Uma obra abstrata, nas quais utiliza uma gama cromática reduzida, explorando variações tonais, pode ser vista como uma das características marcantes na pintura do artista Paulo Pasta, que pela primeira vez o público baiano terá oportunidade de conhecer através de uma mostra individual.
Pintor, desenhista, ilustrador, gravurista, professor, para o crítico Rodrigo Naves, “trata-se de uma obra que consegue nos transmitir uma experiência dos ritmos da passagem do tempo – as várias dinâmicas históricas – altamente verossímil. Do sentimento lírico, de uma experiência mais subjetiva do tempo, passa-se a uma relação problemática, com uma temporalidade avassaladora, conduzida por processos sociais e tecnológicos promissores e, simultaneamente, apreensivos”.
Paulo Pasta nasceu em Ariranha, São Paulo, em 1959. Gradua-se em artes plásticas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), em 1983. É mestre em artes plásticas pela ECA/USP, em 2002. Doutor em artes visuais, 2010, pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo ECA / USP (SP).
Atua como arte-educador, na Pinacoteca de São Paulo, entre 1987 e 1999. Tem relevante atividade docente, formando novos nomes de destaque na arte brasileira contemporânea, lecionando pintura na Faculdade Santa Marcelina, 1987/1999, e desenho na Universidade Presbiteriana Mackenzie, entre 1995/2002. Professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), onde ingressa em 1998, e da USP, desde 2011. Ministra ainda cursos livres em várias instituições culturais, como o Museu Brasileiro de Escultura (MuBE) e o Instituto Tomie Ohtake.
Em 1984, realiza sua primeira exposição na Galeria D. H. L., em São Paulo. Entre suas individuais destaque para: Estação Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006; Galeria Millan, São Paulo, e na Galeria Art’Lounge, em Lisboa, 2007; Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, 2008; Centro Cultural Maria Antônia, 2011; Instituto Tomie Ohtake e Fundação Iberê Camargo, 2013 ; Galeria Millan, São Paulo, Museu Afro Brasil, São Paulo, e no Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto, SP, 2015; e em 2016, no Palazzo Pamphilj, Embaixada do Brasil em Roma, Itália.
Recebe a Bolsa Emile Eddé de Artes Plásticas, em 1988. Em 1990, recebe o Prêmio Brasília de Artes Plásticas no Museu de Arte de Brasília (MAB/DF) e, em 1997, o Prêmio Price Waterhouse – Conjunto de Obras, no 25º Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Suas obras estão em coleções públicas/Institucionais, como Pinacoteca do Estado de São Paulo; Museu de Arte Moderna de São Paulo; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo; Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro; Instituto Itaú Cultural, São Paulo; Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS; Museu de Arte de Brasília; Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto, SP; SESC São Paulo, São Paulo; Kunsthalle Berlin, Berlin, Germany.
Em 1998, é publicado o livro Paulo Pasta, pela Edusp; em 2010 dedica-se à produção de serigrafias e publica o álbum 9 serigrafias pela Papel Assinado, São Paulo; em 2012 lança o livro Educação pela pintura, uma coletânea de textos do pintor editada pela WMF Martins Fontes; em 2006, o livro Paulo Pasta, pela Cosac Naify; em 2013, o livro Paulo Pasta, na coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros, coedição com o Instituto Itaú.
Claudius Portugal num texto escrito especialmente para a exposição, diz: “Paulo Pasta é visto pela crítica como um pintor essencialmente pintor. Esta afirmativa surge ao se somar os vários caminhos de sua arte – a maneira de lidar com a linguagem e o contemporâneo da arte, no modo de abordar as questões da pintura em nosso tempo, o uso das formas e das cores sobre o plano da tela. Uma trajetória marcada por uma coerência, onde estão desde contradições e complementariedades, nas formas em seu equilíbrio, nas cores como vibração do ato de pintar, e em sua sedução para a visualidade do espectador. Uma poética de articulação e de desdobramento”.
