MAIS QUE MALABARES
Acompanho o laborioso e árduo fazer de Fernando Coelho há mais de uma década visitando o seu o ateliê em Salvador. Diante da série de pinturas desta mostra, sinto-me diante de cada obra como na boca de cena de um cenário dramático, nunca trágico, apenas nutrido do poder transcendente do poético.
Testemunhei durante anos progredirem em suas pinturas mutações de imagens grávidas de uma “geometria lírica”, cujos feitos e efeitos dos dramas, não só pictóricos, descortinavam figuras fantásticas e extraordinárias com grande poder de nos seduzir e sacudir o imaginário em emoção única, fluida, infinita. Tudo me fazia ? obras e conversas – sair do ateliê recriando cada pintura como se pertencesse somente ao meu imaginário desafiado e especuloso.
São pinturas-armadilhas que nos cabem e descabem, pois é inevitável sermos surpreendidos pelas suas espertezas e acabarmos fascinados pelos personagens instigantes e transgressivos que parecem existir e vibrar na memória ancestral do artista.
No intenso trabalho também artesanal de sua pintura, Fernando utiliza como suporte outras pinturas, algumas concluídas desde a década de 1980. Segundo ele, nunca as repinturas estão de todo acabadas, e, quando incorpora algumas ao rol daquelas a serem recriadas, nunca está de todo satisfeito em dar um ponto final ao trabalho.
Assim, o conjunto de obras desta exposição sofre da armadilha que o próprio artista criou para si mesmo, instigando sua imaginação a sempre sobrepor camadas de papéis previamente pintados ou não, a serem colados, lixados e repintados com outras imagéticas vindas entre o sonho e a realidade. Durante esse trabalho, há noites de insônia, sonhando em pé diante dessas pinturas, entre a angústia da dúvida e a incerteza do concluso.
Paira sobre a pele densa da pintura/colagem uma camada de amor e morte de que toda arte verdadeira está envolta, na alegria e no luto de viver a vida intensamente sem a sombra do medo. Os espaços pretos destacam o canto sinfônico das cores e formas que se espalham com a vasta liberdade de quem já não tem receio de ousar ser um exímio artífice em sua paixão pelo ato visceral de pintar.
Afirmo que o artista deixa somente 50% de sua obra concluída; o resto fica para quem a sente, segundo suas referências políticas e poéticas, culturais e espirituais. Assim, cada obra aberta de Fernando Coelho nos faz especular sobre as identidades múltiplas de nossas arguições e identificações.
Com ricas e transmutadas referências de toda a história da arte que assimilou e das quais se fartou ao nos transcriar generoso em imagens poderosas e seminais, Fernando Coelho mais do que pinta, ele nos provoca e nos liberta das convenções estéticas pervertendo nosso olhar viciado na normose artística.
A riqueza e ousadia cromática – qual indígena ao compor sua arte plumária ? na construção de uma estética em que a colagem se interpõe, mas nunca se impõe, é sempre pintura o que vislumbra e realiza com sabedoria conceitual, que alia a sua criança que brinca de fazer da arte um ato de inteligência sensível, madura, arguta e construtiva, fazendo-se sábio pontífice entre a abstração e a figuração.
Há em tudo um humor mais do que fino, a sutil ironia da figuração, na hábil agilidade de cruzar e citar referências dos mestres armazenadas numa memória vasta de mais de oitenta anos de bem-viver.
Esta série de uma década que ele chama de “Malabares” é sobre a habilidade de lidar com situações-limite ? como os artistas de rua e em trânsito pela realidade ? no extremo desafio e insegurança em que a incerteza e a instabilidade medram e são também instrumentos leais a um pintor que se desafia, como Fernando.
O artista abandonou em 1975 as certezas de sua pintura consagrada, fez uma histórica exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM/BA) – da qual fiz a curadoria – e pintou o que pode ser o fundamento da obra atual, “O menino que sonhava colorido”, como um equilibrista visitando a incerteza. Quase malabares!
