Nasceu em 26 de janeiro de 1926, em Araguari, Minas Gerais. Foi o sexto de oito irmãos. Em 1942, vai morar com a mãe em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 1945 Estuda desenho com Alberto da Veiga Guignard, na Escola do Parque, Belo Horizonte/MG. Em 1948, passa a trabalhar no Rio de Janeiro/RJ, e fica quase dois anos internado no sanatório, em Correias, Rio de Janeiro, para tratar de uma tuberculose mal curada. De 1950 até 1960, ilustra inúmeros jornais e revistas, como O Cruzeiro, Manchete, Rio Magazine, Suplemento Literário do Diário de Notícias, etc.
Em 1952, participa do I Salão Nacional de Arte Moderna. Expõe, em 1961, na VI Bienal de São Paulo. No mesmo ano recebe inúmeras premiações. Em 1962, participa da III Biennale Internazionale di Scultura, Carrara, Itália. Em 1964, 0cria o primeiro objeto e participa da Fourth International Biennial Exhibition of Prints, Tóquio, Japão. Em 1966, conquista o 1º Prêmio na Categoria Desenho, no III Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, Brasília. Recebe, em 1967, na IX Bienal de São Paulo o prêmio “Galeria Estréia”. É eleito pelo jornal Tribuna da Imprensa o artista mais premiado do ano. Em 1968, participa da XXXIV Biennale di Venezia, Itália.
Em 1969, mais um prêmio, “Viagem ao País” e certificado de “Isenção de Júri”, no XVIII Salão Nacional de Arte Moderna, MEC, Rio de Janeiro. No ano seguinte, ganha o prêmio “Viagem ao Exterior”, no XIX Salão Nacional de Arte Moderna, MEC, Rio de Janeiro. Em 1972, viaja para a Europa, reside inicialmente em Roma e depois em Barcelona, onde permanece até 1975. Em 1978, participa da I Bienal Pan-Americana, Sala Especial, Fundação Bienal de São Paulo. Após inúmeras participações em individuais e coletivas ao longo de mais de uma década, recebe em 1993 o prêmio Fundação Roquette Pinto para “Os Melhores de 1992?, pela exposição Objetos, na Galeria Anna Maria Niemeyer, Rio de Janeiro/RJ.
Participa, em 1995, da Configura 2, Erfurt, Alemanha, sendo o único artista brasileiro contemplado com uma sala individual. Suas obras integram o acervo dos principais museus, fundações, institutos e coleções particulares do Brasil e exterior. Morre no dia 18 de julho de 1996, aos 70 anos, na cidade do Rio de Janeiro/RJ.
Coisas de Farnese, por Charles Cosac
Ainda que não tenha recorrido aos meus textos anteriores acerca de Farnese de Andrade e, sobretudo, a seus depoimentos, os fatores que geraram meu interesse e minha afinidade com sua obra mantêm-se claros, vivos e vibram com a mesma intensidade do passado.Como não teria muito mais a dizer e tampouco teria disposição para reescrever algumas linhas, diante do convite de meu querido amigo Paulo Darzé para resenhar essa mostra que reúne mais de trinta objetos inéditos, detenho-me a breves comentários acerca do que ora é exposto em sua bela galeria, em Salvador. Em 2007, na SP Arte, Paulo também promoveu em seu estande uma individual de Farnese, até certo ponto, um preâmbulo para a presente mostra.Os objetos (ou assemblages), tema dessa exposição, podem ser considerados a segunda e última parte na trajetória de Farnese. A primeira aparição desse artista em público foi como desenhista, em 1946, em uma exposição coletiva com os ex-alunos de Alberto da Veiga Guignard, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro. Seu primeiro objeto foi exposto em 1966, na exposição individual Montagens e desenhos, na Petite Gallerie (rj), com curadoria de Jayme Maurício. Todavia, o artista somente viria a ser identificado com esse segmento de sua produção, a partir de 1976, após duas exposições homônimas: Objetos, na Galeria Ipanema (rj) e na Galeria Oscar Seráphico (sp).De 1946 a 1966, Farnese conquistou todos os louros possíveis, como desenhista, gravador, pintor e ilustrador. Esse ritmo continuaria entre os anos 1966 e 1976, década que marcaria a transição da segunda para a terceira dimensão, uma gestação de dez anos daquilo que viria a dominar os últimos vinte anos de sua vida e produção.
