Mangabeira Filho comprou. Fez um Xangô, o seu quinto trabalho, que Jenner adquiriu e vendeu, com vantagem, a uma mãe-de-santo. Em 1953, Mário levou Agnaldo a São Paulo para ajudá-lo no transporte e na arrumação de suas peças na Bienal, esse nome estranho que por muito tempo pensou ser alguém interessado em artes.
De volta, Agnaldo não fez segredo de sua vontade de expor numa próxima Bienal. O espetáculo lhe agradara, seu mérito estava indicado no interesse sempre maior em torno de suas peças, ajuda não lhe faltava, o problema era produzir. Assim, encorajou-se para peças maiores.
Sendo empregado do estúdio, sua produção artística não podia ser nas horas de trabalho. Por outra parte, Mario instalou um fabrico de peças de metal para iluminação, a fim de pagar o preço das mesmas máquinas e equipamentos que eram necessários ao trabalho de escultor. Agnaldo queria fazer peças de madeira e naquele período Mario passava a se interessar por estruturas metálicas. O preço da madeira subira consideravelmente, fazendo Agnaldo aproveitar os toros de dormentes da linha de bonde e restos de cepos. Trabalhou muito com a madeira mais disponível e menos comercializada, como jaqueira, jenipapeiro, etc., com ou sem pátina, queimada a maçarico.
Seus trabalhos de 1953 a 1956 mostram influência da fase expressionista de Mario Cravo, bem como uma determinação de similitude à escultura africana.
Uma constante característica de suas peças desde então tem sido o aproveitamento do incidental como componente plástico; irregularidade da matéria, veios, fissuras, buraco de bicho, cunhas, tarugas, bifurcação do galho, etc.; são todos incidentes naturais que Agnaldo sabe resolver, incorporando-os à intencionalidade temática. A segunda característica, a partir daquela época, pode ser indicada no tipo de corte bárbaro e harmonioso, amplo e rico de indicações. A face resulta do entalhe descritivo e a figura de um plano externo para o interno. São cortes amplos, bem ordenados. Ainda uma terceira característica da primeira fase pode-se apontar nos recursos inventivos que aplica com arbitrariedade: pregos de duas polegadas, juntos, como solução descritiva de uma cabeleira; para uma face que lhe parece inerte, malha cicatrizes e furos; uma cabeça de Cristo teve a coroa de espinhos resolvida em cravos de ferro.
No 4º Salão Baiano de Artes (1956) Agnaldo teve seu trabalho aceito. Obteve “medalha de prata”. Em 1957, uma de suas melhores peças, “Figura e Pilão”, foi aceita pela 4ª Bienal de São Paulo, despertando interesse e atenção. Em 1958, expôs na coletiva do Forte de Monte Serrat, organizada por Vasconcelos Maia, na coletiva do Belvedere da Sé, e na exposição permanente do Museu de Ondina.
Tem tido convites de galerias particulares do Rio e de São Paulo onde obtém venda de trabalhos. O Salão Nacional de Arte Moderna de 1959 expôs três de suas pecas. Uma delas, “Três Irmãs”, de rica solução. Com o crescimento do mercado e com o seu casamento em 1957, afastou-se do estúdio de Mario Cravo, construindo em sua casinha, na Ladeira de S. João, no Rio Vermelho, um pequeno cubículo de menos de três metros quadrados a que chamou de atelier.
A razão que nos faz incluir estas anotações sobre Agnaldo Santos é a de ser de uma mesma procedência ecológica e artística, com iniludível similitude entre suas máscaras e as cabeças dos ex-votos, do comportamento arcaico.
Ele produziu para um mercado de arte assegurado por um amplo reconhecimento crítico e fez sua obra na mais completa liberdade de imaginação.
Vale anotar, todavia, que ainda mesmo assim a fez naquelas características indicadas do arcaísmo tribal africano.
E talvez seja por este aspecto que suas peças impõem ao observador o impacto do monumental, a dignidade do tema e um extraordinário reino de solidão.