“Nascido no interior de São Paulo, ingressa em 1978 na Faculdade de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP. Começa a expor individualmente em 1986. Neste primeiro período, com a série Canaviais, em lápis de cor e pastel seco, passa a ter o que se chama cor da memória. A cor em seu próprio corpo e não das coisas. A transição cromática não com um sentido literário, mas como poético, pela síntese, pelo alumbramento, pela essência e pelo sensível, iniciando seu repertório de pintor”.
“Desta primeira fase forma-se uma relação mais direta entre desenho e cor. Em seguida, sua pintura busca elementos em objetos e formas, blocos geométricos, e a técnica adquire novos materiais, podendo considerá-las como paisagens escultóricas. Num outro momento temos o uso da encáustica, uma técnica milenar. A cor em suas sobreposições de tintas e de uma consistência pictórica, levando-o a exercer uma pintura matérica, feita na relação com a matéria plástica, em camadas que criam a possibilidade de uma ação sobre as cores, surgindo então os encavos e as escavações, o período das ogivas riscadas sobre camadas de cor”.
“Esta materialidade continua uma relação fundamental em sua pintura até hoje, principalmente as transparências e a opacidade, a figuração e a abstração, o contraste que sobressai nos trabalhos. Seguindo sua trajetória, passa a exercer uma pintura com elementos de construção em telas grandes. Fase dos Cacos. Com origem no piso de seu atelier e nas calçadas paulistanas. Após os Cacos temos as Colunas, onde a técnica desloca-se para o óleo e a passagem das cores. Sobre esta “convivência entre as diferenças, e uma busca da ordem”, este período vem a deflagrar Piões, Vigas, Cruzes, onde a forma curva surge da base das colunas, o vazio e o silêncio”.
“Os trabalhos de Paulo Pasta nestes mais de trinta anos de pintura reafirmam em todas suas fases paisagens que buscam outras. Não são cortes radicais. Aliás, inexiste isto na sua pintura, em seus desdobramentos. Pode-se perceber naturalmente que as Vigas estão presentes até hoje nas Cruzes e Portais de agora, reafirmando a grande coerência para sua pintura, seja na sua verticalidade ou na horizontalidade das figuras, no pensar dos desenhos e pinturas (Paulo trabalha também com xilos e litos), onde o real é na sua superfície apresentado, em lugar de representado, e onde pintar é uma continuidade e uma ruptura com o fazer histórico, dialética que podemos considerar ponto fundamental para que formas e cores se encontrem nesta pintura deslimitada nos horizontes de sua linguagem”.
Você é um pintor considerado essencialmente pintor. Por sua maneira de maneira de lidar com a linguagem e o contemporâneo da arte, no modo de abordar as questões da pintura em nosso tempo, do uso das formas e das cores sobre o plano da tela. Esta formulação acima é por você aceita? O que tem a dizer sobre ela?
Eu acho que sim. Mas eu acho que nenhuma formulação pode ser completa. Acho que ela se completa nela. Eu acrescentaria que para dizer dessa essencialidade de pintor a gente teria que dizer de outras coisas, talvez pra mim como parte mais essencial, a linguagem, que é com eu mais tenho intimidade.
Utilizando uma fala sua: “nesse sistema que inventei para mim preciso me reconhecer nas coisas quais pinto”. Que é esse sistema? Como chegou a ele?
Eu acho que quando você toca a pintura, quando você toca o plano, quando você toca a tela, você é tocado também. Se você agrega sentido naquilo, você imediatamente está agregando, aquilo volta agregando sentido em você também. Se agregar sentido naquilo, volta como uma riqueza, uma construção mútua, conjunta. É uma espécie de dialética, de sistema recíproco. Então acho que é um pouco nesse sentido. Pensando por aí, eu acho que eu tenho um pouco essa obsessão em me reconhecer nas coisas. Justamente nisso. Uma pintura está pronta pra mim, quando eu me reconheço nela. Que é esse reconhecer nela? Talvez ela perceba, ela agregue alguns conteúdos que são meus, para também poder me reconhecer nela. Eu demoro em certos temas, isso puxando do meu sistema. Eu gosto muito, por exemplo, do Volpi, que é um pintor brasileiro. Eu olho pra pintura do Volpi, claro que além de toda a riqueza que tem, eu também enxergo ali um sistema muito organizado internamente. Por exemplo, o Volpi quando ele arruma um tema, um assunto, ele desdobra, e habita aquilo por muito tempo, e aquilo passa a fazer parte do seu repertório. Eu acho que é isso, quer dizer, o pintor não pinta o que vê, vê o que pinta.