Como conclusão, poder-se-ia dizer que em seus cinquenta anos de trabalho, os primeiros vinte foram no universo bidimensional, os dez anos seguintes entre o bidimensional e o tridimensional e os últimos vinte exclusivamente no tridimensional. Os dez anos intermediários, talvez os mais ricos e intricados, são os menos conhecidos dado o fato de o artista tê-los passado entre a Europa [Itália e Espanha] e o Brasil. Há, portanto, um vasto universo que antecede esta exposição. E, a cada ano, entendo mais seus elos. Infelizmente, não conseguimos reunir um grupo contundente de desenhos e gravuras – razão de sua ausência.
Coisas de porta-coisa
Entre 1959 e 1961, Farnese estudou gravura em metal sob os auspícios dos mestres Johnny Friedlander e Rossini Perez, na escola do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Na ocasião, o uso e a justaposição de elementos textuais, como um pedaço de pneu automotivo, teria instigado o artista a experimentos mais ousados e à busca de outras “coisas”, todas encontradas na recém-aterrada praia do Flamengo, sede definitiva do mam e grande fonte de inspiração às obras produzidas pelo artista a partir dessa ocasião. Uma vez exaurida tal fonte, iniciam-se suas infinitas incursões e visitas a antiquários, feiras de antiguidades e lixões de onde quer que ele estivesse, mas mais especificamente Barcelona e Rio de Janeiro, suas duas cidades de preferência. Julgo ser esse o momento embrionário dos objetos, cuja produção sistemática seria iniciada no futuro próximo.
É difícil a subdivisão ou a classificação dos objetos executados por Farnese em função da grande variante das datações atribuídas por ele. Há obras que levaram dez, até doze anos para serem consideradas prontas. Ao rastrearmos suas fotografias, vemos um dado fragmento em uma obra, ora em outra, mas o espírito que o guia é evidentemente o mesmo. Se é um Farnese ou não fica por conta da composição ou de seus aspectos formalistas, que, aliás, pouco lhe interessava.
Até meados dos anos 1980, os objetos de Farnese eram grosso modo classificados como “barrocos” ou “geométricos”. Esses adjetivos, porém, ficam distante da intenção do artista, pois se detêm aos fragmentos usados na execução de um dado objeto ou nos aspectos superficialmente geométricos de algumas obras. Penso que seja mais prudente vê-los como objetos e abordá-los individualmente, como uma entidade única, o que é uma das poucas verdades.
Há duas características elementares nos objetos de Farnese: eles são abertos ou fechados, circulares ou frontais. Os trabalhos ditos abertos e circulares, embora sejam executados da mesma maneira, ou seja, sem o talhe, aproximam mais o escultórico aos objetos [Rev1], como nas obras Sem título (1995), Homenagem a Morandi (1996) e Homenagem a Brancusi (1978-96). Essas obras são regidas por interesses outros do artista. Há um apelo fortemente estético, quase abstrato, sem o surreal. Observando-se suas datas de términos: 1995 e 1996 e considerando-se que o desenlace do artista ocorreu neste último. Não seria impertinente chamá-las de produção tardia. Vejo nessas obras o caminho para o qual Farnese teria se enveredado caso a morte não tivesse interrompido sua atuação, pois o artista trabalhou até os últimos dias. Por isso, dentro desse conjunto, elas não sejam prontamente identificadas como sendo de sua autoria. Já os trabalhos ditos fechados – exceto algumas poucas caixas de vidros e relógios – são exclusivamente frontais, frequentemente feitos para serem pendurados ou postos contra a parede.
