Aqui, figuras como Exu não aparecem como alegoria ou exotismo, mas como presença ativa: energia em movimento, divindade cotidiana, ponte entre mundos. Exu, mensageiro e senhor das encruzilhadas, é encarnado como ideal filosófico e espiritual que orienta a liberdade radical do povo preto — e, nessa chave, suas aparições nas telas são também ensaio político, educativo e afetivo.
Com sua paleta de cores vívidas — amarelos solares, verdes-terra e azuis cósmicos — o artista propõe uma nova iconografia para corpos pretos, em que a herança ancestral não é evocada como vestígio, mas como potência viva e atual.
O amarelo de Oxum, desenha a cor dos cabelos, a bola de basquete, a coroa na cabeça, o detalhe no boné, a camiseta da seleção, o dread com miçangas, a estrela e o desenho de onça orgulhosamente dispostos na cabeça dos modelos negros, e são aqui entendidos como sinônimo de orgulho.
Azul de Ogum e Iemanjá é também a cor de chegada para o artista. Ela serve como fundo de tela, como alusão ao céu e ao mar, mas também como base para a ostentação de marcas de luxo. Marcas de status têm um papel importante nesse vocabulário de O Bastardo. O símbolo da Louis Vuitton insinuado ao fundo, a palavra Nike na jaqueta, o Speed Cat no capacete e o Drive Fast no boné se transformam em ícones de comunidade negra. Pois, nesse trabalho, o que se representa não é a vitimização, mas a agência; não a escravidão do passado, mas a liberdade utópica do presente e do futuro.
Verde, cor de Oxóssi desenha a diferença. Diferença que destaca o personagem central; diferença no moletom caprichado, no casaco de marca. O azul reina, mas é o verde que sublinha, assinala, desloca e chama pela força dos aquilombamentos contemporâneos.
?Nessa exposição, pois, O Bastardo reivindica outra linhagem: aquela que se constrói pelo afeto, pela reinvenção e pela escuta ancestral. Se os retratos acadêmicos consagraram o poder da branquitude sob símbolos de autoridade e domínio, já na obra desse mensageiro, o gesto artístico se ancora em um afrofuturismo de base — aquele que não busca a estética da ficção científica, apenas, mas sim o futuro possível gestado no presente por mãos negras. É um afrofuturismo terrestre, de chão batido e sabedoria herdada. Os corpos retratados projetam esse tempo porvir com os recursos que ontem lhes foram negados, mas que hoje são aqui cultivados, praticados, encarnados.
Como em outras fases do trabalho do artista, as referências aos símbolos urbanos — marcas de moda, tênis, cortes de cabelo, elementos visuais da cultura — não são meras citações. Funcionam como códigos internos, afirmações de pertencimento, camadas de construção de identidades. Aqui, no entanto, esses elementos se fundem aos signos religiosos e filosóficos da cosmologia africana, traçando um arco que vai do orixá ao sneaker, da encruzilhada ao estúdio de tatuagem, do terreiro ao trap.
Arquétipos é uma exposição que propõe a reconstrução de imagens universais a partir de uma centralidade negra — múltipla, plural, espiritual e política. Se toda pintura carrega um passado, a de O Bastardo também ensaia um amanhã. Um amanhã que escute seus mais velhos para que os mais novos possam criar sem medo. E assim, o artista nos lembra que a verdadeira revolução das imagens começa quando nos vemos nelas — inteiros, múltiplos, complexos.
?O azul contrastado com as peles negras, as roupas e adereços os modelos – tão plenos nesses retratos – fazem do conjunto da obra um documento belo e utópico desse Brasil ainda tão desigual e que continua a clamar por democracia.
Arquétipos
Lilia M. Schwarcz
O BASTARDO: entrevista a Claudius Portugal
1)Você em uma entrevista disse: “Todo retrato é um autorretrato, mas é igualmente uma somatória da comunidade, mostrando como essas são obras, ao mesmo tempo individuais e coletivas”.
Sim, nos meus retratos, cada indivíduo representado carrega um peso simbólico, baseado em memórias afetivas e no imaginário coletivo. De algum modo, esse legado está presente, de formas distintas, em cada uma das obras — revelando diferentes aspectos do meu povo: desde o seu semblante, passando pela composição de suas vestes, pelo olhar, pelas expressões mais sutis que compõem um sentimento. Ora mais óbvio e direto, ora mais subjetivo e relativo, esse sentimento varia no impacto e na relação que estabelece com o público.
2)Sua obra reflete com ênfase a visibilidade de personagens pretos. Sua abordagem contemporânea propõe a arte como ferramenta para uma reescrita histórica, criando passado e futuro?