Esse sistema é que faz você criar seu repertório de pintor?
Eu procuro ser sempre coerente no sentido de não ser arbitrário nem voluntarioso, vamos dizer assim, talvez isso responda uma dimensão ética do meu trabalho. Essa é uma organização interna do que eu faço. Parece que eu não consigo pular etapas. Etapas, claro, que eu mesmo coloco pra mim, e não etapas que estão fora ou exteriores a mim São interiores mesmo. Então talvez a pintura responda essa ideia de coerência por aí, nesse sentido e aí se a gente voltar pros “Canaviais”, era a paisagem que eu via, era o que eu via ao mesmo tempo, eu via Cézanne, por exemplo, eu via Cézanne, Monet, Van Gogh pintando as suas paisagens e eu via a minha paisagem natural. Então aquele exemplo desses pintores me levaram a tentar ver a minha paisagem. Então eu digo sempre isso: que quem me levou a ver o mundo foi a pintura e não ao contrário. A pintura que me deu a chave das coisas. Por isso é que sou essencialmente pintor. E agora que, por exemplo, eu voltei a fazer essas paisagens, eu voltei a fazer os canaviais, parece que eu cheguei numa idade, no momento da carreira em termos de tempo, tempo de trabalho, que eu posso me rever. Eu estou precisando me rever, eu fiz, estou fazendo tudo de novo, me revendo e acho também, como você falou, todo meu trabalho tem um sentido atmosférico, um sentido de paisagens. Também acho. Essas figuras, pinturas mais abstratas, que não são abstratas, tem uma cor atmosférica, assim como a paisagem. E isto me interessa também muito por isso.
Vendo os seus primeiros trabalhos, os “Canaviais”, e nele a cor, pode se ter o que se chama cor da memória. A cor em seu próprio corpo, em si mesma, e não das coisas. O que tem a dizer sobre isso? O que significa a memória em sua arte?
A cor tem seu próprio corpo em si mesmo e não das coisas. Tem uma memória em sua arte. Tem a raiz na memória. Isso tudo tem a raiz da memória. Lembrar para mim é um acontecimento muito intenso. É um fato específico que eu estou lembrando e que me faz sentir essa intensidade. Mas o ato de lembrar para mim é que substitui talvez, o ato de imaginar.
Mas eu vou um pouquinho além aí, que eu não acho que a tua lembrança é para o objeto e sim uma memória da cor.
Exatamente. E minha pintura responde. Quando eu disse que eu preciso me reconhecer nela para ela ficar, para ela estar pronta, ela tem de responder, esse sentido de dubiedade, de instabilidade, de indefinição.
Temos na sua pintura não o sentido narrativo, mas o poético. A síntese, o alumbramento, uma essência, o sensível, etc. Sua pintura, assim como um poema, é pergunta e dúvida?
Eu acho que quem responde melhor a isso, responde muito bem a isso é a poesia. Eu acho. Eu procuro. Enfim, a poesia me ajuda muito nesse sentido.
Não houve nem há narrativa na sua obra?