A LADEIRA DE SÃO JOÃO
A Ladeira de São João fica no Rio Vermelho. Agnaldo Manoel dos Santos, o escultor, mora bem no meio, na casinha número 6. Vai-se pela Rua Garibaldi que é na linha do bonde de Rio Vermelho de Cima. Ou então se sobe a Ladeira do Papagaio e se vai por toda a lombada da montanha até a casa do Coronel Firmino, que logo se conhece por ter boa aparência, avarandada e gradeada, diferente das outras. Aí, dobra-se a esquerda e se começa a descer a Ladeira de São João. É diferente esta ladeira. É de degraus e patamares. Cada lanço dá cinco passos e sempre termina em dois degraus cimentados. Os patamares não são planos. São abaulados, calçados de pedra, guardam a forma curva da terra, parecem escamas.
Vai-se descendo em direção ao mar. As casas são criaturas de porta humilde, de duas janelas, tem sempre um número, gaiolas de passarinho, cacos de plantas, latido de cachorro, rádio ligado com programa esportivo, menino nu vadiando, moleque grande, mulher esperando homem. Vagueia na rua um bêbado que dá boa-noite de fino trato. Moça de vinte anos, moreninha, espia quem passa e repara. Um marinheiro entra na venda e pergunta endereço com uma carta. Amigos batem dominó. Suzete fecha a janela que não quer que se saiba a casa pobre em que mora. E as casas de duas janelas e uma porta, de fachada amarela, azul ou cor-de-rosa, continuam perguntando quem sou, o que vim fazer, se eu vim ver doente, se eu sou o médico da D. Francisca do Amor Divino que teve alta do hospital para morrer em casa. O homem gordo continua descendo degraus e patamares. Confere e entra no número 6. Era visita de “seu” Agnaldo. Ele é muito amigo de todos; tem nome, aprendeu a arte com “seu” Mario. Ali se casou e fez família, respeitado por todos que ninguém desconhece o cartaz que tem no Sul. Os brancos dizem: “Agnaldo é uma revelação”, um homem de Bienal, um artista conhecido e falado em varias partes do mundo. Às vezes os jornais falam tanto dele que até parece jogador de futebol ou cantor de rádio. O que Agnaldo faz não agrada a todos, uns dizem ser coisa de Exu, ele diz que não, que varia muito, os brancos apreciam, vez por outra junta uma porção daquelas figuras, faz uma viagem ao Sul, passa fora de casa uns três meses, volta feliz, amontoa madeira, cai no trabalho, não incomoda ninguém e a ladeira vela por seu artista até sair de novo para uma nova viagem e ausência.
***
Não estava em casa. Fora me esperar na casa de Mario Cravo Júnior. Pedi licença para ver suas peças. Dona Ernestina me mostrou a casa toda. Foi logo explicando que tinha quase nada, muita encomenda do Rio, de São Paulo. A casa pouco difere das outras, vista de fora. Dentro é que é diferente. Tem gravura de Hansen com dedicatória de colega, quadros de pintores primitivos, móveis funcionais e cinzeiros ameboides para intelectuais. Tem conforto, porém os cômodos guardam as dimensões da casa do pobre. Sua esposa, morena clara bonita, mostra as coisas com indisfarçável vaidade. Mostrou-me um quadro de várias fotografias de peças de exposição no Rio e São Paulo e no meio delas uma do moreno numa lambreta, em Copacabana, sorrindo com todos os dentes. Havia mais duas peças quase prontas no quartinho do fundo, no estúdio. Quartinho do tamanho da mesa de trabalho, com mais um pouco de espaço para as ferramentas, alguns toros e pedaços de dormentes desenterrados, uma moringa e uma caneca. “Essa – ela me explicou – é uma cabeça de Cristo, esses pregos são os espinhos da coroa”.
***
Saí da casa de Agnaldo, subi o primeiro patamar, os degraus, e entrei no mundo do artista. O seu vizinho bêbado estava me esperando apenas para dar um segundo boa-noite.