Farnese iniciou seus objetos com os boxes forms, mas alega que não estava ciente dessa prática, menos ainda dessa terminologia. A grande alegria, (1966-78), era considerada por ele sua primeira obra “pronta”. O boneco com olhos de vidro é certamente algo a ser evidenciado. Suas mãos abertas demonstram alegria, mas todo o seu entorno causa tremendo desconforto. Afora a colisão do título com o objeto, não há movimento. Essa obra foi originalmente feita com a justaposição de tábuas que foram inseridas na caixa onde ora se encontram. Se o vidro foi uma terceira adição, fica em aberto. Não seria imprudente afirmar que a caixa também emoldura e enaltece a figura central nela contida. Farnese, além de esteta, era informalmente um grande decorador, portanto não temeria embelezar um lixo ou dar vida a algo morto, inanimado. Penso que aí reste um dos aspectos mais importantes de sua obra.
É comum encontrarmos em halls de hotéis e grandes escritórios de luxo uma mesa redonda (sempre em mogno e com tampo de mármore) sob um vaso (sempre uma urna oriental) com arranjos grandes, ricos, coloridos, vivos, mas artificiais. Frequentemente esquecemos que estamos diante de um vaso de flores vivas e naturais, pois elas são coisificadas pela própria condição a que foram submetidas. Ao unir fragmentos, objetos e coisas, para que dessa união nasçam outros objetos, coisas e obras de arte, Farnese estaria percorrendo a trajetória inversa a acima proposta. Em verdade, ele estaria descoisificando as coisas, atribuindo-as vida (mas não forma) ao lhes conferir dignidade e relevância.
Há um outro aspecto também a ser contemplado nessa união de coisas: ao justapor o guidão de uma bicicleta sobre o seu assento na obra Bull’s Head (1943), Picasso obtém a representação de um búfalo ou algo dessa sorte. O mesmo poderia ser dito, por exemplo, sobre uma colagem do norte-americano Richard Hamilton. Na obra de Farnese, todavia, essa união nos leva a algo intangível, em que há narrativa, mas não há ação e onde há representação, mas não há teatralidade. Em alguns casos, ela demonstra interesse em transformar a representação em abstração sem os recursos abstratos: como Georg Bazelitz, a partir de um certo momento, Farnese começa a inserir em suas obras fragmentos, fotografias e afins de ponta-cabeça. Em alguns objetos, essa inversão causa tremendo desconforto ou representa certo caos, como em São Sebastião (s/d, coleção particular). Em outras, ela alcança um aspecto absolutamente formalista e proto-abstrato, como Sem título (leiteiras, s/d) e Sem título (caixas e molduras caindo, 1985).
Partindo das box forms, é plausível e coerente que Farnese tenha ido em busca de outras formas de caixas, contêineres e “recipientes” como os oratórios, caixas de souvenires, caixas de madeira, caixas de relógio, canoas, gamelas, coxos etc. Ora essas caixas parecem suportes, ora elas se amalgamam ao seu conteúdo de tal forma a perderem sua própria condição de recipiente. Isso é mais evidente, sobretudo, mas nem sempre, quando o conteúdo ultrapassa os limites físicos impostos pelo que contém, como nas obras Natureza morta (1989), Sem título (1985), Francisco II (1981), Natureza morta (1982-85-92) e Autorretrato (to be or not to be) (1981). Nessa última, como exemplo, a foto pálida, quase patética do artista é emoldurada em círculo. Flores, uma caveira e o fragmento da cabeça de um anjo simbolizam a morte. O fragmento do entalhe que cobre a parte inferior da gamela desfigura-a transformando-a em uma urna.
Os oratórios e armários cujas portas foram preservadas ou caixas e potes ainda com suas tampas aproximam-se mais à vida íntima do artista. São narrativas pessoais, repletas de metáforas de cunho sexual ou da sexualidade da fé cristã. Por isso, talvez, a razão em fechá-las e abri-las. Talvez fechá-las seja um convite e desafio a abri-las, como vemos nas obras Carga genética (1985), O oratório do exibicionista (1975), O ser e três namoradas de infância (1986), Sebastião (1978-81); Ovos (1980) e Anunciação (1972-81). Na obra O oratório do exibicionista, por exemplo, há certo trocadilho visual. Os dois seios (ex-votos) aplicados simetricamente sobre a fotografia resinada de uma mulher nua tornam-se olhos especulativos, que confrontam, flagram face a face o espectador que ousou abrir as portas do oratório. Há humor nessa obra, há certo desafio em seu título – aspectos recorrentes na obra do artista.