Não. Nem no próprio quadro, nem na sequência dele. Não tem uma narrativa. Você não pode somar aquele um mais um dá dois. Cada um é individual, cada um é singular. E antes, eu desconfio muito de uma arte retórica, por exemplo, numa arte que se baseia muito fortemente no motivo e no assunto, que não cria uma distância entre o projeto e a realização. Acho que isso, talvez para mim, acabe virando mais uma ilustração. Então o que eu coloco no trabalho é a pintura. É para criar uma distância entre a ideia e o resultado. A experiência do fazer, esse não saber o que está fazendo, esse agregar, essa construção do sentido que ainda não estava claro, me faz talvez, ser pintor. Enfim, continuar. Ela me proporciona um contato com a poesia, uma divisão mínima, se eu posso dizer assim, sem ser piegas. É por aí que a pintura nasce.
Mantendo a cor da memória, a paisagem dos “Canaviais”, que se constitui seu primeiro tema, eram feitos de lápis de cor e pastel seco. Importante nominar a técnica. Neles você já traz a transição das cores. Fale sobre este inicial período e nele a paisagem. Considera que toda sua obra é realizada através de paisagens?
Eu não diria assim toda ela realizada a partir da paisagem, mas a paisagem é a porta de entrada. Talvez se possa até simplificar, fazendo uma leitura das paisagens. Algumas pinturas abstratas me parecem mais interiores. Interiores arquitetônicos. Mas eu acho que é voltando lá no início às paisagens, eu fazia com papel e lápis pastel. Também por uma questão operacional prática. Eu era estudante e morava num apartamento. Trabalhava no meu quarto. Uma vez eu resolvi pintar com tinta óleo no meu quarto. Me intoxiquei. Então essa vida dura de estudante me levou a isso. Mas, também, pensando depois, minha primeira exposição é de desenhos. Na verdade, pintura sobre papel. Mas desenho.
Esse primeiro momento seu, ele é basicamente do desenho. Depois sua pintura começa a agregar objetos e formas, os blocos geométricos. As construções. É onde a técnica adquire novos materiais, que são meio paisagens escultóricas, uma coisa que parece mais de arquiteto. Na primeira fase temos uma relação mais direta entre desenho e cor. Podemos considerá-la paisagens escultóricas?
É. São blocos. Um volume. Volumes arquitetônicos que aparecem lá. Mas como volume. Porque agora minha pintura é plana, é uma cor. Agora a cor ganha predominância, ganha o antagonismo, e no volume não tinha cor, pintava no plano. Então ficavam esquemas planos. Mas nesse momento das construções, dos blocos geométricos, saio do canavial, saio das paisagens pra olhar um pouco a paisagem que estava me cercando naquele momento.
Num outro momento chega à encáustica, uma técnica milenar. A necessidade de sua cor é que pediu a sobreposição de tintas e uma consistência pictórica?
Exatamente. É uma massa. Eu não gosto muito, não gostava, e não gosto ainda desse aspecto do óleo, da matéria brilhante do óleo. Queria algo que tirasse o brilho e se tornasse uma matéria fosca. Então, pesquisando, cheguei à encáustica fria, que na verdade é uma mistura da cera de abelha já derretida com a terebintina, onde você agrega a tinta a óleo. Também quis fazer a pintura com cera quente, que é a encáustica real, a encáustica quente, porque é uma técnica dura. Por exemplo: você dá uma pincelada com a cera quente, ela esfria, ela não permite mais o trabalho, então ela fica muito pouco plástica nesse sentido. Então, até hoje, eu uso sim um pouco de cera pra me dar essa cor sem brilho, fosca.
A ação pictórica que se dá na relação com a matéria plástica, parte daí ou vem de antes como realização em sua pintura? Essa materialidade? Isso o leva a uma pintura matérica?
É mais uma maneira de afirmar que aquilo é pintura. Pintura, que de certa maneira você intensifica, exacerba os materiais que compõe a pintura para estar afirmando a qualidade intrínseca que aquilo é, então, pintura. Se eu afirmo, se eu agrego mais substância e matéria à tinta, a tinta fica mais presente, e nesse momento também a minha imaginação inteira estava trabalhando nisso. Teve um momento que nós fomos chamados de matéricos. É isso. Mas não durou muito. É um nome horrível. Acho que é isso. Uma vontade muito grande de, sei lá, se eu posso falar assim, mas de afirmar e chegar um pouco mais no fundamento daquilo que constitui a pintura.