Bêbado de olhos estufados, de tristeza contida, de fim próximo aguardado com serenidade. Era uma figura de Agnaldo.
O filho de D. Francisca do Amor Divino me esperava na passagem de volta, conhecia-me do hospital, queria dar-me notícias. D. Francisca estava sentada num banco, toda inchada, com falta de ar, encostada na filha. O rosto inchado e suado da preta velha estava cheio de altivez e pronto à espera da morte. Era uma figura de Agnaldo.
Os três filhos, sentados, com as mãos no joelho, serenos, bem compostos no sofrimento e na prece, fazendo sala para a visita da morte, eram três figuras de Agnaldo.
De novo, subindo a ladeira, vi o marinheiro de volta, descendo lanços e degraus. Não tinha carta na mão, tinha notícias nos olhos. Era uma figura de Agnaldo.
Cheguei ao topo, ao longo caminho de volta. O escuro da noite. O espaço, fundo maciço. Espaço que a gente olha e ele vem vindo, ouvindo, olhando, respirando, pronto para uma escultura.
MESTRE FRANCISCO BIQUIBA GUARANI
Aqui estou escrevendo sobre alguém que nunca vi. Trata-se de Francisco Biquiba Guarani, carranqueiro do São Francisco, residente quase a vida toda na cidade de Santa Maria da Vitória, ancião de cerca de oitenta e cinco anos, de tez queimada, de cabelo ralo e grisalho, e de uma bíblia na mão toda vez que tira retrato.
Ele foi o segundo mestre de Agnaldo Manoel dos Santos. Há uns cinco anos Agnaldo acompanhou Franco Terranova numa excursão ao Médio e Baixo São Francisco com o fim de comprar carrancas. Desde a última guerra essas figuras de proa das barcas do rio começaram a ser procuradas por colecionadores e mercadores de arte. Precisamente quando deixaram de ser o amuleto das barcas contra o duende das águas, passaram a ser cobiça e preço alto.
A barca de carranca, pesadona e lerda, com tripulação de oito homens vareiros para movê-la de barranco em barranco, servindo de trapiche, de armazém, de empório, de despacho de encomendas, de meio de transporte de carga e gente, e de comércio de varejo rio acima e rio abaixo, não pode competir com a canoa motorizada de menor tripulação, mais rápida e mais maneira.
Por outro lado a considerável diminuição do paludismo – (o duende das águas) – apagou um de seus motivos. As grandes barcas de carrancas foram uma a uma se encostando às enseadas lamacentas, cambando de lado, despregando as tábuas e eriçando o cavername. Não eram mais as silhuetas de assombrações cortando as margens, a passo lento. Eram fantasmas em desagregação com as cabeças pendendo para dentro do lodo e as costelas apontando à flor d’água.
E enquanto elas iam se recolhendo e morrendo, suas cabeças eram procuradas para um novo destino. Compradores iam a sua busca tirando-as dos restos, da taruga da proa ou de dentro da lama.
Assim tornou-se um bom negócio para o velho e cansado escultor Francisco Biquiba Guarani recuperá-las das defuntas barcas e remetê-las para Agnaldo que, daqui de Salvador, endereçava-as ao seu freguês e amigo da “Petite Galerie”.
Agnaldo relatou-me que Biquiba Guarani aos trinta anos já era escultor de carrancas em Santa Maria da Vitória e que teve por mestre um certo artista muito idoso que por sua vez falava de um jesuíta que lhe ensinara a arte de entalhar. O próprio Biquiba não foi preciso ao responder se o tal jesuíta fazia carrancas, assegurando, contudo, que aprendeu com seu mestre também a fazer figuras de presépio, figura de bichos para centro de mesa e para colunas de sala. Em sua mocidade fez muitas de encomenda e ainda restam algumas que Franco Terranova fotografou junto ao seu autor.