Acho fundamental exercitar formas de se repensar, refletir e, em diversos momentos, usar o meu trabalho como uma forma direta de reescrever uma história que, por si só, optou por retratar o povo preto de maneira tendenciosa, degradante e obscura. Vejo, em muitos casos, a necessidade de usar intencionalmente o recurso artístico até mesmo para apagar e recriar certos “fatos históricos”, partindo do princípio de que há acontecimentos que exigem ser reimaginados.
3)Há na sua obra, em sua ação, uma maneira de enxergar o mundo, desde fatos cotidianos a uma memória afetiva. Há o lugar de onde cresceu ou o imaginário popular, que te move e te inspira a pintar?
Acredito que tudo começa, passa e termina no imaginário popular. Grande parte da minha formação nas artes vem de uma prática e observação muito intensas dos mitos, muros, religiões e figuras simbólicas do lugar de onde vim, onde cresci. Meu início no graffiti, as influências estéticas e filosóficas vindas de ritos religiosos, líderes comunitários, da cidade do Rio como um todo — e, depois, de todo o Brasil e do ser brasileiro — formam a base do meu olhar. Venho observando, aprendendo e me reconhecendo nessas figuras que, na maior parte do tempo, existem como presenças pouco conhecidas: ruas, cenários e situações que, ao mesmo tempo, só existem em Mesquita, mas que, de alguma forma, também se adaptam e se repetem em outras periferias e comunidades do Brasil.
4)Há uma temática na sua obra atual ou anterior relacionada com sua história pessoal? É um diálogo cotidiano entre arte e vida? Qual seu processo de criação e trabalho?
A cultura das comunidades pretas da diáspora, no Brasil e no mundo, sempre foi um tema central na minha obra — algo que pesquiso, observo e retrato até hoje, e que provavelmente vai me acompanhar ao longo de toda a vida. Tudo o que envolve esse tema interfere, soma, provoca algo no meu processo de criação e produção. Desde os hábitos e formas de pensar do graffiti e da rua até as convenções estéticas e sociais de diversas culturas negras, esse universo nunca se esgota. Seguimos vivos, criando, redescobrindo. Há detalhes na minha linguagem que vêm de gestos simbólicos cotidianos — como o ato de uma mãe abençoar o filho antes de ele sair de casa — até elementos estéticos e conceituais mais complexos, que estão profundamente presentes no meu processo de maneira ampla e contínua.
5) Pintar é sua pintura é a maneira de lidar com o real?
Eu diria que pintar — que a minha pintura — é mais sobre aquilo que eu desejaria para o real, no real. É uma forma de reivindicação por meio dos retratos, dos painéis com narrativas complexas… coisas que desejo para o presente e o futuro e, quando necessário, para repensar o passado.
6) Como foi crescer em Mesquita? O cotidiano?
Apesar das adversidades, da pouca estrutura financeira e social, e do acesso limitado à cultura — como é a realidade de tantos no Brasil —, tirando tudo isso, tive uma infância feliz. Um lugar simples, com muita gente do bem, movida por um espírito de empatia pelo outro, pelos seus. Havia uma forma de esperança no dia seguinte, mesmo quando não havia motivo algum para acreditar nisso. Eu era daquelas crianças que não tinham acesso nem aos brinquedos mais baratos. Isso me levou, na infância, a um cotidiano de soltar muita pipa, correr atrás das que voavam pelas ruas durante as férias, jogar bola — mesmo que improvisada com jornal e saco plástico. A gente dava um jeito de ser feliz. Tento manter esse espírito vivo em mim até hoje.
7) E a vivência depois no Parque Laje? Por extensão, na zona sul do Rio de Janeiro?
O Parque Lage marcou uma nova etapa na minha vida e foi muito importante para minha trajetória como artista. Foi lá que tive meus primeiros contatos com o que se chama de “circuito de arte”. Entrei com uma bolsa de estudos, aos 17 para 18 anos, cedida pela minha própria mãe — que trabalhava na secretaria da escola. Por ser funcionária da instituição, ela tinha direito à bolsa e decidiu me ceder. Foi um divisor de águas: eu nunca sequer tinha pisado na Zona Sul do Rio antes da minha primeira aula no Parque Lage. Comecei fazendo videoarte com a Analu Cunha, mas no mesmo dia conheci a Suzana Queiroga, que já lecionava pintura e desenho na escola há alguns anos. Ela me propôs integrar o seu curso como bolsista, e eu aceitei. Foi ali que descobri meu amor pela pintura — e nunca mais parei. Sigo assim até hoje. Durante os cinco anos em que estudei na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, passei por outros grandes professores, por diversas práticas e suportes artísticos que me ajudaram a refinar e aperfeiçoar elementos que fazem parte do meu processo artístico até hoje.
8) Como sente Paris hoje como dado de formação de sua pintura. Discorra sobre sua atuação em Paris?