Essas camadas criam a possibilidade de uma ação sobre as cores. Faz surgir na sua pintura os encavos e as escavações, surge o período das ogivas riscadas sobre camadas de cor. Nesse período, há a pintura em camadas. Esta materialidade continua uma relação fundamental em sua pintura até hoje?
É. Eu não desenho e pinto. O desenho surge da própria pintura. Como se fosse uma escavação ao contrário. Retirando as últimas camadas de tinta que aparece a camada, esse conflito entre desenhar e pintar. É quase como um registro, uma marca, um rastro de algo sobre.
E me parece que o primeiro momento disso seu são as ogivas.
Isso. Que logo não são mais ogivas. São vigas. Mas que tem a mesma referência arquitetônica. O que eu estou falando até hoje porque vem a partir daí as transparências, a opacidade, a figuração e abstração, o contraste, Se sobressai no trabalho, quer dizer, ele jamais é um trabalho chapado, é um trabalho que às vezes parece que tem uma nuvem, que o encobre. Eu não me chamo pintor de um dia só. Então as camadas respondem a isso. Cada dia é uma camada nova e a cor vai ganhando essa intensificação também. Todo dia um pouco e eu sempre uso a metáfora da fruta pra minha cor, eu sei lá. Uma fruta atinge o ponto máximo da cor e do sabor e no dia seguinte ela já vai apodrecer. Então eu tento fazer com a cor algo parecido, que ela atinja também, que ela chegue nesse momento de auge, de amadurecimento, de plenitude, antes que apodreça, antes que morra. Então é isso uma espécie de intensificação da vida, mas já sendo o umbral da morte.
Seguindo sua trajetória, você passa a pintar em telas grandes. São elas que permitem uma construção nova em sua pintura. Uma nova superfície pictórica?
Eu acho que o meu grande problema é ter o que pintar. Às vezes um tema se esgota e até o outro chegar é o momento da transição mais dolorida. Quando eu parei de fazer as ogivas, parei porque eu acho que se esgotou. A gente sente quando se esgota. Não sei te dizer como, mais um pintor sente, né? O que eu vou fazer agora? Comecei a olhar pro chão, olhei pro chão, para aqueles tacos de cerâmicas quebrados que lá em São Paulo tem muito, e disse: eu vou pintar isso. E comecei. Então aquilo nos primeiro momentos era de fato um padrão. Mas depois esse padrão começou a se articular com elementos, como elementos, e aí eu fui de novo reconstruindo a minha pintura a partir de outro motivo. Quer dizer, eu deixei de ir por aí também, por esse novo motivo, eu deixei de fazer as incisões e escavar a pintura, mas, ao contrário, agregar a tinta, pintar positivamente de uma maneira.
Com isto surgiram coisas que não tinham aparecido ainda na sua pintura como a espacialidade. Estranho quando você diz que não tem tema. Tem as ogivas, tem as colunas, tem os peões, tem as vigas, tem as cruzes. São temas.
A gente dá nomes às coisas. Surge muito mais como apelidos do que nomes, a fase dos carros, as fases das ogivas, a fase das colunas, as fases das cruzes e agora misturou tudo. Porque acho que hoje está tudo misturado. Mas, enfim, a gente precisa de nomes. É uma tendência natural de o homem pôr nomes nas coisas. Mas o que eu quero e gosto, o que eu me identifico como verdadeiro, é quando o tema surge da própria pintura. É isso que eu quero. É isso que é o mais difícil. Que eu poderia pintar qualquer coisa. Eu poderia olhar para você e pintar você, a mesa, o copo ao teu lado. Mas será que me identificaria com isso? Eu me reconheceria nisso? Não. Eu tenho certa obsessão de que pintura vai me revelar o próximo tema da pintura. Talvez isso responda também aquela pergunta sobre a coerência do meu trabalho.
Você disse que seu trabalho são períodos de convivência entre a diferença de uma busca da ordem.