Toda vez que Agnaldo recebia carrancas do São Francisco, em trânsito para o Rio e São Paulo, mostrava-nos. Dentre tantas indicava vez por outra as de autoria de Biquiba, caracterizadas por um estilo particular: cabeleira leonina ondeada de ranhuras simétricas e certas; olhos esbugalhados, com pálpebras salientes, delineadas; focinho prognata; dentes arreganhados e uma exagerada atitude erecta e contrátil de toda a cabeça e pescoço expressando apreensão e ameaça, vigilância e destemor. Certo é que Biquiba Guarani fez figuras diferentes, nem sempre leoninas, de acordo com a encomenda do barqueiro. Entretanto acabou por escolher um padrão a que se dedicou e produziu mais. Outra característica de Biquiba seria o corte de sua lâmina, certo e bem pensado, macio de muitos anos, que vale como assinatura entre um artista e outro. Também o identifica a uniformidade da madeira, o cepo bem escolhido, sua preferência pelo cedro e o modo de abrir a taruga, na base, para fixação à proa. A carranca de Biquiba Guarani é facilmente desmontável para reparos.
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Uma certa vez Agnaldo comunicou ao seu mestre do São Francisco a tristeza que trazia por ter sabido que algumas de suas pecas, vendidas para colecionadores de outros estados e países, feitas em ipê, jaqueira, louro e jenipapeiro, rachavam, fendiam de cima a baixo. Foi quando o mestre advertiu-o para trabalhar somente com cedro, embora caro, porque “cedro é a madeira que se dá com todas as águas”. Noutra ocasião Agnaldo mostrou-lhe fotografias de suas peças. A crítica do carranqueiro se fez nessas frases que procurei registrar do relato de Agnaldo:
– “Na figura, tudo que está de um lado deve estar do outro e tudo que está por cima deve ser diferente do que fica por baixo”.
– “A figura deve ter um olhar para um ponto que ninguém sabe o que é, nem onde está”.
– “A boca deve olhar para quem aprecia”.
– “O trabalho deve ser castigado”.
– “O corte tem que ser forte para aguentar com as mãos de tinta”.
– “A carranca bem feita e aquela que quando é vista no espelho das águas se mexe como coisa viva”.
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Em verdade Agnaldo nunca soube da opinião de Biquiba sobre suas pecas. Parece ter merecido certa aprovação, pois uma vez, após apreciar demoradamente uma fotografia, e sem pronunciar palavra, deu-lhe de presente uma moringa usada, em forma de galinha, da cerâmica popular são franciscana.
A impressão mais definitiva que Agnaldo conservava de seu mestre era a da destreza e do domínio da matéria. Temia a morte do velho a qualquer momento. Temia faltar-lhe aquela estrada que tentava me mostrar, recordando:
– “… o velho cortava, parava e examinava com os dedos… sempre preocupado com a perfeição… batia devagar, certo, bonito, ouvia-se mais a louça na cozinha que ele trabalhando… dava sinal de faltar forças… sentava num banquinho para pegar forças de novo…”, uma vez disse ao velho: “boa carranca!…”, ele me disse: “As água é que vai dizer, meu filho”.
A TEMÁTICA DA ESCULTURA DE AGNALDO MANOEL DOS SANTOS
A semelhança que se aponta entre a escultura de Agnaldo Manoel dos Santos e, genericamente, à africana, não resulta de uma avaliação crítica. E necessário um outro procedimento comparativo a fim de evitar-se a suposição de que tivesse havido simples imitação de uma escultura que ele mesmo conheceu pouco.
De fato Agnaldo se empolgou com as fotografias de Pierre Verger, sobretudo as nigerianas, ao tempo em que começava a esculpir. Também é verdade que por intermédio de Lênio Braga e Jenner Augusto foi levado a fazer figuras de Ibejis e Xangôs, de acordo com os modelos africanos tradicionalizados na Bahia. E, mais recentemente, por ocasião dos Colóquios Luso-Brasileiros realizados na Universidade da Bahia (1958), fui testemunha da extraordinária impressão que lhe causou a exposição das esculturas em madeira do Museu do Dundo, da Angola portuguesa.