Cheguei a Paris como intercambista nas Beaux-Arts de Paris (Escola de Belas Artes), por meio de uma parceria de intercâmbio firmada com o Parque Lage — que recebe alunos da Beaux-Arts e também envia estudantes por recomendação. Fiz minha candidatura de forma despretensiosa. Na época eu não tinha recursos financeiros nem um currículo de peso. Ainda assim, fui admitido no processo seletivo. Passei o período inicial do intercâmbio na Instituição e, depois, tive a oportunidade de estendê-lo por mais tempo, a convite da própria escola. Um ano depois, pouco antes de retornar ao Brasil, fui aprovado no processo seletivo para o mestrado na Beaux-Arts — que ainda pretendo concluir em um futuro próximo, com meu retorno à Europa.
9) De volta ao Brasil, muitas portas foram abertas, e você se tornou um destaque da nova geração? Como lida com esta situação que sua obra traz como consequência?
Sinto que, de forma muito orgânica — tanto pelo contato direto com o público quanto pelo reconhecimento de grandes instituições brasileiras como o MAR (Museu de Arte do Rio), o MASP, e a Pinacoteca de São Paulo, entre outras —, passei a ganhar destaque dentro da minha geração. Desde o início, sempre tentei usar essa visibilidade para estreitar a relação entre minhas obras e o meu povo, com a galera de onde vim. Não me interessa apenas abraçar esse reconhecimento de forma individual. O tempo todo, busco criar pontes entre esses espaços, agentes e instituições com artistas que, em um contexto habitual, dificilmente se conectariam a eles — pelos diversos motivos que marcam o funcionamento do sistema da arte como ele é hoje. Além disso, observo e reflito constantemente sobre como posso aproveitar essa posição que passei a ocupar para repensar e apresentar, de diferentes formas, temas no meu trabalho que provoquem, despertem curiosidade e sirvam como uma introdução a figuras pretas — do presente e do passado — cujas pesquisas políticas, artísticas e filosóficas considero fundamentais para que pessoas pretas conheçam, e que também precisam ser reconhecidas pela sociedade como um todo.
10) Qual sua relação com o grafitti hoje? Estendendo mais um pouco: O que ficou do grafitti na sua pintura hoje? E a moda? A moda está presente em suas pinturas. Qual a dimensão dela nas suas referências? O que mais impacta na sua estética?
Hoje, minha relação com o graffiti nas ruas é mais ligada à memória. Mas tudo o que desenvolvi e aprendi com ele continua sendo parte fundamental do meu processo artístico — inclusive de elementos da minha linguagem visual. Nunca fiz nenhum curso técnico ou teórico de arte na vida. Acredito que boa parte da minha noção estética se formou ainda na época em que eu praticava graffiti, e isso influenciou — e ainda influencia — minha obra até hoje. Acho que, principalmente no meu olhar artístico, percebo como essa vivência me permite enxergar as coisas de forma menos óbvia, mais abstrata, fora do habitual. Isso veio muito do graffiti. E a moda também sempre foi, pra mim, uma forma de arte. Na adolescência, tive um período em que comprava roupas em brechó, adaptava, transformava, criava novas peças. Essa prática também me levou a desenvolver uma outra forma de pensar arte — me levou ao 3D de forma prática, intuitiva. Ver referências nas redes, no dia a dia, nas festas, nas minhas próprias invenções… tudo isso foi se somando a esse lado artístico que, mais tarde, acabou se encaixando até nas minhas pinturas.
11) É inevitável esta pergunta, visualizando sua obra. Dá para ignorar a violência e as situações de racismo? Como você se coloca diante deste tema? E traduz isso, de que forma, na sua produção artística? E como cidadão, milita, luta e reivindica, fala sobre o lugar de onde vem, ou da negritude? Reivindica qual lugar de existência?
Não! Não dá pra ignorar. Eu me sinto parte da linha de frente desse tema, e, na posição que ocupo, sinto uma responsabilidade constante de me manter atento a isso — porque me afeta diretamente, e afeta diretamente os meus. Para além do ato político-artístico — no qual trago críticas e ações diretas a diversas questões relacionadas ao racismo, tanto do passado quanto do presente, e reivindico um futuro sem ele —, também atuo por meio de abordagens diferentes, às vezes pouco usuais. Como, por exemplo, retratar o povo preto em posições e situações que não costumam ser representadas, mas que existem — e deveriam existir mais. Isso também é uma crítica direta à violência e ao racismo: mostrar que não somos apenas esse resumo público e midiático de miséria, dor e sofrimento. Pelo contrário, o povo preto, mesmo em meio a tantas mazelas, também vive momentos de existência plena, de comunidade, de felicidade, de vida. Retratar isso não é negar o que sofremos — é mostrar outro lado, e reivindicar que esses momentos deixem de ser exceções e se tornem o habitual. Tanto a crítica clássica, direta e convencional quanto essas táticas mais sutis e simbólicas são, para mim, necessárias e complementares.