A desordem tá dentro de mim, né?
Então essa convivência entre as diferenças, entre esse jogo de vida e arte, arte e vida, que mais que a gente diga que elas se aproximam mais também se separa. Não é copiar realmente a vida da gente?
Eu acho que a minha pintura responde sim a esse ordenamento das coisas e do mundo. Eu tenho uma vontade de ordem o tempo inteiro. Então essa ordem também é o umbral da morte. Ordenar demais também é um pouco já se colocar como morto. Talvez o meu amor por Morandi venha um pouco por aí também. Em conhecer, me reconhecer um pouco nesse tempo, já um tempo também da finitude das coisas, das coisas já mortas. Mais eu vivo uma contradição muito grande. Ao mesmo tempo em que isso é muito forte em mim, eu também quero fugir disso. Então, uma sensação, talvez a sensação mais forte que eu tenho o tempo todo é de que eu não estou fazendo o que eu quero fazer. Isso eu já aprendi a conviver com ela. Quando era mais jovem, eu achava difícil. Se você não tiver essa sensação, você não tem a procura. Não tem a faísca. É o abismo que eu carrego do meu ladinho assim, que nem um cachorrinho na coleira. Eu nunca estou fazendo o que eu quero fazer. O que eu acho que devo fazer. Mas eu aprendi a conviver com isso.
Você criou um repertório da pintura. Há limites para sua linguagem poética?
O quê pintar e como pintar não pode ser indivisível. Então se a minha forma é ambígua, é como também ela tem que ser. Se a forma é dúbia, tem que responder essa dubiedade. E eu gosto disso, como disse a você, por isso a minha cor tem um sentido atmosférico. Ela não é cor local. Ela é uma cor que pinta as coisas, mas é um estado. Eu acho que a minha cor é um estado. Dado que é muito forte, mas que poderia juntar a esses é que você não recria o mundo real. Você não apresenta o real; você representa o real. A minha pintura abandonou a realidade, mas não o real. Ela tem a realidade dela. É isso aí. Por isso ela não é abstrata. E ela passa a fazer parte da minha realidade. Por isso a ligação dela com a realidade do mundo. É isso. Ao refletir sobre ela, eu estou levando ela para a minha vida.
Então, esse diálogo é que é sua linguagem?
Só para complementar essa história da cor, que eu acho que é muito fundamental no meu trabalho. Eu acho que a cor produz uma espécie de instabilidade no seguinte sentido: que você para na frente dele e você não apreende de uma vez. É como se tivesse a permanente construção no instante e não a representação do instante. E é isso que eu gosto. Quando a pintura faz isso. É isso que eu gosto e que me reconheço nela.
Você criou com tudo isso um repertório na pintura. Há limite nessa sua linguagem poética ou é um horizonte, um chegar próximo a algo que sempre está distante?
Eu acho que quanto mais próximo você chega mais longe ele está. É isso aí. É o mito da pedra, ir com a pedra para cima e ela já está lá embaixo de novo. Então eu acho que é essa busca infernal da arte. Você nunca chega, nunca chegou, nunca vai chegar. O artista que diz que diz cheguei, dá pra desconfiar. Eu acho que é isso aí. É o que me faz trabalhar, sabendo disso. A conquista de hoje, já vai está vencida amanhã. É claro, já foi feita. Exatamente.
Vindo das suas referências, sua pintura é uma continuidade ou uma ruptura?
Eu nunca fui um artista que buscasse a ruptura, eu acho toda arte é continuidade. Eu acho que quando Pollock sofre aquela angústia tremenda depois de ver o Picasso e faz aquilo, aquilo não é ruptura em relação a Picasso. É uma continuidade. Quando Picasso vê Cézanne e tem aquela angústia tremenda, e até cita isso, o que importa é que não tem uma ruptura com Cézanne, tem uma continuidade. Quem fala em ruptura é a imprensa. É uma coisa mais didática, para poder catalogar. Agora cada pintor tem que achar o seu caminho. Tem que achar o seu lugar.