Entretanto e apesar dessas três influências bem marcadas no relato que fez para as minhas anotações, sua obra escultórica não pode ser entendida como filiação a uma determinada estilística regional africana.
Agnaldo era senhor de meios expressionais de absoluta originalidade, ao lado de soluções técnicas que a princípio eram incidentais e incipientes e mais tarde se tornaram recursos de habilidade. A sua destreza em esculpir com a peça solta sobre a mesa ou no chão, por vezes fixando-a com os pés e trabalhando acocorado, era perfeitamente igual ao modo dos africanos, dos hindus, e de vários outros povos que ele jamais assistiu.
Impressiona verificar-se a escolha que fez da madeira como única matéria para toda sua produção. Impressiona porque a preferência da arte popular, isto é, do meio social de que ele procede, é pela modelagem em barro e, também, porque no ambiente artístico em que se revelou, o atelier de Mario Cravo Junior, havia abundância de outros materiais e de instrumental para qualquer outra elaboração. Agnaldo Manoel dos Santos teve certa influência do seu primeiro mestre, Mario Cravo Jr., tanto em sua problemática como em sua temática, limitada a um período de iniciação. Acredito ser vantajoso informar o fato de que Agnaldo se revelou e se iniciou em escultura ao tempo em que Mario Cravo, escultor de amplo domínio técnico e de rica versatilidade, percorria uma fase de produção em madeira. Exatamente o período em que este último fez suas grandes pecas figuradas na temática afro-brasileira, ou pelo menos próxima desta.
Pouco tempo após, o seu mestre partia para a pedra-sabão e para os metais enquanto o genuíno Agnaldo fixava-se, para sempre, em suas peças de madeira.
A temática de Mario Cravo abandonava sua eloquente fase expressionista, com utilização de simbologia mística, para mergulhar em franca abstração, por um certo momento construtivista.
Era uma vereda difícil demais para o seu aprendiz. Neste momento Agnaldo cresce, produzindo mais livremente, até assumir um meio expressional personalíssimo.
Com a cisão entre ele e seu primeiro mestre, inevitável e compreensível pela conduta estética de cada, nunca ouvi de Agnaldo senão palavras de gratidão e de amizade pelo artista que o levantara do nada.
Desligando-se do atelier de Mario Cravo Junior, em 1958, Agnaldo vacilou em assumir sua carreira artística, profissionalmente. Naquela época pareceu lhe impossível ganhar o bastante da venda de suas peças e, por isso, com o dinheiro da quitação de empregado, remunerado, tentou mais uma vez afirmar-se como comerciante. Antes, tentara ser caieiro de produção própria, na Ilha, fracassando. Dessa vez tentava ser comerciante de carvão para o bairro pobre da Vila Matos, no Rio Vermelho. Com o dinheiro recebido comprou caminhões de carvão estocando-o na pequena casa que alugara para se casar. Em poucos meses conheceu a falência, voltando a trabalhar de ganho.
Apesar desses dissabores e dificuldades, sua consistência em relação à temática e qualidade da produção artística, jamais vacilou para atender melhores possibilidades. Viu-se obrigado a viver somente da venda de suas peças pelo preço baixíssimo das ofertas. Viveu desse jeito alguns anos. Mas sua temática não variou.
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O fato de seus trabalhos lembrarem ídolos africanos, por atributos denotativos, não implica na afirmação de ser arte africana. A escultura de Agnaldo Manoel dos Santos é apenas escultura brasileira. Ocorre, todavia, de nossa parte, certa dificuldade em identificá-la como tal porque quase toda aquela que é feita aqui demanda do gosto e dos anseios alienígenas. Poucas vezes me permito indicar escultura brasileira genuína, inclusive sobre o acervo religioso, a não ser em determinados exemplos de artistas primitivos. Para ser brasileira tem que ser representativa das motivações místicas que formam a genuinidade do nosso povo e o tipo de cultura que expressa.
