Com um trabalho plástico-visual percorrendo uma criação que investiga várias áreas do conhecimento através de referências literárias, artísticas, filosóficas e científicas (arqueologia, paleontologia, zoologia, medicina), utilizando uma diversidade e um acúmulo de materiais, onde objetos comuns são transformados em seu uso e relação na invenção de um universo instigante e fantástico entre o real e o imaginário, e exibindo nesta postura não apenas uma obra, mas um projeto estético, de marca inteiramente pessoal em seus desenhos, esculturas, instalações, performances, vídeos, fotos, Tunga se tornou hoje um dos artistas brasileiros em atividade de maior internacionalização nas artes visuais. Exposição de trabalhos inéditos do artista.
“Meu trabalho consiste em construir junto ao espectador uma poética que seja minha e dele, podendo resgatar nos processos primários, um mundo em transformação, um mundo por nós transformável. Daí é que hermenêuticas diversas me interessam. Mostrar, criar um fato e suas versões. Contar com a versão dos fatos dos outros e de outros fatos suscitados pelo criado… Nisto consiste a psicanálise, a teoria literária, a etimologia, até a odontologia para que se criem versões para fatos que contribuem para adensar uma visão poética do mundo.Usar estas versões de modo “perverso” é coisa da poesia”.
Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão nasceu em Palmares, Pernambuco, em 1952. Muda-se para o Rio de Janeiro em 1974, onde conclui o curso de arquitetura e urbanismo na Universidade Santa Úrsula.
É colaborador da revista Malasartes e do jornal A Parte do Fogo. Na década de 80, realiza conferências no Instituto de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Santa Úrsula e na Universidade Candido Mendes. Recebe o Prêmio Governo do Estado por exposição realizada no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em 1986. No ano seguinte, Arthur Omar realiza o vídeo O Nervo de Prata, sobre sua obra.
Em 1990, recebe o Prêmio Brasília de Artes Plásticas e, em 1991, o Prêmio Mário Pedrosa da Associação Brasileira de Críticos de Arte pela obra “Preliminares do Palíndromo Incesto”. Para realizar seu trabalho, investiga áreas do conhecimento como literatura, filosofia, psicanálise, teatro, além de disciplinas das ciências exatas e biológicas. Vive no Rio de Janeiro.
Angélica de Moraes
“Na Galeria Luisa Strina, o artista expõe sete conjuntos de objetos-esculturas que, a um primeiro olhar, parecem peças de cerâmica. A cor terrosa engana. Ela não é do material, mas do seu acabamento insólito: maquiagem. As peças são fundidas em bronze e cobertas com base, batom e pó compacto. A superfície resultante não se pretende simulacro perfeito da pele: conserva o índice da mão que a plasmou em argila.
Os objetos-esculturas nasceram do desenho de corpos unidos. O artista isolou a linha que define ao mesmo tempo duas pessoas: fronteira e mistura de peles, vasos comunicantes e incomunicados. Metáfora das relações amorosas, essa linha ganhou volume e expandiu-se em duas formas: urna e cálice (ou aberto e fechado, masculino e feminino). Preenchendo o espaço entre elas, um lábio. Está montada a equação visual que, conforme os hábitos de Tunga, ainda se alimentou de inúmeras fontes de pesquisa, entre elas as ciências exatas”.
A sua obra possui uma relação com o mundo através de fontes artísticas, literárias, científicas. Como é feita esta integração dentro dos limites da visualidade?
A tarefa do poeta, do artista no mundo hoje, acredito ser carregar sensibilidades dispersas nos mais diversos saberes que a sociedade produz. Ele é uma espécie de olho clínico geral do mundo, apontando possíveis formações do espírito.
A sua obra integra desenhos, esculturas, instalações, performances, vídeos, fotos, e disto uma relação com o mundo, para criação e visualização. Como são selecionados ou escolhidos alguns destes caminhos ou vários deles para sua realização/execução? Há um projeto?
Existe um projeto sim, um programa. Todo artista deve ter o seu programa. Uma via o trata de modo mais consciente, outra mais instintiva. Elucidar expressando este programa é a construção da obra. Será nela que o programa se dá, se esclarece. Compreender este programa, me parece, será trazê-lo à consciência podendo nele operar a navegação das mais diversas linguagens sem perder o rumo. Como um clínico geral, é necessário olhar o corpo inteiro e as inter-relações das partes, dos órgãos. Suponha que este corpo se manifeste por palavras, cores, sons, sabores, formas, temperaturas, odores… Congregar as linguagens lidando com estes sentidos, reconstruindo um corpo possível, será uma das metas deste projeto.
