Mirela Cabral nasceu na cidade de Salvador – Bahia em 1992. Formou-se como bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Cinema pela FAAP e paralelamente frequentou cursos artísticos em escolas como Parsons Paris, NYFA e UCLA. No Brasil, teve aulas com Agnaldo Farias, Manoel Veiga, Leda Catunda e Charles Watson. Hoje, dedica-se ao desenho, pintura e bordado como suas principais mídias de investigação, interessada em pesquisar como se interagem e se complementam entre si.
Realizou as exposições:
2021
– SP Arte. Arca. Galeria Kogan Amaro, São Paulo, SP.
– Prelúdio. Galeria Kogan Amaro Zurique. Zurique, Suiça.
– Rebento. Galeria Kogan Amaro São Paulo. São Paulo, Brasil. Curadoria: Agnaldo Farias.
2020
– 1o Salão de Artes Para Adiar o Fim do Mundo – Casa Visual Galeria, Tocantins – SP Arte
– Galeria Kogan Amaro, São Paulo
– Art Rio – Curadoria Pollyana Quintella – Galeria Kogan Amaro, Rio de Janeiro
– Latitude Art Fair – Curadoria Allan Yzumizawa
– Acervo Rotativo – Curadoria Laerte Ramos
2018
– Exposição Formas de voltar para casa – curadoria Julia lima, São Paulo – Feira Parte –
Galeria Emma Thomas, São Paulo
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Até chegar aqui, em sua primeira individual, muita água correu por debaixo da ponte, o que é admirável, face à juventude da artista. Antes, das artes plásticas, Mirela Cabral passou pelo cinema, quatro anos numa faculdade aqui, um ano estudando fora do país, mais um ano trabalhando com roteiros, conhecendo os meandros de um universo áspero, em que as decisões são tomadas em esferas inacessíveis, tornando quiméricas noções como controle e autoria. Mas isso talvez não importe muito. Parafraseando Joseph Brodsky, em relação aos artistas, da mesma maneira com que acontece com os pássaros, os dados biográficos interessam menos que a singularidade de seus cantos, ainda que tragam, em seu bojo, diluídos, esses dados. Feitas as contas pelo calendário, seu trabalho afirmou-se muito rapidamente. Uma surpresa até para ela.
Até o distante ano de 2019, sua produção era eminentemente figurativa, do que é prova Sopro, o trabalho mais antigo desta mostra, um desenho sobre papel realizado com grafite, carvão, bastão oleoso, maçarico, aquarela, acrílica, palo santo (uma madeira peruana que atua como um tipo de carvão), sobre uma folha de papel de 152 x 153 cm. Discrimino o elenco de materiais, para que se tenha noção dos vários procedimentos, dos gestos envolvidos na realização de um corpo retorcido, descarnado, como se a pele lhe tivesse sido arrancada, músculos e ossos percorridos por correntes elétricas, retraindo pés e mãos, obrigando-os a se encontrarem, formando um ponto de convergência, de onde flui uma linha grossa, borrada, que desce até o limite inferior do papel, escapando dele. O desenho/pintura timbra pela sujeira, as cores são intensas, misturam-se, ao passo em que disputam cada centímetro. Há tons de amarelos, azuis, vermelhos, cinzas, brancos e pretos, e eles vêm de cambulhada, amalgamados, mas também esgarçados, com manchas e linhas vibráteis. Aliás, tudo ali vibra, mais não fosse porque linhas e planos são descontínuos, truncados, resultado de um labor incisivo, mas que parece esbarrar numa enorme resistência.
O braço esquerdo da figura parece amputado, a deformação do ombro desse mesmo lado divide o protagonismo com a cabeça e é possível perceber-se dois seios, duas esferas excêntricas, mas não se pode garantir que o corpo seja masculino ou feminino. Isso não importa muito. No seu caso, tanto o binarismo do gênero, quanto o da formulação “arte abstrata x arte figurativa”, que tanta importância teve, ao longo do século XX, não diz muita coisa mais, perdeu sua validade. Mirela compartilha o princípio, segundo o qual a arte não trata de coisas reais, mas de ideias referentes às coisas reais. Arte é uma aventura da linguagem. Como tal, diz respeito ao ser humano. É nisso que ela acredita e, por isso, constrói essa figura, lançando mão de tantos recursos. Faz eco com a formulação de Henri Bergson, para quem o elã vital, a necessidade de expressão, funda-se no impulso condensado na matéria, e, antes disso, funda-se no próprio impulso. O que somos senão nossos próprios atos, o desejo que nos faz confluir
Uma linha começa com seu corpo enunciado por pastel oleoso, passa para o grafite, metamorfoseia-se em carvão, transmuta-se em tinta a óleo, enquanto todo o tempo pode ser acompanhada por nanquim. Não bastasse essa multiplicidade de materiais, cada um a estimular e exigir, da artista, tratamentos específicos, acontece ainda uma profusão de manchas, escorridos e borrões. A artista foge do virtuosismo, do gesto escorreito e adestrado; onde outros, de sua mesma geração, preferem a limpidez de imagens hiper-reais, sedutoras e apaziguadoras, ela opta pelo ruído. Em lugar do signo claro, ela nos oferece o garrancho, a garatuja; essa apologia da mão deseducada aproxima-a do que há de selvagem em nós, da constatação de que não há um caminho único, uma saída, apenas uma procura persistente e sem fim à vista.
Texto de Agnaldo Farias