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Anderson Santos

Opening
04 de September de 2025

Schedule
19h

Exhibition
04 de September a 04 de October

Sorry, this entry is only available in Brazilian Portuguese.

Meu encontro com o trabalho de Anderson Santos, materializado sob o pretexto da sua exposição, vai um pouco além do que aqui se passa. Esse encontro, que se dá no cruzamento entre gerações e em meio a um profundo interesse pelas implicações da estética na vida e no cotidiano da experiência negra, alcança também um conjunto de situações sobre a prática e sobre os motivos da insistência na intimidade da pintura. Nesse sentido, A Vida Nua é, antes de tudo, um percurso transversal nos últimos dois anos de produção do artista, em que podemos presenciar tanto um estudo sobre sua pesquisa pictórica quanto um testemunho de sua trajetória como pesquisador da imagem.

A partir dessa posição (a do encontro), a prática compositiva de Anderson Santos se coloca num lugar duplo: um espaço em que o corpo, em vez de se fixar numa forma estável de figuração, aparece como meio atravessado por composições biográficas e digitais — fabuladas, sobretudo, por percursos de inteligência artificial —, memórias e recombinações tecnológicas. Quando afirma que ser pintor negro e baiano não é uma identidade a ser simplesmente reivindicada, mas uma condição de risco e de potência, o artista aponta para a pintura como território em que se tornam visíveis tensões e histórias que não cabem no biográfico, mas que inevitavelmente transbordam nele.

Em A Vida Nua, essa condição se apresenta sob o signo do paradoxo. As obras reunidas trazem presenças que se insinuam e logo se desfazem; corpos que aparecem como começos; jardins povoados por figuras que não cessam de oscilar entre memória e invenção. A pintura é o meio em que esse movimento se materializa: a cor se acumula em camadas, mas é atravessada por interrupções, cortes, mudanças de ritmo, traços e dissoluções que devolvem ao espectador a experiência da instabilidade.

O título da exposição convoca a expressão formulada por Giorgio Agamben para designar a vida reduzida à sua dimensão biológica, exposta ao poder e à violência. Mas, nas mãos de Anderson Santos, essa “vida nua” não é apenas isso — é também insistência, possibilidade de reinvenção. Aqui, a vida exposta é também a vida que atravessa o tempo, que se multiplica em imagens que não cessam de se recompor.

Nas obras apresentadas, de Presenza 45 (il primo inizio) a Io, Anderson, passando por Accra (Agbogbloshie) 4 e Vida Nua 5, a pintura se abre como espaço de deslocamento e retorno. Em Accra, por exemplo, encontramos uma geografia marcada pela circulação e pelo descarte, ao mesmo tempo em que se evoca um lugar de memória coletiva. Em Io, Anderson, a primeira pessoa não é autoafirmação reduzida, mas exposição: o “eu” que se mostra é sempre atravessado por outros, por fantasmas, por forças de fora.

Desse lugar e a partir desses procedimentos, A Vida Nua pode ser lida como um chamado: olhar para o corpo não apenas em sua condição de limite, mas como abertura. Olhar para a pintura não como representação, mas como prática material que convoca memória e invenção. E, sobretudo, olhar para a vida não apenas em sua precariedade exposta, mas em sua força criadora — no gesto que insiste em transformar a carne em presença. Ao afirmar que pintura e autorrepresentação não se limitam ao íntimo, expandindo-se em camadas coletivas, aproximamo-nos também das questões formuladas por Fred Moten e Stefano Harney em A Des/Aparição da Foto de Família Negra: “com a fotografia, o enquadramento se apresenta a nós como um ato de separação, um ato de foco e um ato de isolamento”.

Na pintura de Santos, o enquadro também opera, mas sempre em tensão: há corpos que se deixam capturar pelo limite da tela, mas que logo se re/de/compõem, se tornam outros, puro fluxo de um arcabouço referencial. Como se resistissem à “prioridade do quadro” e à tendência da imagem a se converter em retrato, em sujeito fixado, possuído. Moten e Harney lembram que “toda fotografia é uma retratação, especialmente quando a figura da modelo parece não lá estar”. Aqui, esse jogo se repete: o que vemos são presenças em vias de tornar-se, corpos que estão e não estão, que aparecem e se retraem.

Esse desvanecimento  [fade], apontado por Moten e Harney, vai além de um simples efeito óptico: é um dispositivo para pensar a experiência estética da vida negra. A fotografia de família negra — um gênero que deveria afirmar pertencimento, identidade, permanência — é sempre atravessada por riscos de desaparecimento, apagamento, roubo, descarte. O fade é, nesse sentido, o espaço entre presença e ausência, memória e perda, ferida e bênção. Eles escrevem: “A foto polaroid se revela assim como des/aparece [fade] ao toque. A existência insiste nesse borrão da ferida e da bênção”.

O fade não é apenas precariedade, mas também potência. Ele abre brechas na prioridade do quadro, na compulsão de capturar e fixar sujeitos. Em vez de cristalizar uma identidade, o fade mantém o corpo em movimento, instável, fugitivo. Recusa o acabamento e, assim, funciona como prática de liberdade. Carrega também a dimensão da partilha: o que resta na foto de família não é uma presença íntegra, mas fragmentos, borrões, instabilidades que se transmitem de mão em mão. Uma “química de momentos roubados” — forma de comunhão precária, feita de restos e sombras, mas ainda assim vital.

Meu encontro geracional com Santos, expresso no contexto da sua exposição, pode ser lido da mesma maneira: uma insistência nesse borrão, nesse duplo estatuto de ferida e bênção, onde a carne da cor é o lugar em que violência e vitalidade se misturam. Vida e estética podem ser apreendidas como suporte daquilo que é insuportável, não como campo de resoluções apaziguantes, mas de contínua fugitividade. Assim como a fotografia em Moten & Harney, as telas de Santos são experiências de instabilidade, práticas que não prometem redenção, mas nos observam. Um “eu” em dissolução, em partilha: “é a aspiração de nosso suspiro de morte, a substância de ser não-vista em ser sempre vista”.

Por fim, A Vida Nua pode ser lida como gesto de recusa — gesto próximo ao que Moten e Harney chamam de “resistência estilhaçada, protegida — a química de momentos roubados é nossa verdadeira e terrível e bonita partilha negra”. As telas não entregam corpos fixos, não oferecem identidades pacificadas, mas partilham a instabilidade, a oscilação entre presença e ausência, figura e dissolução. Essa opacidade, a da participação no velamento-desvelamento, é justamente aquela que não oferece o corpo ao regime do visível, mas o transforma em campo de novas aparições. Essa dádiva mútua, sem fim, é também a lógica de sua pintura: ensaio indisciplinar, prática de vida, estudo poético em fuga.

Em A Vida Nua, portanto, o ato de pintar é sempre um fade. O corpo, sempre em risco, reaparece como cor, respiração e vitalidade. Como nos lembra Fred Moten: “nosso objeto resistente e implacavelmente impossível é predicação sem sujeito, fuga sem sujeito […] uma ode à impureza, uma obliteração da última palavra”. A pintura de Anderson Santos é essa obliteração: vida nua que não se deixa possuir, mas que insiste em suas forças — precariedade e bênção, ferida e sopro vital.

Tarcísio Almeida

 

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