Da relação com o mundo para sua feitura, a sua obra passa depois também a ter uma dimensão interativa com o “espectador”. Tornado participante, o “espectador” é solicitado a não ter mais uma apreensão estática, mas uma expressão de relação?
Olhar já é participar! Sentir o gosto de um tempero também. O que na arte atual nos foi oferecido é uma integração maior com aquilo proposto pelo artista. O artista se coloca como o comandante de um barco onde ele também é passageiro como o público. O caminho, a rota de uma obra é tragada pela habilidade do comandante em navegar junto aos tripulantes, saber levar o barco a “mares nunca dantes navegados”. Para isto, é fundamental a integração com o público neste programa; a obra deve, portanto, convidar este público à viagem proposta.
Com esta relação, qual o limite na sua obra entre o virtual e o real?
É o limite neural, até onde podemos ir…
Chama a atenção nos seus trabalhos o uso de materiais, a diversidade deles, e entre estes também a luz – uso de infravermelho, ultravioleta – como material. Esta materialidade da luz nos dá uma leveza. Pode discorrer sobre a escolha, a utilização, como é realizada esta pesquisa, e como isto se irradia na sua criação? O que é a justaposição de materiais na sua criação?
A ideia mesmo de “material” de trabalho, material de construção, nos faz pensar numa arquitetura, e um arquiteto eficiente leva em conta a aurora e o ocaso, os ventos, calmarias, bordas, implantações, fixação e deslocamentos… Tudo é passível de tornar-se material de construção. Será a atenção a isto o fator de criação da densidade e complexidade de uma obra. O que você menciona como leveza é talvez a diversidade de entradas que a obra propõe.
Um dado que também ressalta na sua obra é o espaço, o diálogo que é feito entre massa e volume, fundo e figura, e, principalmente, o que é concretizado pelo vazio. Como vê o espaço na sua obra? E, neste, a relação entre corporidade e vazio?
Tudo me parece ser corpo, não há vazio no meu modo de ver, há densidades: sutis, transparentes, etéreas ou carregadas, saturadas, pesadas etc.
Sua obra possui uma sofisticação formal. Isto é antecedido de um projeto gráfico? Aliás, o que é o projeto gráfico para a realização da sua obra?
Gráfico é o desenho. Poucas obras nascem do desenho, embora seja um instrumento, uma ferramenta de aprimoramento e construção das peças. Nascem mais de uma bruma, que se expressa em um ou outro sentido com mais intensidade. A repercussão desta bruma em mim é que vai privilegiar a formalização neste ou naquele meio. Poderia ser uma canção se minhas aptidões musicais fossem mais acuradas. Se este for o caso, posso contar com colaboradores músicos, que vão me guiar na construção da canção desejada.
Um dos críticos que acompanham a sua obra afirma que você considera a escultura como um conjunto de formas e figuras enigmáticas, cuja estratégia e proporções fabulosas integram o espectador e causam transtorno em sua percepção habitual de próximo e distante, dentro e fora, cheio e vazio. Esta fala acima é um dos caminhos ou objetivos de sua arte?
Sim.
Na sua relação com as artes, as ciências e a literatura, saltam aos olhos a presença da psicologia, o interesse pelo inconsciente, pelo sonho, para a feitura do trabalho. Isto pode se estender à biologia. Estes estudos servem até que ponto para o desenvolvimento de sua obra?
Hermenêuticas diversas me interessam. Mostrar, criar um fato e suas versões. Contar com a versão dos fatos dos outros e de outros fatos suscitados pelo criado. Nisto consiste a psicanálise, teoria literária, a etimologia, até a odontologia cria versões para fatos que contribuem para adensar uma visão poética do mundo. Usar estas versões de modo “perverso” é coisa da poesia.
Ao escolher seus materiais, você se apropria deles, retira sua natureza e, com o “contágio” entre eles, nasce o trabalho. Esta justaposição de materiais, levando que a origem será modificada, pode também ser traduzida para o espectador? A obra deflagrando por seu universo um novo mundo para este? E ainda nesta pergunta: esta modificação deve acarretar também uma mudança do simbólico? Criar um simbólico? Uma visão nova? Sua obra exige uma visão nova para poder vê-la?
Construir junto ao espectador uma poética que seja minha e dele, podendo resgatar, nos processos primários, um mundo em transformação, um mundo por nós transformável.
(entrevista / março de 2008)