Embora também de cunho autobiográfico, as caixas abertas e as placas são mais temáticas, especulativamente harmoniosas e de uma brutalidade suavizada. Os temas mais frequentes são a Anunciação, São Sebastião, São Jorge (santos respectivamente conhecidos por sua beleza e virilidade, portanto pertencentes ao universo gay), a família, o lar, a infância, o homem/ o pai, a mulher/a mãe e autorretratos. Como exemplos nessa mostra temos O anjo anunciador (1976), Oxossi (1981), O santo e o cavalo (1980), Cinco pensamentos (1978-82) e Autorretrato (self portrait) (1995). E, em menor escala, temas variados, composições ou protopaisagens como as obras Grécia (1980) e Caçada (1980).
Se a partir do box forms Farnese buscou outros suportes, como vimos acima, é provável que o vidro em A grande alegria tenha também gerado no artista o interesse pela transparência observado no uso recorrente de redomas, donzelas, objetos de laboratórios e, acima de tudo, as resinas, uma de suas máximas. Há no uso de vidros e resina o intuito de preservação, muitas vezes visto como o de aprisionamento. Grosso modo, a transparência na obra de Farnese, seja com o uso do vidro ou da resina exerce as funções de exposição, como na obra Viemos do mar iv (1978); suspensão, como nas obras São Jorge e a dama (s/d, coleção particular) e Anunciação (1978-83). Em todas elas há certamente a preocupação com a preservação.
Porta-coisa de coisas
Há, porém, certo antagonismo manipulado em toda essa temática. Da mesma forma que acima alego que Farnese “descoisificou coisas”, é visível que, ao elencar um alfabeto de imagens e coisas que representasse seus personagens e temas, o artista estaria coisificando, pasteurizando e homogeneizando a lembrança viva que habitava seus pensamentos refletida de maneira tão alucinante em sua obra.
Exceto nos autorretratos, que são exclusivamente feitos com fotos dele em diferentes épocas, ao apresentar-nos a imagem de uma dada mulher e chamá-la de mãe (matter) e de um dado homem e chamá-lo de pai (patter) ainda que hajam obras feitas com fotos verdadeiras de seus pais, muitas não são. Isso abre a questão se a referência é aos pais do artista, ao Nosso Senhor ou à Virgem Maria, a qualquer pai ou mãe ou a mera coisificação das palavras mãe e pai e seus referentes significantes, além do que elas representam no íntimo de cada indivíduo.
Exemplos com o uso de fragmentos e afins podem ser vistos na obra Natureza morta (1982-85-92), cuja fruta com sua polpa realçada em vermelho representa uma vagina, que por sua vez representa uma mulher, uma mãe, etc. Em contraste, a espada obviamente representa um pênis, o masculino (reforçado pelos moldes de sapatos), o viril, o pai, o homem amado, etc.
Outros elementos pertencentes ao universo farnesiano são ovos ou esferas em madeira, circunferências, miçangas, bolas de gude, etc. No universo farnesiano esses elementos representavam o sêmen, a procriação, a Anunciação, o casamento, o lar, a família, etc. Temos como exemplos as obras Ovos (1980), Carga genética (1985) e Anunciação com pássaro (1995).
Essas metáforas, representações e registros transitam, portanto, nos dois sentidos: na adição e na subtração do vivo e do morto, na vida e na morte.
Espero que tais comentários reforcem meus pontos de vista apresentados em textos anteriores. Para os que já conhecem a obra do artista, que gerem novas reflexões e para os que não a conhecem, que sirvam e facilitem a entrada ao fabuloso universo farnesiano.