Opinião, ideologia, domínio técnico, olhar criativo. Como estúdio, a rua. Seja Bahia, Mariana, Taiti, Índia, o continente africano em vários de seus países — Benin, Togo, Gana, Tanzânia, Congo, Uganda, Namíbia e Zaire. Tema: O homem e seu cotidiano. São fotos de gente. Fotos com o desejo de oferecer imagens, que por sua angulação e ponto de vista, enquadramento e expressividade, capte o essencial em seus detalhes para revelar o drama das relações e do mistério dos seres humanos, transfigurando a realidade através de uma poética que modifique, diante do mundo visível, a fotografia denominada documental, na busca do instante único — este instante que atrai e que nos é revelado nas suas fotografias, o momento decisivo (um minuto depois já é outra coisa), pois está neste instante o que nos atrai e que nos é revelado, momento decisivo de captar a imagem, da imagem na cena, momento do homem diante da vida, e da morte. Ao se deixar revolver pelo tema, deixa vermos a mão do homem o tempo inteiro – na rua, a sua paisagem é a humana, o tema é o ser humano, e disto salta a palavra fundamental: gente. São fotos para ver gente, para gostar de ver gente, uma fotografia onde o ser humano é o foco principal, mesmo quando não o vemos. A rua nos traz a percepção e a sensibilidade de quem caminha, de quem conversa, a sensibilidade de quem não faz a foto, mas é por ela feita – instante único por sua luz, por sua cena, pelo momento, pelo cenário, pelas pessoas Talvez possa dizer que esta é uma fotografia que se deixa ver feito um autorretrato de seu ser e de seu estar no mundo, uma busca de si mesmo, um entendimento do mundo, e, por mais diferente que pareça ser, esta busca não é simplesmente pela religiosidade, pela fé, pela expressão humana, pelo cotidiano, pela tensão do homem, ou povoada do misticismo — nada melhor que as manifestações religiosas para traduzir isto de forma mais evidente, lugares onde se glorifica a morte para podermos glorificar a vida. E sendo a arte um veículo de muitas vias, esta fotografia leva a um sonho, sem meio-termo, ao reafirmar em cada uma delas que cada um de nós faz sua opção e que não há, nem pode haver, imparcialidade em nada na vida.
Christian Cravo nasceu em Salvador, em 1974, tendo começado a fotografar aos 13 anos, na Dinamarca, terra de sua mãe, onde viveu dos 10 aos 17 anos. De volta ao Brasil, iniciou um trabalho já como fotógrafo profissional, efetuando uma pesquisa no sertão baiano e brasileiro, apenas interrompido em 1993 para prestar serviço militar na Dinamarca. Suas fotos possuem um reconhecimento nacional e internacional, já tendo recebido prêmios do Mother Jones Photo Fund for Documentary Photography, dos Estados Unidos, do Museu de Arte Moderna da Bahia, e bolsa da Fundação Vitae de São Paulo, e realizado exposições, entre outras, na Throckmorton Fine Arts, em Nova York, na Billedhusets Galeri, em Copenhagen, MAM/Bahia, Instituto Tomie Ohtake e Museu Afro Brasil, ambos em São Paulo. Publicou vários livros – Irredentos; Salvador de Bahia, Rome noire, ville métisse; Espiritoculto; Nos Jardins do Éden; Exu Iluminado; Christian Cravo, Mariana; Luz e Sombra. Já foi indicado para prêmios internacionais, como o Paul Huff (Holanda, 2007) e o Prix Pictet (Suíça/Reino Unido, 2008 e 2015). Em 2016, ano que completou 25 anos de carreira, a APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) premiou Luz e Sombra como melhor exposição fotográfica de 2015. A mostra foi realizada no Museu Afro Brasil, em São Paulo.
Nas suas fotos temos alguns temas recorrentes, como a água, a religião, o povo de vários países — Haiti, Índia, o continente africano e, obviamente, a Bahia. O que o levou a esta escolha temática? O que o direcionou para isto?
Sou acima de tudo um curioso, um observador, e me interessam temáticas que decifram o ser humano. No meu caso preciso trabalhar em cima de uma representação iconográfica. A religião e a fé, assim como a água, representam o homem de uma forma embrionária. Não fotografo a fé e nem a água, mas sim o homem.