Sob este aspecto é que Agnaldo Manoel dos Santos merece ser estudado.
Sua obra de arte provém da amálgama dos valores artísticos aqui implantados pelos portugueses e africanos e aqui desenvolvidos em pleno sincretismo, como fenômeno paralelo da prodigiosa miscigenação que somos nós e que preservamos.
Após indicar a miscigenação como esteio da realidade brasileira, pode-se indicar mais claramente a grande e definitiva qualidade artística de Agnaldo: o sincretismo.
Sua temática é uma resultante dessa simbiose cultural que confere, no lavor primitivo, a presença de motivações e atributos diferentes. No seu exemplo a obra traduz o que ele era espiritualmente: o catecismo católico filtrando o animismo africano.
Desse modo vê-se no todo de sua produção um comportamento iconográfico católico, admitindo com frequência a simbologia e as atitudes e, por vezes, a nítida alegoria do texto evangélico. São várias as peças em posição orante, a presença da cruz, a atitude hierática idêntica às imagens católicas dos séculos XVI e XVII, a postura de prece e a intencionalidade devocional na atribuição dos títulos dados por ele mesmo: “Cristo com a coroa de espinho”, “Cabeça de Cristo”, “Cristo morto”, “Santa”, “Beata”, “Mulher rezando”, etc.
E, de outro modo, é relevante o número de peças solucionadas em anamorfose que procuram estabelecer uma visão conflitual da representação mística, animística.
O que muito impressiona no conjunto da obra de Agnaldo é a absoluta ausência de características barrocas que afetaram, praticamente, toda produção artística do meio brasileiro por mais de dois séculos.
Suas figuras se assemelham aquelas imagens católicas atribuídas ao século XVII, importadas ou feitas aqui, e que traziam de Portugal a espiritualidade dos séculos XVI e XV.
Certa ocasião meditei sobre os caracteres “barrocos” das imagens setecentistas – (dinamismo, planejamento movimentado, ênfase ornamental, dramaticidade, intencionalidade de celestizacão, etc.) – como sendo atributos inadequados para um escultor não habilitado nos cânones de uma torêutica difícil, mais primorosa, mais perfeccionista.
Verifiquei, depois, que este argumento é falso, pois tenho visto inúmeros exemplos de imagens e trabalhos ornamentais barrocos elaborados e interpretados por artistas primitivos, os quais podem falhar quanto ao resultado perfeccionista, porém não quanto à intencionalidade expressional.
Por conseguinte, o fato de Agnaldo e outros primitivos escolherem as características de um período anterior ao século dezoito, resulta de uma conduta consciente e não de uma incompetência.
Tal conduta é a própria identificação que o artista faz entre o exemplo que conhece e o protótipo que deseja.
É obvio que o primitivo não escolhe o modelo por sua significação histórica, cronológica, nem está preocupado em diferir os estilos de época.
No caso particular do escultor Agnaldo Manoel dos Santos, seu acesso à imaginária do século XVII teria sido mais fácil na coleção particular de seu amigo Mirabeau Sampaio que aos exemplos restantes das igrejas baianas, rareadas.
Numa certa ocasião surpreendera-se ao ver na coleção de Mirabeau uma imagem setecentista, em posição orante, e com o manto gomado sobreposto como uma casca, de impressionante semelhança a uma de suas pecas, e afirmou muito emocionado, jamais tê-la visto.
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Em relação à iconologia africana, especificamente a do candomblé baiano, sua produção conhecida foi a do mito Xangô, caracterizada pelo Oxê, e modelado de acordo com os mesmos ícones africanos ainda existentes e em uso de seita.
Se alguns desses seus Xangôs tiveram destino de prática religiosa, em casas de candomblés, não foi por determinação do artista que os lavrava, do mesmo modo de um santeiro interessado apenas por seu trabalho artístico. Para ele tanto fazia vendê-los a um colecionador particular como a uma “casa de santo”.