12) No campo das artes plásticas, ou da própria vida, é difícil fazer a separação, o que é preciso rever na representação na negritude?
Me fiz essa pergunta por três anos antes de começar a minha fase atual. Acho que o maior problema é a representação vazia, caricata, marcada por falsos protestos e por oportunismo. É isso que, na minha opinião, precisa ser revisto. Com o boom da arte preta, alguns anos atrás — no Brasil e no mundo —, surgiram também artistas negros (ainda minoria) que, infelizmente, pouco trouxeram além da exploração superficial do próprio povo e do lugar de onde vieram. Sinto que, nos últimos dois anos, essas figuras vêm se tornando cada vez mais insustentáveis, e, naturalmente, estão perdendo espaço e visibilidade. Esse modelo de representação da negritude, completamente pautado na venda de estereótipos sobre o que é ser negro, atende aos desejos de uma elite fetichista que consome esse tipo de imagem. E é justamente isso que precisa ser tensionado e superado.
13) Voltando a obra: Já foi dito que sua pintura possui um gesto rápido, sempre valorizando o processo do desenho diretamente na tela. O que acha dessa opinião?
Concordo. Meu trabalho carrega um senso de urgência conceitual, mas também muito literal. Logo no início da minha pesquisa, deixei para trás essa separação entre fundo, desenho e pintura — passei a tratar tudo como uma coisa só: pintura. Esse desenho direto na tela — muitas vezes cru, muitas vezes mais presente até do que a própria tinta — é intencional, e ao mesmo tempo intuitivo. É a minha forma de ver o mundo e de representá-lo. Ao meu olhar, aquilo é o que é. Não se trata de buscar um realismo visual ou de “preencher” o que falta em X ou Y. Até porque todo o meu processo artístico sempre foi, do início ao fim, na contramão da escola clássica da pintura. Eu nem saberia imaginar pensar ou ver de outro jeito.
14) Como você situa seu envolvimento em questões humanas e sociais, não só através de sua arte, mas como cidadão? Qual o alcance dela?
Tenho pra mim, com todas as minhas vivências, que sempre carreguei, de forma natural, essa vontade de somar com quem estava ao meu redor, ao meu alcance. Isso desde novo. Fui criado assim, tá ligado? A gente tinha pouco, e o vizinho podia ter tão pouco quanto — ou até menos. É um senso de empatia e coletividade com o qual eu cresci. Conforme minha vida foi mudando, e comecei a ter uma condição muito diferente daquela em que vivi a maior parte do tempo, fui tentando redistribuir os meus poderes, minhas influências. Isso se manifestou de muitas formas: diretamente com artistas de periferias do Rio de Janeiro, em ações de apoio a famílias carentes todos os anos, ou na festa de Cosme e Damião que organizo todo ano com minha mãe — onde a gente distribui doces, mas também cestas básicas. Estou falando disso tudo pela primeira vez, porque sempre optei por fazer de forma discreta — ou até mesmo anônima. Porque, na minha cabeça, esse tipo de ação tem que vir do coração. Nunca quis nem um “parabéns” por fazer algo que, sinceramente, acho que todo mundo que pode deveria fazer o mínimo
15) E o momento Brasil? As circunstâncias de hoje nesta mostra? O que é ser um artista visual, hoje, no Brasil?
Acho que estamos vivendo um momento complicado, mas sinto alguns sinais de melhora. Política, arte — tudo isso é um trabalho de formiguinha, que só deixa de ser de formiguinha quando a gente se junta para buscar o que é nosso por direito: melhores condições em todos os setores. O efeito dominó pode servir para o avanço e a melhora das coisas. O problema é que ele funciona com muito mais facilidade para o retrocesso. Ser artista visual hoje, no Brasil, é comprar uma briga a mais. É difícil. Os museus públicos funcionam com pouco ou nenhum apoio, os impostos são absurdos e emperram o crescimento e a consolidação do sistema de arte como um todo. E, no fim das contas, uma coisa não se sustenta sem a outra: artista, público, museu, galeria… tudo faz parte do mesmo ecossistema. Pelo menos, nos últimos anos, percebo que os agentes diversos desse circuito — entre eles, claro, os próprios artistas — têm se unido e se organizado melhor para enfrentar o que precisa ser mudado e o que ainda atrapalha o avanço e o fortalecimento do nosso cenário.
16) A exposição na Bahia. Na Paulo Darzé Galeria? Quantas obras compõem esta mostra? Está dividida em séries? Com variados formatos e técnicas? Há um título para a exposição?
A mostra é composta por 23 obras, todas pertencentes à série que dá nome à exposição: Arquétipos.