Nas suas fotos há um revelar da “face oculta” através do misticismo, da dualidade vida-morte, do homem diante do mundo. Esta revelação é um dado consciente, buscado, visceral para sua arte?
Como fotógrafo busco entender o homem através de imagens que se revelam no decorrer do meu caminho. Faço da minha visão um instrumento para contar uma história que é acima de tudo “humana”. A partir de temas definidos, procuro representar o homem numa estrutura iconográfica.
A fotografia possui uma potência visual, uma beleza gráfica e um tema que, podemos dizer, busca criar ou reproduzir a vida. Você vê estes três tempos como conflitos a serem resolvidos, ou eles existem concomitantemente para que possa exercer plenamente a sua arte?
Não há conflito nenhum. Tento alinhar a estética, que é a representação iconográfica, com a vida, que é a minha curiosidade.
A sua fotografia é documental?
Sim. A minha e todas as outras. A fotografia é acima de tudo um registro e, por sua vez, também um documento. Na metade do século XX, quando a fotografia ainda estava se definindo como conceito e expressão, poderíamos categorizar seu lugar.
Sendo documental, vê nela também uma liberdade de criação?
Liberdade de criação é necessariamente algo não figurativo, algo abstrato ou algo que existe somente na imaginação do artista? O mundo que fotografo é real, ele existe, mas é também fruto de uma imaginação que só existe em minha mente. Saio à procura de cenas visuais que correspondam ao meu conceito filosófico.
Esta fotografia que registra é uma fotografia imparcial?
Alguns puritanos tentam ser imparciais. Mas eu não acredito que isso seja possível. Não “monto” uma foto. Tento usar os elementos que são jogados na minha frente, mas vale lembrar que há uma pessoa por trás da máquina e que a pureza do fato “real” é envenenada pelos nossos valores e conceitos morais.
Há um projeto para suas fotos?
Sim, o de estar lá fora presente num mundo cada dia mais globalizado, homogêneo e asséptico. Busco um homem que está umbilicalmente ligado à sua natureza, algo cada dia mais difícil. Atualmente estou fotografando no Haiti. Neste sentido, vejo o Haiti como a expressão máxima da essência humana. Estamos falando de uma sociedade com características muito particulares, intensamente espiritualizada, repleta de simbologias, onde a falta de pudor do povo se apresenta por meio de elementos de grande pureza. E é a pureza nas relações do homem, na manifestação do seu credo que desperta meu olhar. A amplitude filosófica que podemos traçar a partir da existência humana no Haiti é algo perturbador e incrível.
Fotografar é só uma questão visual ou é também uma questão técnica?
A técnica é importante. Pessoalmente me irrita um pouco ver o descaso de Verger para com a técnica. Ilude-se quem diz que isso não afeta a estética e o impacto.
Você considera fundamentais na criação de suas fotos estes dois estágios: a captação da imagem e a reprodução da imagem. Pode explicar como você os trabalha?
A imagem nasce no momento do click. Esta é a matriz, mas no laboratório se faz a imagem que será apresentada. Tecnicamente o negativo tem uma latitude que lhe permite clarear ou escurecer algumas áreas, dando assim um “mood” à fotografia. Parece algo simples, mas é incrível como este ajuste pode afetar o resultado.
Que representa o laboratório para um fotógrafo como você?
Para mim é importantíssimo, pois me coloca num encontro profundo com a imagem. No momento de captar a imagem, não se tem tempo para raciocinar a fotografia. Às vezes tudo acontece numa rapidez enorme e tudo acaba antes mesmo de você se dar conta. O processo do laboratório exerce uma psicologia enorme, pois ele te “recolhe” para fora do mundo onde você é obrigado a estar espiritualmente ligado à fotografia, vendo-a de fato renascer para você na escuridão da câmera escura. Isso é mágico.
Estamos diante da fotografia digital. Qual a sua relação com ela?
Eu poderia responder em duas partes. Para a fotografia, como uma representação surrealista da vida, como um conceito, ou como uma representação imaginária, não há nenhuma diferença, pois a máquina fotográfica é um mero instrumento para captar a imagem. Já no sentido da técnica, há um avanço enorme.
A arte redime?
A arte pode redimir quem a faz, mas acredito mais na força e no impacto dela nas pessoas que a veem. Elas estão em geral mais abertas.
(entrevista / fevereiro de 2009)