Não é, por conseguinte, na iconografia africana propriamente caracterizada que o africanismo de Agnaldo se identifica.
Este vai se revelar no comportamento geral da obra, como acontece com o seu catolicismo. Isto é, em seu sincretismo, em sua miscigenação cultural, em sua brasilidade.
Como primeira demonstração desse atributo indico a frequência do tema “maternidade” (figura de mulher amamentando, ou de filho ao colo, ou de mama proeminente) que em verdade é mais a simbologia da fecundidade, como fundamento magístico da arte tribal, que da sublimação católica. É sem dúvida conotativa à fecundidade, tal como se processa na motivação artística dos povos primitivos, por esta razão a figura é um nu com exageros dos componentes anatômicos.
A característica de ser figura em nudez, com exagero grotesco das mamas, e algumas vezes com dois filhos, quando não três, permite em definitivo aceitar-se como símbolo de fecundidade em sua raiz magística, telúrica e ancestral.
A segunda mostra da origem cultural africana na obra de Agnaldo está na determinação nominal de seus títulos. Por exemplo, para uma figura de caçador, armado de espingarda, facão e protegido de chapéu senhorial, denominou Oxóssi (deus da caça).
Por fim, como terceira e mais definitiva evidência, cabe indicar a sua tipologia. E inequívoca a similitude de seus arquétipos com os da escultura africana. Creio que nisto esteja à razão das afirmações de Ulli Beier, historiador e crítico de arte da Nigéria, ao confrontá-lo.
Parece-me incorreto catalogar-se Agnaldo Manoel dos Santos como exemplo de manifestação artística regional, no sentido de representar uma qualidade do coletivo.
Sua produção difere fundamentalmente daquela outra que é a do seu meio social e de sua contemporaneidade. Nada tem a ver com a escultura popular graciosa e muito menos com a preocupação decorativa do ingênuo desejo de se ornar a casa.
Suas peças sempre foram desentendidas pelas pessoas do seu meio e jamais poderiam ser aceitas, nem como presente, por seus vizinhos, para o fim de enfeitar uma sala. Em algumas ocasiões percebi o respeito de seus iguais e este sentimento era em consequência do seu prestígio na elite. Em seu bairro, em sua rua e em seu clube de festas e danças, Agnaldo era considerado e estimado sem ter sido nunca confundido com artista vulgar, ou útil, e assim se explica ele não ter participado das decorações do clube de que era membro da diretoria.
Sua obra, portanto, merece ser vista em seu caráter de exceção, tanto em relação ao meio, como ao tempo em que foi feita.
Este caráter de exceção com que distingo a obra de Agnaldo é a ancestralidade que ele vivenciou.
De um lado herdando os arquétipos mitológicos africanos e mantendo-os em sua ênfase de soberano e solitude.
De outro lado tomando os cânones dos modelos da imaginária católica, com uma defasagem de quase três séculos, sem alterá-los em sua frontalidade e contrição.
Da soma desses atributos – origem católica medieval e origem africana ancestral – imutáveis quanto à qualidade expressional, defino a obra escultórica de Agnaldo Manoel dos Santos como um dos poucos valores brasileiros verdadeiramente genuínos.
A MORTE DE AGNALDO
No dia 27 de abril de 1962, Agnaldo Manoel dos Santos morreu com a idade de 36 anos.
Sua produção artística limitou-se aos últimos dez anos de sua vida quando ele foi trabalhar para Mario Cravo como servente e se motivou pelo conhecimento das obras deste escultor.
Eu me tornei um de seus amigos em 1953, quando José Valladares trouxe-o ao meu consultório médico para tratá-lo de uma infecção intestinal. Em 1956, ele se queixou um dia de palpitações acompanhadas de uma pressão sobre o peito. Examinado no Hospital das Clínicas da Bahia verificou-se sofrer de doença de Chagas. Nos começos de 1960 apresentou uma súbita paralisia de curta duração que afetou seu braço direito e mão, enquanto ele esculpia. Novos testes mostraram ser devido ao desprendimento de pequenos trombos originados do ventrículo esquerdo e atingindo, por embolismo, seu cérebro. Submeteu-se então a tratamento anticoagulante com algum sucesso.