Em texto do mesmo ano sobre a mostra do MAM/BA, o poeta e crítico Wilson Rocha diz que as pinturas de Coelho “são de uma profunda e dilacerante solidão e onde reside a tensão, e nisso, o impacto de sua eficácia expressiva”. E ainda: “Fernando escreve-se na grande aventura do artista afirmando-se humano e como sobrevivente de sua natural liberdade, que era o seu próprio e único modo de viver”.
É precisamente nessa natural liberdade, tão cara ao artista, que está a sua busca formal, sua essencial força expressiva e filosófica que o move a fazer arte há mais de cinquenta anos. Tudo com uma sinceridade visceral a serviço da emoção, que não só desconstrói certezas, mas, acima de tudo, reaviva os sentidos carentes de uma educação da percepção e da sensibilidade que nos põe, a partir de suas pinturas, em pleno avesso poético/estético.
Fernando nos desacomoda dentro de seus cenários/pinturas, nos dá direito a desconfigurar e recompor a rasa realidade. Em cada obra, monta e remonta sua própria história enquanto transforma e propõe à história da arte no país uma outra narrativa, não apenas estética. Vibra uma poíesis mais que original, digna dos mais singulares artistas que tiveram a coragem de se reinventar ao adotar outros princípios.
Há quase sonoridades nas cores a configurar asteroides, rotatórias cósmicas, sinais gráficos universais que ressoam em aglomerados galácticos em completa sinestesia. Um diálogo do possível com o impossível em que estranhos seres de um cosmo ressoante gravitam assim na Terra como no Cosmo. Tudo numa geometria densa e luminosa, polifônica, a tocar numa epifania que quer sagrar a eternidade da arte.
As mais que pinturas nos lembram o que disse o pré-socrático Heráclito: “Tudo discorda em harmonia universal”.
Ao partir da colagem de seus recortes abstratos – como Matisse fez com papéis coloridos, quando já não podia mais pintar com tintas tóxicas –, Fernando os cola à tela para saber do efeito mutante, mas, se não os incorpora, os pinta e repinta dando à tela quase uma pele sensorial e tridimensional na novidade vasta da colagem/pintura. Esta, de tão íntima e transversal no jogo lúdico, expõe texturas e formas amalgamadas, põe seus malabares conceituais à beira do mais belo abismo que já é a vida com o aval da arte.
A pintura é a principal discussão, mas nunca discurso. Com sutilezas poéticas e liberdades cromáticas inusitadas, Fernando faz da metáfora “malabares” a sua liberdade antiga na habilidade de saber lidar com a técnica a favor da ousadia no labor artesanal suado na caverna-ateliê onde ele, como um xamã/artista, experimenta e ama o prazer da pintura na arte/vida, com as quais é um só.
Seu mito da caverna mostra a face vera de sua dilacerante solidão, a tensão que já é a responsabilidade de expor-se ao mundo em cada obra em que nos diz do ansioso e do medo de ser e estar nele por inteiro e, portanto, íntegro, vencendo o temor da morte e fazendo amor com a pintura. Por isso o receio de dizer que a obra está concluída, já que há muito prazer também em fazê-la, e já que nunca estamos de fato acabados, como disse Guimarães Rosa.
Na fatura artesanal das potentes pinturas e com o rigor de sua pintura construída com tramas luminosas, ele mesmo é posto ao avesso do avesso. Vislumbrado e alumbrado, surge vitorioso dos mais profundos escuros da alma com o poder da imanência de criar uma complexa originalidade pictórica além do mero ato do poder construtivo.
Fernando nos põe em outro poder, o de suspensão e espanto pela radiância transgressiva de ir além de uma realidade que nem ele, nem nós mais suportamos e, assim, precisamos fazer-nos Arte. Por isso, e mais que isso, essa sua grande arte nos encoraja, fortalece e ilumina!
Bené Fonteles, curador
fevereiro de 2019•2024