Meus colegas do Hospital das Clínicas preocuparam-se em ajudá-lo, especialmente porque ele não podia trabalhar com o braço afetado. O aparecimento desse sintoma coincidiu com o período durante o qual ele fora contratado pela importante “Petite Galerie” do Rio de Janeiro para entregar suas obras por mês. Menciono este fato por causa da importância de sua afirmação como artista, no mercado do Sul. Agnaldo vivia, muito pobremente, trabalhando com dificuldade para vender suas esculturas por baixos preços, oferecidos pelos compradores locais.
O contrato com a “Petite Galerie” trouxe-lhe o conforto de um provento certo, o primeiro que lhe acontecia em sua vida, permitindo-lhe alugar uma casa, comprar mobília, e levantar um pouco o seu padrão de vida.
Agnaldo estava plenamente satisfeito com suas exposições no Sul. Tornou-se amigo de Franco Terranova, sócio-diretor da “Petite Galerie”, combinando com este uma excursão pelo Rio São Francisco à procura de “carrancas”, as figuras de proa das barcas do velho Rio. Foi quando ele conheceu Francisco Biquiba Guarani, o mais antigo escultor de carrancas e que veio a ser seu segundo mestre.
Diante sua agradável e saudável aparência, ninguém imaginava que uma doença cruel estava prestes a eliminá-lo.
Mesmo quando seu médico assistente achou necessário adverti-lo da triste circunstância, poucos aceitaram o prognóstico de que o seu fim chegaria a qualquer momento.
Ele tinha um físico atlético, era capaz de erguer, com alavanca de bastão, grandes pesos, como blocos de madeira, pedras ou peças de metal até cerca de duzentos quilos. Era inacreditável imaginá-lo condenado pela doença.
Em março de 1962 Agnaldo veio ao meu consultório e falou-me de sua decisão de fazer um tratamento para curar-se da esquistossomose. Jenner Augusto e eu tentamos dissuadi-lo, mas não houve meios de fazê-lo entender que a esquistossomose no caso não era grave, e que o tratamento antimonial estava em absoluta contraindicação com a sua condição de portador de doença de Chagas.
Agnaldo foi dez vezes a um consultório médico localizado no Terreiro de Jesus, bem em frente à Faculdade de Medicina. Em cada uma dessas ocasiões tomou uma injeção intravenosa de droga antimonial, conforme prescrição, e após uma dessas sentiu dores angustiantes no coração.
Uma noite, já de madrugada, ele levantou-se em estado desesperador e colapsou no corredor com falta de ar, desmaiando.
Após a última das dez injeções receitadas, Agnaldo voltou para casa de táxi, tão desfigurado, que sua mulher, Ernestina, levou-o para o pronto-socorro no mesmo taxi que o trouxera. Não durou muito. O coração doente de Agnaldo cessou de bater.
Indagando-se os médicos do pronto-socorro, soube-se, finalmente, que o assim chamado “doutor” não era um médico e sim um ex-enfermeiro, recentemente nomeado investigador de polícia, que se sentindo “autoridade” também em conhecimento médicos, resolvera abrir um consultório clínico bem em frente à veneranda Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus.
Agnaldo foi vítima do seu ambiente. Primeiro porque a “doença de Chagas”, uma ocorrência comum na infância passada em extrema pobreza, e segundo porque foi presa fácil para o “doutor” clandestino que soube como captar a sua confiança.
É certo que, devido à natureza de sua doença mais grave, a miocardite chágasica, Agnaldo estava condenado a uma breve e talvez morte súbita, mesmo sem a interferência do charlatão.
Mas, se assim tivesse ocorrido, a crônica de sua doença nem chamaria a atenção.